Eduardo Vasco

Militante do PCO e jornalista. Materiais publicados em dezenas de sites, jornais, rádios e TVs do Brasil e do exterior. Editor e colunista do Diário Causa Operária.

Líbano

Uma explosão (muito) conveniente

Inicia-se uma campanha de acusação contra o Hezbollah, mas quem pode estar por trás da própria explosão são justamente os agentes que impulsionam essa campanha

Mal os libaneses haviam digerido os efeitos da explosão no porto de Beirute e uma parcela da população começava a culpar os “políticos corruptos” pela catástrofe. No sábado (08), quatro dias após a destruição de metade da capital, um grupo levou bonecos do presidente Michel Aoun e também do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, e os pendurou enforcados na Praça dos Mártires.

Trata-se de algo extremamente significativo que uma parcela dos libaneses esteja culpando o Hezbollah pela explosão, acusando-o de ser responsável direto ou indireto. Também tem a sua relevância o fato de que o “enforcamento” de Nasrallah tenha sido destacado pelos jornais israelenses, como o Jerusalem Post e o Times of Israel, que, como sempre, tacharam o Hezbollah de “terrorista” e ridicularizaram a possibilidade levantada pela organização de que a explosão tenha sido originada por uma interferência externa.

Esses protestos radicalmente contra o Hezbollah ocorreram dois dias após o início de uma petição pela Internet extremamente suspeita. A petição, supostamente criada por cidadãos libaneses no site Avaaz e que conta com mais de 60 mil assinaturas, exige que o Líbano volte a ser controlado por um mandato francês pelos próximos dez anos.

“As autoridades do Líbano mostraram claramente uma total incapacidade de proteger e gerenciar o país. Com um sistema falido, corrupção, terrorismo e milícias, o país acaba de dar seu último suspiro. Acreditamos que o Líbano deveria voltar a estar sob o mandato francês para estabelecer um governo limpo e durável.” É tudo o que diz a petição.

Trata-se de algo absolutamente surreal. Existem duas possibilidades sobre quem está por trás dessa vergonha: 1) libaneses quinta-coluna do imperialismo em seu país, semelhantes aos bolsonaristas paus-mandados dos EUA no Brasil; 2) que tenha sido criada de fora do Líbano, seja por libaneses, seja por estrangeiros. Mas, de qualquer forma, fica um tanto quanto evidente que isso foi impulsionado pelo imperialismo.

Até porque ela foi oficialmente destinada ao presidente da França, Emmanuel Macron, e começou a circular no mesmo dia em que ele chegou a Beirute para observar a situação da cidade após a explosão. Macron, um representante por excelência dos grandes bancos internacionais, se comportou como se a França já tivesse tomado o controle do Líbano.

Sob uma forte cobertura passo a passo da imprensa internacional, Macron visitou os escombros e, como uma cena de campanha eleitoral, esteve entre dezenas de cidadãos libaneses, que pediam sua ajuda. Algo de dar inveja a qualquer marqueteiro. Ele era o grande líder do Líbano.

Macron faz cena demagógica em meio aos escombros de Beirute. Foto: T. Camus/AP

Como um verdadeiro imperador, Macron advertiu: “Se reformas não forem realizadas, o Líbano continuará afundando. (…) O que também é necessário aqui é uma mudança política. Esta explosão deve ser o início de uma nova era.”

“Reformas”. Essa é a palavra-chave. Será coincidência que, exatamente no mesmo dia em que Macron fez esse discurso, o Fundo Monetário Internacional (FMI) exigiu de Beirute as mesmas “reformas econômicas” para que possa receber algum tipo de ajuda financeira? “É essencial romper o impasse nas discussões sobre reformas cruciais e criar um programa significativo para recuperar a economia”, disse a diretora do FMI, Kristalina Georgieva.

A imprensa internacional dá conta de que iniciou-se uma pressão por parte das potências imperialistas para que o Líbano realize reformas que cortem os gastos públicos e reduzam as dívidas estratosféricas do país. A culpa dessa situação, segundo essa propaganda, é da corrupção desenfreada dos políticos libaneses.

No entanto, a intenção dessa campanha é clara: colocar de canto o Hezbollah.

Para entender melhor a situação interna do Líbano, é preciso recuperar brevemente a história do país. Colônia francesa até meados do século passado, essa nação árabe passou por uma guerra civil que durou de 1975 a 1990.

A guerra civil libanesa foi travada entre os árabes apoiadores da causa palestina, aliados da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) – que tinha uma forte atuação no país após a invasão israelense em 1967 – e os cristãos maronitas libaneses, que sempre se colocaram à direita na política, tendo sido peça fundamental do imperialismo no boicote à adesão do Líbano à República Árabe Unida 15 anos antes.

Os maronitas tinham como principal força uma organização abertamente fascista, as Falanges Libanesas, grupo fundado nos anos 1930 e inspirado diretamente nas falanges franquistas espanholas, bem como nas ditaduras fascistas da Itália e da Alemanha hitleriana.

Para comprovar que o sionismo israelense é realmente comparável ao fascismo, Israel interveio na guerra civil para apoiar os fascistas contra a OLP, invadindo o Líbano e impondo sérias perdas aos árabes. Com o enfraquecimento da OLP e dos grupos sunitas, foram criadas as condições para o desenvolvimento de uma poderosa força popular xiita, que finalmente desencadeou na fundação do Partido de Deus, o Hezbollah, em 1985.

Com um forte exército paramilitar, o Hezbollah foi peça chave na expulsão dos israelenses do Líbano em 1990 e se fortaleceu politicamente, ganhando grande prestígio popular. Tanto que, em 2006, quando Israel tentou novamente invadir o país, foi o Hezbollah quem travou o combate e expulsou novamente os sionistas de seu país.

