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Política do Genocídio

Do golpe ao genocídio, a crise crônica da saúde pública

Profissionais da saúde denunciam a situação precária da saúde pública e a política que levou ao genocídio da pandemia no País

Nesta edição especial de domingo, o Diário da Causa Operária traz uma reportagem sobre a situação de grande precariedade do sistema público de saúde no Brasil, conjuntura que resulta principalmente da política neoliberal aplicada pelo governo ilegítimo de Bolsonaro, que promove a destruição dos serviços públicos para garantir o lucro da burguesia diante da crise econômica capitalista. A chegada da pandemia da COVID-19, no ano passado, provocou o agravamento das debilidades do sistema de saúde nacional e expôs a crise crônica de seu funcionamento. 

O Brasil está passando por uma verdadeira hecatombe social que, em poucos dias, deve atingir, oficialmente, a marca de meio milhão de brasileiros mortos devido ao contágio do coronavírus, produto de uma política genocida diante da pandemia, o número pode ser três vezes maior conforme relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além da COVID-19, o país enfrenta outras epidemias e endemias como dengue, febre amarela, sarampo, tuberculose, também o crescimento de doenças como hanseníase, que teve queda progressiva até 2016. 

Sobre os impactos do desenvolvimento da situação política – o golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff e ascensão de Michel Temer a presidência, bem como a eleição de Jair Bolsonaro por meio de uma fraude que prendeu o ex-presidente Lula – no sistema de saúde pública, o DCO coletou depoimentos dos médicos, Fernando Moreira Magalhães e Rangel José Alcântara Rodrigues, que são militantes do Partido da Causa Operária.  

  • Fernando é médico da família e atua num posto de saúde de bairro (Unidade Básica de Saúde -UBS), que fica na periferia da cidade de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo.  
  • Rangel é cardiologista, foi coordenador no Hospital de Campanha e atua em UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) na cidade de São Joaquim da Barra, interior do estado de São Paulo. 

A chegada da pandemia e a negligência do governo Bolsonaro 

Há consenso nas declarações sobre a negligência do governo Bolsonaro diante da chegada da Covid-19 no Brasil, mesmo com mais de um mês para planejar medidas de combate ao coronavírus, nada foi feito em absoluto. Em janeiro de 2020, por meio dos noticiários, já se sabia do surto da nova doença em Wuhan, capital da China, apesar do país ter identificado o vírus e comunicado a Organização Mundial da Saúde em novembro de 2019, também foi possível acompanhar a construção, em tempo recorde, de um hospital na cidade com 1.000 leitos para pessoas infectadas com coronavírus. Em fevereiro, os noticiários davam destaque para a evolução da crise na Europa, principalmente na Itália, onde os mortos se amontoavam nos hospitais e levou o sistema funerário do país ao colapso. Então, houve tempo suficiente, pouco mais de um mês, para as autoridades brasileiras elaborarem um plano de ação para a já esperada pandemia no País, com o primeiro caso identificado em 26 de janeiro e a primeira morte em 12 de março, não havia nenhuma medida de combate e prevenção à Covid-19.  

“A pandemia chegou ao Brasil com um certo atraso em relação a diversos locais do planeta, já tínhamos visto aquelas cenas horrorosas de caminhões levando corpos na Itália, a China construindo um hospital em 10 dias. Tudo isso, meses antes de chegar aqui. A gente teve tempo para se preparar para enfrentar essa situação. É lógico que se pensar no que vinha acontecendo no SUS nos últimos anos, não iriamos esperar a melhor resposta de todas desse pessoal, porque esse pessoal não está nem aí. Mas se esperaria um mínimo de planejamento”, declarou Fernando. 

Diante do grave quadro que se desenvolvia mundialmente, nenhuma medida de controle foi implementada nos aeroportos e transportes públicos no Brasil, o acesso ao País e a circulação internacional de pessoas acontecia sem nenhum controle. Não havia distribuição de máscaras, tampouco disponibilização de álcool 70% para higienização e não se realizava testes nas pessoas. Dessa forma, não era possível identificar portadores do vírus, realizar isolamento dos infectados e tampouco rastrear possíveis contatos, procedimentos que nunca se tornaram realidade. 

“Quando já havia em fevereiro aumento importante dos casos na Europa, os passageiros estavam circulando, saindo do Brasil para Europa e Estados Unidos, depois voltando sem controle de temperatura, sem quarentena, sem testes de Covid-19 e tudo isso já poderia ter sido feito”, afirmou Rangel. 

O governo Bolsonaro, que tem por obrigação intervir em situações de surtos de doenças, endemias e epidemias, não lançou nenhuma campanha de combate e prevenção diante da pandemia COVID-19, não massificou as informações sobre a doença de forma a orientar a população sobre os cuidados necessários e tampouco garantiu as medidas essenciais de segurança para o povo. O Ministério da Saúde, por sua vez, também não elaborou protocolos médicos de atendimento a pessoas infectadas, não disponibilizou notas técnicas e boletins para atualizar o conhecimento dos profissionais da saúde sobre a nova doença.  

“Os protocolos eram bem atrasados em relação aos conhecimentos científicos disponíveis na época, foram os próprios médicos que buscaram se informar das melhores condutas. Em governos anteriores, quem estava na linha de frente e tinha o conhecimento de ponta de tal doença durante uma epidemia era o Ministério da Saúde. Nos casos de dengue, de febre amarela, a principal referência de informação, eram as notas técnicas e boletins do Ministério da Saúde”, denunciou Rangel. 

A farsa do isolamento social 

Diante da política radical defendida por Jair Bolsonaro, o funcionamento de todos os setores sem qualquer medida de segurança para a população, inclusive incentivou e participou de aglomerações sem o uso de máscara, a direita tradicional, com destaque para João Doria (PSDB), buscou obter ganhos políticos com a histeria da classe média pelo isolamento social. Da mesma forma aconteceu com o lançamento farsesco da vacina que nunca existiu. Assim, os governadores, que apoiaram o golpe de Estado no País e que conduziram à situação atual, ganharam afagos das lideranças de esquerda pela suposta civilidade e pela suposta defesa, semeando confusão no interior do movimento operário. 

A farsa da política do isolamento social, que a direita “civilizada” e “científica” buscou usar como trunfo político, ficava escancarada na defesa da reabertura das escolas para aulas presenciais durante o período mais crítico desde a chegada da Covid-19, onde a média de mortos atingia a marca de 3 mil pessoas por dia. Mas foi uma recente pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que comprovou de maneira cabal essa fraude grosseira, no universo de mais de 85 milhões de trabalhadores em atividade no País, pouco mais de 7 milhões gozaram do privilégio de ficar em casa, um grupo seleto de pessoas majoritariamente brancas e com ensino superior. 

“…sobre o isolamento social, que o pessoal pregava: “fique em casa”, jargão que ficou muito famoso, que era praticamente impraticável para a maior parte da população. Durante um tempo, foi um discurso que vigorou e que, por exemplo, no lugar que eu trabalho, não faz o menor sentido falar um negócio desses. Estava todo mundo trabalhando, eles falharam muito em campanha do tipo, incentivo ao uso de máscaras, de como fazer medidas de higiene para evitar propagação, a questão do transporte público lotado, que nunca deixou de ser lotado em nenhum momento da pandemia. Sempre víamos os ônibus com gente saindo pelas janelas, pendurada…”, argumenta Fernando. 

A grande massa trabalhadora nunca trabalhou em home office, os trabalhadores dos transportes e os trabalhadores da produção nas fábricas nunca tiveram suas atividades interrompidas ou diminuídas, os transportes não foram ampliados e aglomerações nos terminais permaneceram inalteradas, a indústria também não reduziu a produção e tampouco os turnos de trabalho, situação que demonstra o erro político da esquerda em se debruçar sobre a política do “fique em casa”. Dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) demonstram que enquanto a burocracia fechava os sindicatos, os desligamentos por morte dos trabalhadores aumentaram em 20%. 

