Na madrugada desta quinta-feira (30), cenas de guerra tomaram conta da cidade de Botucatu (SP). Dezenas de vídeos do ocorrido circulam atualmente nas redes. Um grupo de ao menos 40 criminosos pesadamente armados atacou simultaneamente ao menos 3 agências bancárias da cidade, explodindo os imóveis e deixando rastros de balas de fuzis por toda parte. A quantidade de dinheiro roubado ainda não foi identificada. A operação minuciosamente planejada contou com armamento de acesso extremamente restrito e difícil, que apenas pode chegar às mãos de quadrilhas como esta através de negligência (ou mesmo colaboração) por parte de forças policiais federais, rodoviárias, militares e etc, como alegou o próprio ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho.
Para se ter uma ideia, os 40 criminosos portavam coletes à prova de balas – para os quais a aquisição e porte, teoricamente, só pode ser realizada mediante licenciamento pela Secretaria da Segurança Pública e aprovação do Exército Brasileiro, além da exigência de apresentação de atestado de antecedentes criminais e comprovação de vínculo empregatício. Portá-los sem tal procedimento acarreta crime inafiançável. Ou seja, apenas por via do forte contrabando, contatos no interior das forças militarizadas, corrupção e “vista grossa” é que o crime organizado pode exercer um planejamento armado de tamanhas proporções.
Além do já mencionado, havia também a presença de dinamite para as explosões. Também foi constatada a presença de armas utilizadas em ataques aéreos e contra tanques de guerra. Foi encontrada ainda munição de metralhadora .50. Ainda segundo o ex-Secretário, este armamento “tem alcance de até 7 quilômetros, faz um estrago monumental. Uma arma dessas custa R$ 200 mil no Paraguai. Poucas quadrilhas têm isso”. Ele ainda afirma que “tal ataque só foi possível por falha na inteligência da PM paulista, que não previu a ação”. Se aqui tratou-se de simples “falha” ou do resultado de corrupção de amplo alcance nas forças policiais e militarizadas, nos resta, por enquanto, apenas a especulação e a observação das tendências nacionais nas relações entre organizações criminosas e de contrabando, forças policiais, milícias e instituições do Estado.
Realizando um parêntese reflexivo para pontuar as questões acima, constatemos ainda que tal episódio nos faz lembrar de uma recente apreensão de 117 fuzis, em sua maioria M-16 (típico armamento militar norte-americano) e alguns HK M27 (armamento exclusivo da Marinha norte-americana), que ocorreu em março de 2019, na casa de um amigo do miliciano Ronnie Lessa, na Zona Norte do Rio de Janeiro – maior apreensão de fuzis da história do Rio, superando inclusive a apreensão feita no Aeroporto Internacional do Rio em 2017, em que foram encontradas 60 armas vindas dos EUA dentro de aquecedores de piscina. Lembremos ainda que Lessa é o mesmo miliciano envolvido, segundo investigações do Departamento de Homicídios e do Ministério Público, no assassinato da deputada Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O breve parêntese comparativo serve para nos “ambientalizar” acerca da proveniência e destinos comuns de tal tipo de contrabando – além da classe criminosa tipicamente envolvida…
Retornando a Botucatu, sabemos que a polícia instantaneamente engajou-se no combate pela defesa das três agências bancárias – ou seja, o combate pela defesa do dinheiro de três instituições, e não dos civis postos em extremo risco no estabelecimento de um cenário de combate urbano (visto que nenhum funcionário ou civil foi ferido durante a operação dos criminosos), um cenário de guerra que coloca todos os moradores da cidade em gravíssimo risco de vida. Marcas de projéteis tanto dos criminosos quanto das forças policiais se espalham pela região central da cidade de 115 mil habitantes. Dois policiais militares foram feridos na operação, e apenas um dos fugitivos foi capturado. Este foi baleado após abandonar o carro na rodovia e tentar fugir a pé por uma área de mata. Segundo a polícia, ele fora socorrido, mas morreu a caminho do Hospital das Clínicas. Houve ainda a invasão de uma casa em que alguns dos criminosos fizeram os moradores de reféns, e alguns veículos foram queimados em pontos da cidade para tentar conter o avanço dos policiais.
A escolha pela operação de confronto ainda gerou, por parte da prefeitura de Botucatu, um comunicado via Facebook, onde consta:
“A Prefeitura de Botucatu solicita a todos os munícipes que durante esta madrugada permaneçam em suas casas e não procurem possíveis pontos danificados pela Cidade, para que isso não coloque em risco a segurança de todos e não interfira no trabalho das forças de segurança“. (grifo nosso)
A partir dos fatores mencionados acima, podemos concluir que a reflexão quanto à validade do modus operandi por parte da polícia não deve em momento algum ser descartada – não podemos cair numa visão simplista de “bang-bang” entre bons e maus, afinal, não estamos assistindo a um filme de Hollywood, tampouco estamos no Velho Oeste. Abrir um cenário de combate urbano não deve ser considerado uma via válida para tratar o crime ocorrido, visto que colocar os civis em meio ao fogo cruzado foi, em última análise, uma escolha do Estado, é de extrema irresponsabilidade e deixa claro a defesa de quais “valores” a operação empregou: o da propriedade acima de qualquer coisa; ou seja, obviamente, não a proteção das vidas – nem dos civis, nem dos policiais em exercício. Um Estado policial tem esta feição.
Sem o fim da instituição policial militar, não só tais operações seguirão ocorrendo e colocando a população em risco, mas quadrilhas do crime organizado continuarão se armando como se armam e se relacionando “como se relacionam”. No episódio em questão, não estamos vendo dois lados em conflito, mas dois corpos que dançam juntos. Não são dois fenômenos que se encontram, mas um único fenômeno que apenas parece ter dois lados.