Foi graças à sua popularidade entre as massas libanesas (o Hezbollah, desde o seu início, sempre teve uma série de programas sociais para atender à classe operária mais desfavorecida) que a organização galgou posições na política institucional do país, fazendo parte do governo desde o final da guerra, e mantém sua poderosa milícia, que é muito mais forte e organizada que o próprio exército regular libanês.

De fato, o Hezbollah é a principal organização política do Oriente Médio. E é uma organização das massas populares, não apenas libanesas, mas um patrimônio do povo árabe. Mantém levantada a bandeira da luta contra o imperialismo, apesar de quaisquer divergências internas que possam ocorrer na organização. O que menos importa aqui é a ideologia do partido. Como o próprio nome indica, teoricamente ele teria um caráter muito mais religioso do que político, mas a prática demonstrou, desde o início, que o fato de pregar o islã e não o socialismo ou ao menos o laicismo (como o Partido Ba’ath sírio e iraquiano) não o impediu de levar adiante uma luta progressista e radicalmente anti-imperialista.

O papel desempenhado pelo Hezbollah na Síria, no Iraque, na Palestina e no Iêmen apenas comprova isso. Apoia militarmente a luta contra as agressões imperialistas a esses países. E, o mais importante de tudo, é um dos principais aliados do Irã – e talvez essa seja a principal razão pela qual o Partido de Deus seja tão perseguido pelo imperialismo, ao ponto de ser considerado como um grupo terrorista por todas as potências ocidentais.

Tanto é que, devido à presença do Hezbollah no governo de coalizão libanês, o país padece de sanções impostas pelos EUA. Sanções essas que ajudaram a levar a uma grave crise econômica nos últimos anos. Devido a essa crise, uma parcela significativa dos libaneses ficou desempregada, a inflação aumentou exponencialmente e a moeda sofreu uma forte desvalorização. Isso tem gerado uma onda de protestos há quase um ano no país, logicamente alvo de manipulações por parte do imperialismo, a fim de que as contestações sejam contra a “corrupção” do regime, e não contra o acosso imperialista, verdadeiro fator de pobreza e desestabilização do país. Mais especificamente, quando o imperialismo acusa o governo libanês de corrupto e investe contra ele, o alvo é, invariavelmente, o Hezbollah, que é a ala esquerda do regime libanês – graças à presença do partido no governo, este pode ser considerado minimamente nacionalista, apesar do programa econômico neoliberal da ala direita majoritária no governo.

Essas acusações de corrupção diretamente contra o Hezbollah encontraram eco na embaixadora dos EUA no Líbano que, poucos meses atrás, afirmou que esse grupo estaria desviando dinheiro público. Mas a sua preocupação verdadeira ficou demonstrada na segunda acusação: a de que o Hezbollah estaria travando as reformas feitas pelo governo (aquelas mesmas reformas exigidas por Macron e pelo FMI).

Tais declarações geraram uma grande revolta na população libanesa, que realizou uma série de manifestações em frente à embaixada norte-americana, queimando bandeiras dos EUA e quase invadindo o local. Nessa situação, Hassan Nasrallah denunciou a embaixada dos EUA de interferir nas nomeações para o Banco Central do Líbano – uma manobra fundamental para o imperialismo poder impor as tão ambicionadas reformas econômicas no país, isto é, as privatizações.

É em meio a esse cenário de desestabilização causada pelo imperialismo que ocorre a estranha explosão no porto de Beirute, deixando centenas de mortos e milhares de feridos e desabrigados, atingindo metade da capital do país.

Os grupos que hoje pedem a intervenção francesa e o enforcamento de Nasrallah são herdeiros daqueles que apoiaram o colonialismo francês, impediram a integração do país com as demais nações árabes e lutaram contra os palestinos, junto com os fascistas e apoiados por Israel.

A explosão veio muito a calhar para a propaganda anti-Hezbollah, em um momento no qual o imperialismo saiu derrotado da Síria e mantém pesadas tensões com o Irã. No mesmo momento em que Israel vive uma crise política sem precedentes, cujo governo se transformou em uma anomalia política e é combatido nas ruas pela população. Essa campanha vem em um momento de forte protagonismo político do Hezbollah em toda a região.

Enquanto surge uma propaganda acusando o Hezbollah de estar envolvido na explosão, aparecem também os que recordam que esse tipo de caso se assemelha a outros episódios históricos quando o imperialismo forjou atentados e destruições justamente para culpar seus inimigos e iniciar uma agressão. Foi assim em Pearl Harbor, foi assim na Coreia, foi assim no Vietnã, foi assim no Iraque (duas vezes), foi assim no Kosovo, foi assim na Síria…

O próprio presidente Michel Aoun disse que “há a possibilidade de interferência externa por um míssil ou uma bomba ou outro ato”. Por sua vez, um alto funcionário iraniano foi mais longe. Mohsen Rezaei, secretário do Conselho de Discernimento do Sistema do Irã, afirmou que a explosão “é muito suspeita e coincide com as políticas dos EUA e de Israel nos últimos anos”.

Especialistas em armas atômicas e analistas geopolíticos já vêm levantando a possibilidade de a explosão no porto de Beirute ter sido ocasionada pelo uso de armas táticas de guerra. Um vídeo filmado por uma moradora da área próxima ao porto conseguiu capturar um barulho parecido ao de aviões sobrevoando a região no exato momento da explosão.

No entanto, ainda é cedo para afirmar com toda a certeza que a explosão em Beirute foi proposital e obra do imperialismo e seus fantoches. O que é absolutamente certo afirmar é que ela acabou se tornando, pelo menos, muito conveniente para dar impulso a uma política ainda mais agressiva de espoliação do Líbano e de cerco ao Hezbollah.

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