Rangel, que foi coordenador do hospital de campanha em São Joaquim da Barra (SP) de abril até novembro do ano passado, nos contou que a maior parte dos infectados pelo coronavírus eram trabalhadores das indústrias da região, principalmente do frigorífico da JBS. Mesmo com grande número de infectados a produção de corte de frango nunca parou, nenhuma medida para segurança dos trabalhadores foi implementada e os transportes continuaram lotados. Denunciou ainda, a política criminosa da empresa do não cumprimento do período de isolamento dos trabalhadores: 

“Começaram a chegar muitos casos procedentes de lá, a produção nunca chegou a parar. Conversei com pacientes que relataram que funcionários do frigorífico com Covid-19 apresentavam os atestados, mas o médico vinculado à empresa os liberava somente por 7 dias e não por 14 dias conforme a orientação para isolamento. O paciente voltava a trabalhar quando tinha uma melhora dos sintomas, mas no período em que ainda podiam transmitir o coronavírus.” 

É importante destacar que a categoria de trabalhadores dos frigoríficos tem um dos maiores números de afastamentos em decorrência da Covid-19 depois dos trabalhadores da saúde, até março os números registravam quase 3 mil trabalhadores. A categoria também sofre grande ataque dos patrões com apoio de Bolsonaro, que buscam extinguir a Norma Regulamentadora 36, que garante descanso de 20 minutos dentro de um par de horas trabalhadas e outras medidas para preservação da saúde dos trabalhadores em condições extremas de temperatura. 

Rangel relata ainda que há na região três metalúrgicas e uma usina sucroalcooleira, chegou a visitar os sindicatos e as portas de fábricas, mas não teve sucesso: 

“Eu cheguei a conversar com o sindicato dos trabalhadores rurais da usina e me disseram que não mudou nada em relação à questão do transporte, há vários trabalhadores infectados e que não houve nenhuma mudança na questão do trabalho. Eu fui no sindicato, estava até aberto, mas muito ausente. Eu me ofereci a dar suporte em alguma dúvida técnica, convoquei eles para o Ato de 1º de Maio, mas não demonstraram interesse. Fui também no Sindicato dos Metalúrgicos, mas estava fechado. Cheguei a conversar com metalúrgicos na porta das empresas, me disseram que nunca parou nada, que sempre funcionou do mesmo jeito. A cidade passou por momentos de fechamento, não lockdown, mas não houve nenhuma mudança no local de trabalho, nenhuma alteração nos horários desses trabalhadores. O que uma das empresas que conversei fez, foi fornecer álcool em gel e máscara, e mais nada. E continua tendo casos, os pacientes suspeitos eram afastados, mas não teve nenhuma mudança mais importante, mesmo na pior fase da pandemia. E os sindicatos, nas duas vezes que fui estavam fechados. Fui pra fazer a convocação para o Ato de 1º de Maio e estavam fechados.”   

Como se verifica, não há diferença no desenvolvimento da pandemia nos diferentes países do mundo, assim como foi verificado na Itália, que foco de contágio do coronavírus eram as fábricas, no complexo industrial de Bérgamo, há indícios suficientes para constatar a mesma realidade no Brasil, nunca houve qualquer intervenção do poder público e tampouco das organizações de luta dos trabalhadores nas fábricas de todo país. 

Outro aspecto importante que Fernando levanta é a questão do auxílio emergencial, que deveria ser de pelo menos um salário mínimo (R$ 1.100) e também da disponibilidade de abrigos para moradores de rua, conforme explica Fernando: 

“Faltou esse Auxílio Emergencial que deveria ser muito maior do que os 600 reais, para que as pessoas realmente poderem fazer algum tipo de isolamento. E fora que deveria ter uma outra dinâmica também, porque as pessoas vivem em ambientes muito insalubres, vivem apinhadas nos grandes centros. O pessoal está desempregado, morando na rua, muita gente na rua, então não tem há condição sanitária decente. Deveria haver abrigos, coisas do tipo, durante esses períodos, em que fosse necessário deixar as coisas mais restritas. Tinha que ter um mínimo de condições para que as pessoas pudessem fazer esse isolamento, esse distanciamento, até mesmo um eventual lockdown. O que faltou foi disponibilidade e interesse do governo em ajudar, em fazer as coisas pra população.” 

A questão do uso de máscaras 

A questão do usa das máscaras esteve presente em todas as categorias de trabalhadores e em todos ambientes públicos, a utilização inadequada foi geral. O uso de máscaras nesses ambientes se tornou obrigatório, mas sem qualquer garantia de sua eficácia. As pessoas não receberam qualquer orientação sobre o tipo ideal de máscara que se deve utilizar, que geralmente são escassas nas farmácias e custosas para aquisição, também informações sobre como utilizar, o período de validade da proteção contra o vírus, a questão do tamanho e ajustes ao rosto. A indisponibilidade de forma gratuita para as pessoas em todos ambientes, não garantir essa medida, que acaba se tornando um protocolo sem efeito. Fernando denuncia essa contradição:  

“Quando era consenso sobre o uso das máscaras, os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), não havia chegado pra nós, ficou meses para normalizar o uso de máscaras. Pra se ter uma ideia, tem uma máscara que é a melhor, a N95, que hoje é o padrão. Se existe uma recomendação para usar essa máscara, é essa que tem que ser usada, é a que mais isola, tem mais de 90% de eficiência pra filtração de vírus, partículas menores. Eu cheguei a usar uma máscara dessas por 1 mês inteiro, era protocolo ter uma máscara dessas, mas se ela ficar 10 horas seguidas no teu rosto, ela umedece e já não serve pra nada. Mas o protocolo que tinha era de você ficar usando uma dessa o mês inteiro…” 

No Brasil, não foi criado nenhum programa de programa de distribuição de máscaras e de garantia das condições de higiene para a população. Nem mesmo nos ambientes hospitalares e demais estruturas da saúde pública foram implementadas tais ações. Até mesmo os profissionais da saúde ficaram desprotegidos, Fernando denuncia também as condições riscos de infecção pelo coronavírus que eram submetidos no trabalho: 

“Eu trabalhava 8 horas por dia, mas o plantonista, que está numa UPA, num hospital, numa enfermaria, numa UTI, ele está fazendo um plantão de pelo menos umas 12 horas. Isso é o que a gente tem de modelo. Se o cara usar a máscara 8 horas seguidas, já era, não serve pra mais nada. E o que tinha pra gente, era ficar usando a mesma máscara, mas a máscara ficava suja, ficava horrível, e claramente já não servia ao que ela se propunha. Chegavam umas máscaras horríveis que não ajudavam em nada, ficava toda aberta na parte de cima, não havia aquela presilha para isolar. Então, essa máscara e nada, era a mesma coisa, pra não dizer que não tem nada, um papel na tua cara, alguma coisa pra dizer que protege. O EPI foi uma coisa marcante pra gente.” 

A falta de testes em massa    

A medida mais importante para conter o avanço desenfreado do coronavírus no início da pandemia, quando ainda não existia nenhuma vacina disponível, era a testagem em massa de toda população do país. Além dessa ação nunca ter sido colocada em prática, a testagem nos hospitais sempre foi muito deficitária, nunca houve disponibilidade massiva dos testes e nem há agora também. Rangel relata as dificuldades na aquisição dos testes: 

“Chegaram os primeiros testes em abril, e detalhe, os testes rápidos, os testes ruins, que não servem muito para fazer o diagnóstico de Covid-19, mas era o que tínhamos. Chegaram em abril por compra direta da prefeitura. A prefeitura importou os testes. Ficavam fechados em armários da Secretaria da Saúde, e pouca gente tinha acesso a esses testes. Fazíamos diagnóstico somente em casos suspeitos mesmo. Depois em junho, no aumento da pandemia, começaram a chegar mais testes do governo federal, sempre esses testes piores (testes rápidos). Em junho e julho chegaram os testes de cotonete, aquele que é melhor, só que em pequenas quantidades. Em agosto esse teste sumiu, parou de chegar, não teve mais. Houve uma época em agosto que não teve teste nenhum, não conseguíamos fazer diagnóstico e os pacientes brigavam.”    

Rangel também nos conta também como os pacientes tiveram os tratamentos prejudicados, após o período de aumento do contágio, onde os testes já não eram suficientes: 

“Na época houve bastante rigidez pra fornecer estes testes, nem todo mundo podia fazer o teste, pois haviam poucas unidades, a prefeitura havia comprado pouco. A gente esperava o paciente ter pelo menos 7 a 10 dias de sintomas pra depois fazer o teste rápido, que é o teste de furar o dedo, que verifica os anticorpos do vírus, pra depois confirmar se a pessoa havia sido infectada ou não. E a gente sabe que esperar 7 a 10 dias pra agir sobre uma doença, pro paciente saber o diagnóstico, é um atraso pra isolar o paciente, pois ele não sabe se tem ou não, se fica realmente isolado ou não, pra podermos controlar a doença, saber se o paciente precisa voltar antes. Sabemos que o paciente que tem coronavírus e, por exemplo, tem alguma comorbidade, mesmo o paciente não tendo sintomas graves, a gente deixa o paciente monitorado, ele fica mais perto do médico, a gente pede pra ele voltar mais frequentemente à unidade.” 

Diante da escassez de testes, do surto de contágio entre os profissionais da saúde e da intervenção direta do ex-prefeito, Marcelo Mian, pela testagem dos agentes de segurança pública, Rangel decidiu se desligar da coordenação do Hospital de Campanha. Explica: 

“…ao invés de testar os profissionais da saúde que estavam com suspeita, foram testar o pessoal de segurança pública, a Polícia Militar e a Polícia Civil. Foi nesse momento que eu sai, pois não queria fazer parte disso. A Polícia Militar e a Polícia Civil iam lá no Hospital de Campanha fazer esses testes, sendo que a nós não podíamos fazer, que trabalhava, que entrava em contato com o público, direto com os contaminados, não podíamos fazer os testes, mas a Polícia estava fazendo.” 

Marcelo Mian foi eleito pelo PT no primeiro mandato em 2013, devido à companha golpista contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, se filiou ao PPS, partido pelo qual foi reeleito em 2017, e, durante seu último mandato, mudou para o Cidadania. 

Para Rangel, a maior disponibilidade de testes atualmente se deve a diminuição da demanda de testes pelos países imperialistas em decorrência do avanço da vacinação de suas populações: 

“Boa parte do aumento da oferta de testes é que diminuiu a demanda dos países imperialistas, Estados Unidos e Europa. Porque a pandemia por lá não está como no ano passado, estão vacinando mais – lógico, ainda tem muitos casos -, mas eles estão com a vacinação bem mais adiantada. Então, está chegando mais testes.”    

Falta de equipamentos e medicamentos 

Os Hospitais de Campanha não deveriam sequer receber o nome de “Hospital”, pois sequer atendem os requisitos mínimos para tal. Não são hospitais de fato, não dispõem da estrutura necessária, são salas de atendimento médico improvisadas, que tem objetivo ganhar algum tempo até que abrir vagas nos hospitais. Rangel nos explica como são essas unidades de atendimento: 

“Nesse Hospital de Campanha, eu fui o coordenador e cheguei a trabalhar 6 meses, de abril de 2020 até novembro de 2020. O lugar era um hospital entre aspas, vamos dizer assim. Era uma área, com pouca infraestrutura hospitalar, disponibilizada para atendimentos de pessoas com suspeita de Covid-19, uma sala de atendimento e uma sala de estabilização para pacientes com situação mais grave, um lugar onde o paciente aguardava até surgir uma vaga no hospital. Era para não misturar os pacientes com Covid-19 com os pacientes da Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Foi feito propaganda de que era um hospital, tinha até oxigênio, mas não tinha as medicações necessárias, demorava pra chegar e quando chegava não era suficiente. Não havia funcionários suficiente, os funcionários estavam muito sobrecarregados, a demanda começou a aumentar muito aqui na cidade, principalmente nessa época de junho e julho do ano passado…” 

Apesar dessas unidades serem bastante precárias para o atendimento dos infectados pelo coronavírus, elas cumprem o papel de retardar o colapso dentro dos Hospitais. São estruturas que podem ser melhoradas, mas estão sendo desmontadas em todo país como aconteceu com o Hospital de Campanha do Estádio do Pacaembu em São Paulo. Fernando criticou duramente esse fato: 

“Houve um tempo de 9 meses, vários exemplos no mundo de como fazer as coisas corretamente, por exemplo, o hospital de campanha. Se constrói, mantém, e já planeja expandir, pois não se sabe o que pode vir depois. Os outros países já haviam passado pela segunda onda, alguns estavam começando a terceira onda, então se sabia que viria mais chumbo por aí. Mas o que se via, era os hospitais sendo desmontados, aqui em São Paulo desmontaram o Pacaembu…” 

Fernando nos conta também que a falta de insumos é muito sintomática, até mesmo medicações que integram os protocolos médicos de atendimento ao paciente com Covid-19 não há disponibilidade. Como é o caso do Oseltamivir, antiviral indicado para pacientes de risco, por exemplo, diabéticos, hipertensos e idosos, ajuda na redução da quantidade de vírus circulante no organismo para evitar graves infecções. Mas não adianta colocar na prescrição porque não se encontra na rede pública e tampouco nas farmácias privadas, como declara: 

“…ainda consta em vários protocolos. Acho interessante porque se tivesse disponibilidade da medicação, faria muito sentido, mas o que acontece é que não tem. No dia em que o protocolo foi lançado, estava em falta em todas as farmácias do Brasil. Um negócio bizarro.” 

Rangel relatou o que se passa nos Hospitais de Campanha, casos de pacientes que sofreram infarto durante a internação e que foram prejudicados pela falta da medicação, também de outros casos onde não se tinha antibióticos mais fortes para medicar e ainda casos de insuficiência respiratória que resultaram em óbitos por falta de respirador: 

“Houve caso de paciente que sofreu de insuficiência respiratória, de falta de ar, e teve uma parada cardíaca por falta de respirador, depois conseguiram reanima-lo, ele foi transferido pra UTI da Santa Casa, mas lá ele faleceu. Boa parte desse prejuízo foi por falta de materiais no Hospital de Campanha. Recentemente, houve um caso, que inclusive foi noticiado pela EPTV (Rede Globo) da região… No Hospital de Campanha, teve um vazamento no oxigênio do hospital, o paciente entrou em suficiência respiratória e teve uma parada cardíaca. Foi transportado com urgência para a Santa Casa, mas faleceu, porque não deu tempo de reanima-lo. Na notícia da EPTV, foi divulgado que o paciente chegou na Santa Casa, como não tinha vaga na UTI, que ele ficou aguardando e faleceu por falta de vaga. Mas não contaram que o paciente estava no Hospital de Campanha, que houve esse problema com o oxigênio e que por falta de oxigênio o paciente faleceu.”    

Falta de profissionais para atendimento da Covid-19 

No sistema público de saúde, a falta de profissionais e de estrutura médica é algo crônico no Brasil.  Nos governos Lula, foram criadas universidades com objetivo de ampliar o número de médicos formados no país. Recentemente no governo de Dilma Rousseff, também foi criado o programa “Mais Médicos”, que trouxe médicos de Cuba com o objetivo diminuir momentaneamente esse déficit histórico. Porém, o governo Bolsonaro acabou com o programa e também vem desmantelando as universidades públicas. Meses depois, a pandemia da Covid-19 chegava ao Brasil. 

Devido à pandemia, profissionais da saúde, que fazem parte do grupo de risco, tiveram que ser afastados de suas funções. Outros profissionais acabaram sendo infectados pelo coronavírus e também tiveram que se afastar. Não houve nenhuma contratação para os substituir e tampouco houve contratação para atender à demanda de atendimento crescente devido à Covid-19. Fernando denuncia o desmonte de outras áreas da saúde para minimizar essa situação: 

“Inventavam coisas do tipo: ‘agora a UBS vai funcionar com 50% da capacidade de atendimento’, o que é bizarro, pois num momento de pandemia, onde deveria estar funcionando com mais intensidade, com equipes maiores, para poder dar um atendimento adequado à população, não, reduzem um pouco ali, travam um pouco o atendimento nessa parte aqui, depois vai voltando aos poucos ao normal. Um negócio que não faz muito sentido.” 

Nesse sentido, Rangel também denuncia que o número de médicos atendendo na UPA sempre foi deficitário, sendo necessário dobrar o quadro, o que aconteceu agora durante a pandemia, mas que também já está defasado devido crescimento dos casos da Covid-19. Além disso, os profissionais são fornecidos uma empresa de terceirização, não são contratados pela prefeitura. Mesmo na atenção básica a situação é muito precarizada, não há sequer metade do número necessário de médicos para atender toda população. Explica: 

Tem que ter um Programa Saúde da Família com um médico a cada 4 mil pessoas. E essa cidade só tinha 5 PSF. E era uma cidade de 52 mil habitantes, cobriria 25 mil pessoas. Então somente 50% da cidade estava coberta pela atenção básica. Que é onde poderiam ser tratados esses pacientes com suspeita de Covid-19, com quadro típico de um quadro gripal. A atenção básica teria que ter sido ampliada, contratado mais médicos para os PSF. E não foi ampliado, apesar de ter chegado mais verbas. Ouvi falar que a cidade recebeu 18 milhões em verbas do governo federal, e não foi feita nada em relação a atenção básica, que poderia ser mantido depois da pandemia e favorecer o atendimento depois desse período, mas não foi o que fizeram.” 

A situação da enfermagem é de precariedade total, há poucos profissionais capacitados e os que atuam nos hospitais são responsáveis por um grande número de pacientes, conforme declara Rangel: 

“Aqui existe uma enfermeira só pra UTI inteira, e que muitas vezes cuida de duas UTIs, como acontece onde eu trabalho em São Joaquim da Barra, e ainda cuida da enfermaria que são os pacientes que estão internados fora da UTI. É uma enfermeira pro hospital inteiro praticamente. Quem cuida são os técnicos de enfermagem. A gente sabe que o nível técnico de enfermagem é bom, mas ele não dá todos os subsídios que são necessários para um atendimento de qualidade aos pacientes. Precisa investir mais em formação, tem enfermeiros que são intensivistas, que seria o ideal. Pois além da pessoa fazer um curso de graduação, seria bom ter uma especialização em UTI. Então está muito aquém.”   

As mesmas práticas das empresas capitalistas acontecem nos ambientes públicos, a diferença é que a prefeitura não tem objetivo de lucrar, tampouco de economizar, seu compromisso deveria ser em salvar a vida da população a todo custo. Rangel relata que, mesmo infectados, os profissionais da saúde tinham que retornar ao trabalho:    

“Eu tive experiências com colegas que foram infectados e que trabalhavam na Santa Casa também, trabalhavam no hospital de campanha na época e trabalhavam na Santa Casa. E quando o paciente era infectado a Santa Casa pedia pra voltar também, mesmo sendo um hospital, pedia pra voltar antes do tempo que deveria de isolamento. Então, eles não poderiam ter voltado antes, com 7 a 10 dias já voltavam, mesmo ainda apresentando sintomas de Covid-19, mesmo ainda não tendo dado o prazo de isolamento. Não foi respeitado nem a questão do isolamento dentro do hospital. O que aconteceu? Teve um boom de infectados na Santa Casa no ano passado, por não haver o isolamento nem dos que estavam infectados, pois era necessário mão-de-obra, era necessário atendimento de enfermeiros.” 

Mesmo quando se amplia a estrutura das unidades, não há contratação de profissionais, como nos conta Rangel, sobre a criação de uma nova ala de UTI, para atender em ambientes separados pessoas com Covid-19 e pessoas não infetadas: 

“A UTI de lá sempre teve 12 leitos e metade dos funcionários foram remanejados para uma nova UTI que foi aberta, a UTI Covid-19, que tem 13 leitos. Então, estamos trabalhando com metades dos funcionários, já por conta da pandemia. A quantidade de profissionais que tinha na UTI normal, com 12 leitos, teve que dar pra 2 UTIs.” 

Em relação às UTIs, Rangel explica que quando todos os leitos para Covid-19 são ocupados, os pacientes são transferidos para outras cidades. E denuncia que, por critérios econômicos e interesses pessoais da direção, pacientes estão sendo internados nos leitos para não infectados pelo coronavírus, mesmo após testar positivo para Covid-19: 

“Então assim, teve uma paciente que era mãe de uma médica do hospital, de uma oftalmologista, de família importante da cidade, não havia vaga na UTI não-covid, mas arrumaram uma vaguinha pra ela nessa UTI, mesmo estando com exame positivo pra Covid-19, mesmo com o quadro clínico de Covid-19, colocaram ela na UTI juntos com pacientes que não tem covid-19.” 

Sobre a precarização do atendimento no sistema público de saúde, em decorrência da falta de profissionais, Rangel nos conta que também foi remanejado para o Hospital de Campanha deixando em prejuízo os atendimentos de cardiologia, veja sua declaração: 

“Eu sou contratado pela prefeitura por um concurso como cardiologista e fui remanejado para o Hospital de Campanha. Eu teria que atender 4 horas por dia, então eu parei de fazer os atendimentos cardiológicos e fiquei só com a parte do Covid-19. Então, meu salário não mudou, só mudei a função, em prejuízo aos atendimentos cardiológicos. É o cobertor curto, cobre o rosto e descobre o pé.”  

Segundo os depoimentos, não existe nenhum programa, nenhum incentivo para aumento das escolas médicas ou recrutamento de alunos para atender o aumento da demanda no SUS.  

A vacinação contra Covid-19 no Brasil 

Apesar da grande propaganda que os meios de comunicação fizeram sobre a vacinação no país, buscando alçar o governador do estado de São Paulo, João Doria, como “salvador da pátria”, foram imunizados apenas 10,4% de toda população brasileira. A primeira dose da vacina foi aplicada em pouco mais de 45 milhões de pessoas, que corresponde 21,3% da população brasileira, mas a segunda, que garante a imunidade ao coronavírus, foi aplicada em apenas metade dessas pessoas conforme dado apresentado. 

A vacinação como se verifica caminha muito lentamente, a imunização não deve chegar à metade da população até o final do ano, o que vai resultar em centenas de milhares de novas mortes pela Covid-19. Enquanto isso, o “científica” colegiado da Anvisa, de forma unânime, determinou o bloqueio da vacina russa, Sputnik V, sob alegação de que aumentaria as chances de contágio, a vacina foi apresentada como a mais eficaz contra o coronavírus (95%) e foi aprovada por 62 agências regulatórias de países de todo o mundo.  

Segundo Kirill Dmitriev, diretor do Fundo Soberano da Federação da Rússia, que financiou o imunizante da Sputinik V, a decisão da Anvisa resulta da ingerência do governo dos Estados Unidos na política de saúde do Brasil, de forma a garantir esse mercado para as vacinas do imperialismo.  

O presidente, Jair Bolsonaro, deu inúmeras demonstrações de que não tem qualquer preocupação com a ciência ou com a saúde da população, sugeriu aplicação de hidroxicloroquina nas pessoas, negou a pandemia dizendo se tratar de uma gripezinha, incitou a população a não usar máscaras, foi contra a compra das vacinas e defendeu o funcionamento das atividades sociais sem medidas de segurança. Fernando desabafa sobre a proposta da Pfizer foi negada por Bolsonaro: 

Negaram várias propostas de compra de vacina, a da Pfizer é um dos exemplos mais marcantes, foram 70 milhões de doses. Com isso, poderíamos ter adiantado a vacinação de um jeito, que começaríamos 2021 com um programa em andamento, e o que estamos vendo hoje de 3 mil mortos por dia, não iria chegar nem na metade disso.”  

O golpe de Estado e a situação geral da saúde 

Há um consenso dos entrevistados de que a saúde pública no Brasil sempre foi subfinanciada, que mesmo nos governos do PT com Lula e Dilma, havia um esforço muito grande para manter tudo funcionando bem, mas que mesmo durante esse período, nunca foi o ideal e que muitos leitos de UTI foram extintos desde 2010. Apesar disso, Rangel fala sobre quando chegou na universidade em 2001, as condições do sistema de saúde público eram muito mais precárias no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (PSDB): 

“eu entrei na faculdade em 2001, era governo FHC ainda – o Lula entrou em 2003-, no meio de uma greve de professores das instituições federais que durou 6 meses. E o hospital da universidade federal que eu entrei, estava com uma dívida estratosférica. Faltava tudo, papel higiênico, gaze. Havia vaquinha com ex-alunos para conseguir materiais básicos para atendimento dos pacientes e para o ensino. Em 2003, entrou o Lula, no meu 3º ano de faculdade, essas dívidas foram saneadas, as dívidas foram quitadas. A Faculdade de Medicina passou a ser Universidade Federal, o campus foi ampliado. Na época que eu entrei, só tinha os cursos de medicina, enfermagem, biomedicina. Depois, abriram outros cursos de saúde, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, e de outras áreas também, engenharia, exatas, humanas. Agora é uma universidade bem maior, que tem outro campus, foi aberto outro campus além do campus que tinha. Então salto de qualidade foi imenso, foi extraordinário. Não tenho como eu negar isso. É impossível não elogiar essa parte do governo (Lula) em investimento em educação e nos hospitais universitários, isso ficou patente…” 

Sobre a política de destruição da saúde dos governos tucanos, há mais de 25 anos no estado de São Paulo, Fernando também nos conta sua experiência ainda na universidade: 

“…a gente participou, na época que eu era graduando ainda, de um movimento de greve do HU, pra evitar um programa de demissão voluntária dos funcionários do HU, implementada na gestão do PSDB, que estava corroendo a estrutura do estado, e o nosso protesto era justamente contra isso, pois já sabíamos o que vinha por aí, não era só um programa de demissão voluntária, era um sucateamento da estrutura do HU, do ensino, da extensão, porque não é um hospital que atende só lá dentro, mas atende toda a região Oeste de São Paulo. Inclusive é o hospital de referência, por exemplo, a maternidade do HU, o pronto socorro de pediatria, é referência para toda essa região. E aí, do nada você vê fechando serviços, um monte de pessoas sendo mandada embora nos PDVs…” 

Fernando denuncia ainda, a política do PSDB de atender os interesses privados nas estruturas do sistema de saúde pública, como empresas “sem fins lucrativos” que administram setores, unidades e equipamentos: 

“O pessoal arruma uma OS de um conhecido pra gerir tal lugar. Daí entra um recurso, não se sabe o que vai ser devolvido pra população. Dizem que é sem fins lucrativos, uma coisa que eu nunca entendo. Que sentido faz uma estrutura privada administrar uma instituição pública sem ter fins lucrativos? O cara está lá de bom samaritano? Não vai tirar nenhum lucro ali? Não faz sentido.” 

E também a questão dos planos de saúde privados que atendem na estrutura pública: 

“Não é uma área necessariamente privatizada, mas que presta serviço para a rede suplementar de saúde. O que já é uma aberração, por definição. É um esquema de chegar num hospital de altíssimo nível público, interpreto como uma forma de se furar fila dentro desses ambientes. Entrando pelo convênio, a fila vai ser menor, a espera passa a ter menos gente, uma forma de deixar o atendimento mais rápido. O que é estranhíssimo. Nunca consegui compreender essa lógica, de como um negócio desses assim não causa um incômodo… parece que todo mundo convive com aquilo muito bem.” 

O golpe de estado de 2016, colocou no lugar da presidenta Dilma Rousseff, o golpista Michel Temer que sancionou a PEC do teto dos gastos públicos, que congelou o orçamento da saúde pública, já deficitária, por 20 anos. É importante destacar que Bolsonaro votou a fazer dessa criminosa medida que precariza os serviços. Ambos concordam que a partir desse marco o sistema de saúde encontrou num processo de destruição acelerado. Fernando conta da destruição de programas que buscavam dar uma qualidade de atendimento melhor a população: 

“A cada dia acontecia uma coisa diferente, por exemplo, eles aniquilavam o NASF, que é o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que é composto por equipes multiprofissionais, psicólogos, educadores físicos, nutricionistas etc. De repente, não havia verba pra esse tipo projeto. Isso era uma crescente desde o golpe de estado em 2016, essa tendência ao sucateamento. Antes mesmo da pandemia, determinado medicamento de alto custo, que o paciente não consegue comprar, acabou sendo retirado da farmácia popular, saiu do acesso ao SUS. Havia um determinado tipo de insumo para tratar paciente diabético, por exemplo, um glicosímetro, que é aquele que você mede na ponta do dedo a glicose do sangue da pessoa, isso está demorando muito mais para chegar. Uma gestante que precisa fazer no mínimo de 3 a 4 ultrassons durante a gestação, agora fica uma gestação inteira para fazer 1 ultrassom. Tudo isso num contexto de piora.”   

Rangel relata sobre a destruição das condições de trabalho dos profissionais, que passaram a trabalhar muito mais e receber salários menores: 

“A partir do Golpe, eu parei de atender, cortaram os atendimentos, então fizeram um concurso pra contratar cardiologista, mas era concurso público de ter que atender 40 pacientes em 4 horas, pra poder suprir a demanda. Então, não tem como, o contrato era inexequível. Você não consegue trabalhar da forma que eles queriam no concurso. Tanto que eu passei, mas não fui fazer, não fui trabalhar. Porque não tem como. E o valor muito abaixo do valor médio que se pagava por consulta. O SUS estava pagando 12 reais por consulta nesse concurso, sendo que a tabela no SUS é de 22 reais. Antes do Golpe, eu recebia 35 reais por paciente para atender quantos fosse possível. Não tinha essa questão fixa de atender tantos por hora. Eles diziam: “você tem 35 reais para atender quantos pacientes que você puder atender, a demanda nossa é gigante”, eu falava, então tá, atendia 24 pacientes por dia, 12 num período e 12 no outro. O concurso estava querendo que eu atendesse 40 pacientes, pagando 12 reais a consulta.” 

Nossos entrevistados fizeram muitas outras denúncias como corte de incentivos para os trabalhadores da saúde pública por atingimento de metas e também dos salários atrasados, principalmente dos profissionais da enfermagem, que não receberam horas extras na pandemia e que foram deslocados de outras unidades para atendimento à Covid-19.   

Como se verifica nas importantes informações, que nossos companheiros forneceram na reportagem, um retrato da situação atual da saúde pública no Brasil, pode-se concluir que seu problema permanente sempre foi a falta de investimento. O golpe de estado, bem como, a política aplicada pelo governo Bolsonaro teve como objetivo retirar esse investimento da saúde para atender os interesses dos capitalistas, como é a política neoliberal. Fernando uma questão importante que foi a liberação de 1 trilhão e 200 bilhões aos banqueiros no início da pandemia:  

“Imagina, se isso fosse convertido em medidas com as que chegamos a comentar? Tanto, medidas de orientação, fornecimento de equipamentos pra pessoas, ampliar o valor do auxílio emergencial num valor descente. Daria pra fazer tudo isso, com certeza, o que daria pra ter controlado tudo isso muito antes, teríamos uma situação muito diferente. Poderíamos até estar ensaiando reaberturas num momento desses. Mas não, o negócio é salvar capitalistas.” 

Para mudar essa realidade histórica da saúde pública, não basta ter um governo que participe do regime burguês, é preciso romper com a política neoliberal, que neste momento, significa derrotar o golpe de estado no país e que começa pela queda do governo Bolsonaro. É preciso que as organizações de luta dos trabalhadores mobilizem as amplas massas da população para colocar fim ao atual regime político, para colocar os profissionais da saúde e principalmente o povo à frente das decisões do sistema público de saúde. 

Abaixo disponibilizamos as duas entrevistas que contém mais detalhes sobre os temas abordados. 

Entrevista com Fernando Magalhães: 

Diário Causa Operária: Fernando, inicialmente pedimos para que faça uma breve apresentação pra que o leitor saiba quem estamos entrevistando. 

Fernando Magalhães: Meu nome é Fernando, eu sou militante do Partido da Causa Operária, milito no partido desde o ano passado, apesar de eu estar filiado ao partido desde 2018. Sou médico, desde que me formei, no final de 2014, eu trabalho em ambientes de Pronto Socorro, Emergência e fiz um pouco de enfermaria também. Cheguei a trabalhar na rede privada, mas atualmente estou na rede pública no posto de saúde, conhecido como UBS (Unidade Básica de Saúde). O posto fica localizado na periferia de Guarulhos, num bairro bem afastado, bem necessitado, popular, sem muitos acessos, sem muita assistência do poder público. Estou lá desde janeiro do ano passado, um pouco antes de começar a pandemia.  

DCO: Agora, dentre os aspectos gerais da saúde pública, fale sobre os impactos do golpe de estado e da chegada da pandemia para o sistema saúde pública, as mudanças que aconteceram nesse período, a questão da disponibilidade dos insumos, dos recursos, as dificuldades que surgiram…  

FM: Quanto aos recursos que temos disponíveis, nunca foi o ideal, sempre comento com as pessoas que sempre foi um sistema deficitário, sempre precisou de aporte financeiro, sempre precisou de mais investimento, de mais qualidade, mais contratação, longe de ser o ideal. Só que a pandemia fez cair a máscara do que é esse déficit de recursos no SUS (Sistema Único de Saúde). Tudo chegava com atraso, e quando chegava, chegava faltando. Já era um contexto de falta, de limitação extrema. A cada dia acontecia uma coisa diferente, por exemplo, eles aniquilavam o NASF, que é o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que é composto por equipes multiprofissionais, psicólogos, educadores físicos, nutricionistas etc. De repente, não havia verba pra esse tipo projeto. Isso era uma crescente desde o golpe de estado em 2016, essa tendência ao sucateamento. Antes mesmo da pandemia, determinado medicamento de alto custo, que o paciente não consegue comprar, acabou sendo retirado da farmácia popular, saiu do acesso ao SUS. Havia um determinado tipo de insumo para tratar paciente diabético, por exemplo, um glicosímetro, que é aquele que você mede na ponta do dedo a glicose do sangue da pessoa, isso está demorando muito mais para chegar. Uma gestante que precisa fazer no mínimo de 3 a 4 ultrassons durante a gestação, agora fica uma gestação inteira para fazer 1 ultrassom. Tudo isso num contexto de piora. Quando entrei pra trabalhar ano passado, as pessoas me diziam que: “isso aqui a 2, 3 anos atrás, era muito melhor, muito diferente”. E assim, começou a se normalizar um monte de situação precária, que segue essa estratégia neoliberal de sempre tender os serviços públicos ao sucateamento, pra logo depois arrumarem uma organização privada pra gerir, com a desculpa da falta de administração, serviço público inchado, sempre a mesma desculpa pra sucatear, e depois colocar alguma empresa privada com corrupções internas ao aparato do estado, que nem sempre vêm à tona. Então, nota-se uma realidade muito brutal em relação aos SUS, daí entra a pandemia…  

DCO: …vou só fazer uma observação, você percebe que esse sucateamento do sistema de saúde, dos recursos, a sua percepção é que foi a partir de 2016? Já não era bom, mas percebe que a partir dali tudo começou a piorar ainda mais? 

FM: Sim, se o sucateamento era um negócio mais lento, ganhou uma velocidade absurda depois de 2016.  

DCO: Então já existia um sucateamento, ou seja, de 2014 para 2016, ainda eram governos do PT, então você não percebia uma melhora, na verdade já havia piorado? 

FM: Sempre foi subfinanciado o sistema público, a gente começou a ver depois sobre os leitos de UTI, as histórias dos leitos de UTI… De 2010 até agora, a gente perdeu muitos dos leitos de UTI que haviam na rede pública e uma parte deles aconteceu nos governos do PT. Isso é uma forma de sucateamento. Nos vimos na pandemia o quanto faz falta um leito de UTI. E teve fechamentos de leitos assim. Depois a gente vai pegar retrospectivamente, sempre foi uma questão de subfinanciamento, as pessoas tentavam meio que sustentar a todo custo, como se fosse um esforço absurdo para manter algumas coisas de pé. Mas a coisa tomou uma velocidade, uma proporção absurda, nesse período que comentamos, de 2016 pra cá. Inclusive, eu fiz medicina na USP (Universidade de São Paulo), em Pinheiros, então eu tive acesso a vários hospitais escolas, desde o HC (Hospital das Clínicas), o HU (Hospital Universitário), Incor (Instituto do Coração), Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo), e há uma diferença muito nítida de quando eu terminei minha faculdade para o que é hoje. O HU da USP é um hospital, que pra mim, era o padrão, pois é um hospital totalmente público que atendia a região da zona oeste, um hospital modelo, tudo funcionava, os profissionais entravam ganhando bem, tinham plano de carreira interessante. Só que em 2, 3 anos, de 2014 pra cá, fecharam o pronto socorro, tiraram uma ala do hospital, não era mais um ambiente tão acadêmico quanto era. Eu vi o HU desmoronar. De 2002 a 2010, deu uma piorada. Inclusive a gente participou, na época que eu era graduando ainda, de um movimento de greve do HU, pra evitar um programa de demissão voluntária dos funcionários do HU, implementada na gestão do PSDB, que estava corroendo a estrutura do estado, e o nosso protesto era justamente contra isso, pois já sabíamos o que vinha por aí, não era só um programa de demissão voluntária, era um sucateamento da estrutura do HU, do ensino, da extensão, porque não é um hospital que atende só lá dentro, mas atende toda a região Oeste de São Paulo. Inclusive é o hospital de referência, por exemplo, a maternidade do HU, o pronto socorro de pediatria, é referência para toda essa região. E aí, do nada você vê fechando serviços, um monte de pessoas sendo mandada embora nos PDVs…  

DCO: Você tem ideia de quanto foi a redução do quadro? Da redução do orçamento? 

FM: Eu não sei em números. A desculpa do reitor que era ligado ao governo do PSDB é que “a folha de pagamento é o que está quebrando o HU”. Não se pensava em buscar mais recursos para o hospital, seria a folha de pagamento que estaria destruindo o HU e teria que mandar gente embora. 

DCO: E teve setores do hospital que foram privatizados, qual é a situação? Como ficou a situação aí, chegou a privatizar algum setor?  

FM: No HU, eu não sei se teve alguma privatização, acho que isso iria gerar muita polêmica, mas não que não fosse a intenção. Lá no HC tem algumas partes, do Incor e do Instituto Central, que atendem convênio. Não é uma área necessariamente privatizada, mas que presta serviço para a rede suplementar de saúde. O que já é uma aberração, por definição. É um esquema de chegar num hospital de altíssimo nível público, interpreto como uma forma de se furar fila dentro desses ambientes. Entrando pelo convênio, a fila vai ser menor, a espera passa a ter menos gente, uma forma de deixar o atendimento mais rápido. O que é estranhíssimo. Nunca consegui compreender essa lógica, de como um negócio desses assim não causa um incômodo… parece que todo mundo convive com aquilo muito bem. 

DCO: Mas você falou que teve fechamento de alguns setores…  

FM: Sim, teve um fechamento do pronto socorro da pediatria, que é um dos ambientes onde a gente mais atendia e mais aprendia no internato, que são os dois últimos anos de curso da graduação. Além de ser muito didático, este pronto socorro tinha uma parte assistencial enorme, muita gente da zona oeste era atendida ali com seus filhos. E simplesmente fechou. Deixou de existir de uma hora pra outra. 

DCO: Você acredita, inclusive, que essas mudanças trariam impacto também na formação dos profissionais, dos médicos? 

FM: Com certeza. Isso foi a primeira coisa que a gente já sentiu. Porque o estágio de pediatria era muito interessante. Atendia muitos pacientes, havia uma equipe de assistentes, de médicos muito dispostas a ensinar, a discutir os casos e, ao mesmo tempo, estávamos lá atendendo o tempo todo. Era um ambiente muito didático, muito assistencial, onde era possível exercer todas as partes do aprendizado da carreira, sem deixar nada a desejar. A primeira coisa que pensamos foi “como ficará o internato dos outros calouros que estão vindo agora? Será seriamente prejudicado”. Alguém pode pensar “o internato, tudo bem, os dois últimos anos na faculdade de medicina e tal”. Mas, se pensar em toda uma consequência em relação a isso. A residência também é prejudicada, toda a assistência é prejudicada, pois muita gente vai embora, já que muitas vezes estão próximos de se aposentar, daí inventam o PDV, não vai abrir mais concurso, não vai abrir mais nada. Aí chamam uma OS (Organização Social), o próximo passo é sempre esse, que é dessas empresas privadas, pra administrar o serviço público. Contratam do jeito deles, botam uma pressão ferrada, pejotizam os contratos. O cara trabalha sem segurança no emprego, e muitas vezes submetido a uma meta imoral… 

DCO: Isso já está acontecendo, Fernando?  

FM: Da OS no HU, não estou ciente. Isso acontece em um monte de equipamentos de saúde do município e do estado, eu sei te dizer vários exemplos aqui. 

DCO: Você poderia citar?  

FM: Posso. Tem OS que são ligadas às universidades. Por exemplo essa SPDM (Associação Paulista para Desenvolvimento da Medicina) é uma OS que é ligada à Escola Paulista, a UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). A da Faculdade de Medicina da USP era uma que chamava “Fundação Faculdade de Medicina”, que teve um problema porque ela administrava uma parte razoável dos aparelhos da zona oeste, mas parece que ela saiu, cedendo espaço para outras, como Santa Marcelina, que é uma OS grande. E tem OS bem menores, são tantas que não sei nem mesmo o nome delas, elas fazem contratos menores com as prefeituras, aqui em Guarulhos, sei que tem algumas. A entrada delas sempre dá uma crise, não sabe como reivindicar a esse pessoal. Eles seguem umas metas estranhas deles e não se consegue sentar com eles pra falar ” vamos unificar isso daqui, vamos normalizar aquilo ali”Esse um dos problemas. Tem OS que são ligadas às instituições que são as maiores, só que há outras que funcionam com esquema de corrupção mesmo. O pessoal arruma uma OS de um conhecido pra gerir tal lugar. Daí entra um recurso, não se sabe o que vai ser devolvido pra população. Dizem que é sem fins lucrativos, uma coisa que eu nunca entendo. Que sentido faz uma estrutura privada administrar uma instituição pública sem ter fins lucrativos? O cara está lá de bom samaritano? Não vai tirar nenhum lucro ali? Não faz sentido. É engraçado. A Santa Casa ainda tem a desculpa da filantropia, se fala “não, é uma instituição ligada à Igreja, e recebe doações pra manter, tal”. Agora, entregar isso na mão de OS sem fins lucrativos, o que vai acontecer? Alguém vai embolsar alguma coisa ali. 

DCO: No geral, todo tipo de atendimento parece estar sendo prejudicado, como nos casos citados por você das dificuldades atuais em medição da glicose, do ultrassom para gestantes, dentro da tua atuação, qual foi o maior impacto da pandemia, aquilo que você mais sentiu de defasagem no atendimento, nos recursos? 

FM: São tantas coisas juntas que não sei nem te elencar. Tem algumas coisas que ficam martelando na minha cabeça. Umas das coisas que mais me chamam a atenção é a ingerência em todos os poderes, em todas as esferas de poder. A pandemia chegou ao Brasil, com um certo atraso em relação a diversos locais do planeta, já tínhamos visto aquelas cenas horrorosas de caminhões levando corpos na Itália, a China construindo um hospital em 10 dias. Tudo isso, meses antes de chegar aqui. A gente teve tempo pra se preparar para enfrentar essa situação. É lógico, que se pensar no que vinha acontecendo no SUS nos últimos anos, não iriamos esperar a melhor resposta de todas desse pessoal, porque esse pessoal não está nem aí. Mas se esperaria um mínimo de planejamento. Quando era consenso sobre o uso das máscaras, os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), não havia chegado pra nós, ficou meses para normalizar o uso de máscaras. Pra se ter uma ideia, tem uma máscara que é a melhor, a N95, que hoje é o padrão. Se existe uma recomendação para usar essa máscara, é essa que tem que ser usada, é a que mais isola, tem mais de 90% de eficiência pra filtração de vírus, partículas menores. Eu cheguei a usar uma máscara dessas por 1 mês inteiro, era protocolo ter uma máscara dessas, mas se ela ficar 10 horas seguidas no teu rosto, ela umedece e já não serve pra nada. Mas o protocolo que tinha era de você ficar usando uma dessa o mês inteiro…  

DCO: …e quantas horas você trabalha por dia?  

FM: Eu trabalhava 8 horas por dia, mas o plantonista, que está numa UPA, num hospital, numa enfermaria, numa UTI, ele está fazendo um plantão de pelo menos umas 12 horas. Isso é o que a gente tem de modelo. Se o cara usar a máscara 8 horas seguidas, já era, não serve pra mais nada. E o que tinha pra gente, era ficar usando a mesma máscara, mas a máscara ficava suja, ficava horrível, e claramente já não servia ao que ela se propunha. Chegavam umas máscaras horríveis que não ajudavam em nada, ficava toda aberta na parte de cima, não havia aquela presilha para isolar. Então, essa máscara e nada, era a mesma coisa, pra não dizer que não tem nada, um papel na tua cara, alguma coisa pra dizer que protege. O EPI foi uma coisa marcante pra gente. Outra questão é a dos Hospitais de Campanha e o tempo para conseguir os aparelhos, os respiradores, os leitos, pra que a coisa não chegasse ao colapso. Isso ficou mais evidente nesta segunda onda, onde víamos médias móveis de 3 mil mortos. Veja só, houve toda aquela primeira onda que arrefeceu um pouco em outubro pra novembro. Se bem que em novembro teve aquela subida… 

DCO: …o estranho é que foi justamente no período eleitoral…  

FM: É, foi bem duvidosa essa queda mesmo. Mas veja só, vamos considerar que essa lógica é verdadeira. Vamos supor que teve essa queda significativa, que nós sabemos que não foi. Houve um tempo de 9 meses, vários exemplos no mundo de como fazer as coisas corretamente, por exemplo, o hospital de campanha. Se constrói, mantém, e já planeja expandir, pois não se sabe o que pode vir depois. Os outros países já haviam passado pela segunda onda, alguns estavam começando a terceira onda, então se sabia que viria mais chumbo por aí. Mas o que se via, era os hospitais sendo desmontados, aqui em São Paulo desmontaram o Pacaembu. Aqui em Guarulhos, fizeram um drive thru estranhíssimo, que só serviu pra se vangloriarem em campanha política… 

DCO: …fazer uma publicidade, né?  

FM: …exatamente. Quando se vê a finalidade do negócio, em todas as esferas de poder, a vontade é de não se fazer nada. Pelo menos aqui em São Paulo e na Grande São Paulo, isso ficou bem evidente, em vários lugares do país a gente conseguiu ver isso. Se tivéssemos um mínimo de organização e estrutura, conseguiríamos ter evitado, mesmo sem vacina, muitas mortes. O meu ambiente não é o mais estressado da pandemia, que é o ambulatorial, médico de família, eu faço atendimentos a pacientes com Covid-19, mas são pacientes sem muita gravidade. É muito raro chegar um paciente muito grave pra mim, porque o paciente, muitas vezes, já tem a noção de que naquela unidade de saúde, se for necessário fazer um exame, um raio-x, um exame de sangue, ele não vai conseguir e vai perder tempo até chegar no local aonde ele consiga. Então, fazíamos atendimentos aos casos leves e passávamos todas as orientações. Mas inventaram um protocolo, no qual teríamos que fornecer uma medicação, que seria Oseltamivir, e nem são os protocolos bizarros do Bolsonaro, esse protocolo tem uma lógica técnica. Como existe síndrome respiratória nesse período de inverno, causadas por vários vírus, não só o Sars-Cov-2, existe o Influenza, que é o da gripe, que pode causar síndrome respiratória aguda grave em alguns pacientes, uma porcentagem bem menor do que o da Covid-19. Então, essa medicação entrava num protocolo para os pacientes de risco, por exemplo, os diabéticos, hipertensos e idosos. Fazia sentido o uso, mas a questão é que não adiantava colocar na prescrição, o paciente não iria conseguir nunca essa medicação na rede pública e nem em farmácia particular, já começava por aí. Umas das medicações que entravam no protocolo já não é possível fazer.  

DCO: O que é essa medicação?  

FM: É um antiviral que ajuda a evitar as formas graves da infecção por Influenza. E no caso, seria essa respiratória aguda grave, que acontece também na Covid-19. O Oseltamivir ajuda a reduzir a quantidade de vírus circulante no organismo num determinado período de tempo, pra tentar evitar a gravidade.  

DCO: É importante essa medicação então? Mas ela não existe. 

FM: Ela estava em muitos protocolos, senão me engano, ainda consta em vários protocolos. Acho interessante porque se tivesse disponibilidade da medicação, faria muito sentido, mas o que acontece é que não tem. No dia em que o protocolo foi lançado, estava em falta em todas as farmácias do Brasil. Um negócio bizarro. Então em cada momento da pandemia, tem alguma coisa que eu lembro que está relacionada a essa falta de recurso que é emblemático. Então, às vezes é muito difícil elencar todas as coisas.  

DCO: Evidentemente faltam profissionais, teve contratação de pessoal, enfermeiro, técnico, médico? Muita gente se contaminou com o coronavírus? Como é essa realidade nos hospitais em que você atua?  

FM: Eu não estou atuando mais em hospital, atuo nessa UBS, e sei de realidades, pelo que colegas contam, dos hospitais onde eles trabalham e sei da nossa realidade da atenção básica, pois tenho contato com colegas em situação semelhante à minha, e faltam profissionais. Mesmo antes da pandemia. O que acontece na pandemia? Vários profissionais enquadrados nos grupos de risco, precisaram ser afastados, o que tornou a coisa mais deficitária ainda, pois não há nenhum tipo de contratação emergencial, pelo menos aqui, na realidade de Guarulhos, não nada surgindo sobre contratar, substituir os profissionais. E também não havia qualquer empenho, mesmo que existisse um ou outro contrato emergencial, o pessoal não falava assim: “não, vamos tentar pagar aqui um pouco mais, pra ver se a gente consegue suprir essa necessidade”. Não. Isso está fora de cogitação. Se não arrumou, paciência, vai ficar faltando. Fora os funcionários que adoeciam durante a pandemia e tinham que ficar muito tempo afastados, funcionários que ficavam internados por meses na UTI, e que depois voltavam totalmente debilitados, não conseguiam nem ocupar os postos que ocupavam antes por conta das sequelas. Tem a questão das gestantes, que era um grupo de muita atenção, pois gestantes que no final da gestação se infecta, corre o risco de ter trabalho de parto prematuro. É uma outra questão para lidar. E não se via nada, o funcionário se afastava, o ambiente de saúde virava o caos. Porque faltava gente pra conduzir os serviços e não tinha nada que resolvesse. Inventavam coisas do tipo: “agora a UBS vai funcionar com 50% da capacidade de atendimento”, o que é bizarro, pois num momento de pandemia, onde deveria estar funcionando com mais intensidade, com equipes maiores, para poder dar um atendimento adequado à população, não, reduzem um pouco ali, travam um pouco o atendimento nessa parte aqui, depois vai voltando aos poucos ao normal. Um negócio que não faz muito sentido. 

DCO: Queria saber sua avaliação, de maneira geral, da política que foi levada adiante durante toda a pandemia. O que você acha que poderia ter sido evitado. Por exemplo, eu entrevistei o cônsul de Cuba, e ele falou da preparação por parte deles para a chegada da Covid-19. Tinham várias organizações pelos país inteiro, que já se comunicavam, já se utilizavam máscaras. Como você vê essa realidade aqui no Brasil? Quais foram os erros gritantes da política de saúde levada adiante durante a pandemia? 

FM: Entra um pouco naquilo que estávamos comentando. Veja Cuba, por exemplo, é um país infinitamente mais pobre que o Brasil, com muito menos recursos, mas eles têm uma noção de gestão deste tipo de situação, muito mais eficiente e organizada do que o Brasil. Houve cenas patéticas aqui no Brasil, como naquela questão do avião para retirada de brasileiros na China. Foi uma comitiva de profissionais da saúde, inclusive uma das profissionais, uma médica era professora minha, muito competente por sinal, foram lá para buscar o pessoal que estava isolado na China, voltaram todos sem nenhuma doença, pois estavam num país que estava bem mais organizado pra enfrentar, apesar de naquele momento ainda ser o epicentro… 

DCO: …inclusive houve pessoas, dessas que vieram da China, que deram o depoimento que queriam voltar pra lá.  

FM: Com certeza estavam mais seguros lá. Isso não tenho dúvidas. E havia um trânsito livre para os que vinham da Europa, dos EUA e a Covid-19 chegou assim. Teve aquela missão que foi televisionada, teve todo aquele jogo de cena, o Bolsonaro não deixava o pessoal da China entrar, só se importavam em barra o pessoal da China, pra você ver o nível da coisa. E aí a Covid-19 chegou do mesmo jeito, com um certo atraso, conforme a gente comentou. Não houve qualquer tipo de preparação aqui pelo governo federal, assistimos sobre a questão da cloroquina, sobre negar a vacina, imagina, já não era de se esperara nada desse pessoal, se você ver o histórico, pegar o retrospecto de tudo. Mas também se via, aquelas farsas mesmo, sobre o isolamento social, que o pessoal pregava: “fica em casa”, jargão que ficou muito famoso, que era praticamente impraticável para a maior parte da população. Durante um tempo, foi um discurso que vigorou e que, por exemplo, no lugar que eu trabalho, não faz o menor sentido falar um negócio desses. Estava todo mundo trabalhando, eles falharam muito em campanha do tipo, incentivo ao uso de máscaras, de como fazer medidas de higiene para evitar propagação, a questão do transporte público lotado, que nunca deixou de ser lotado em nenhum momento da pandemia. Sempre víamos os ônibus com gente saindo pelas janelas, pendurada…  

DCO: …distribuição de máscaras, orientações nos bairros, como você vê tudo isso?  

FM: Uma coisa que poderia ter sido feita, seria uma organização utilizando os agentes comunitários de saúde, que poderiam ter sido muito mais eficientes do que como foi conduzido. Poderiam ter feito o que fazem em Cuba muito bem, que é identificar os casos, focos, pra tratar localmente e dá condições para que as pessoas consigam realmente se isolar e não sair, não propagar. Isso não teve em momento nenhum. Apesar do SUS ter uma capilaridade grande no Brasil, tem postos de saúde nos lugares mais remotos, então sempre tem agentes comunitários, tem equipes mínimas. Só que as gestões da direita burguesa, não sabem utilizar, sai uma diretriz federal que precisa ter tal estrutura de saúde naquela região: “ah, tá aqui a estrutura”. A questão é que nunca usam da forma como deveriam. Diferente de Cuba, onde tudo tem a sua função, num contexto de pandemia, de infecção, de epidemia local, todos já sabem como vai funcionar, já tem um planejamento pra coisa ser conduzida. Aqui não, sai um entra outro…  

DCO: …mas não seria mais uma negligência, pois a pouco tempo ficamos sabendo da política dentro dos quartéis do exército, onde havia um cuidado muito rigoroso com a questão do coronavírus, da utilização de máscaras, álcool em gel, tinha toda uma logística, pois sabiam como atuar nessa situação, para não se contaminar, como fazer socorros e tudo mais…  

FM: Isso é verdade mesmo. Essa questão da negligência, por parte do governo federal sequer esconderam isso, o governo está coalhado de militares, e as próprias Forças Armadas colocaram um esquema de identificação desses casos na estrutura deles, que nem é tão direcionada para a saúde assim, na verdade é uma estrutura militar, tem os profissionais de saúde ali, mas não é um direcionamento, se não fosse essa negligência, poderia haver um direcionamento maior dos outros aparelhos de saúde, que são direcionados pra isso, e que já enfrentaram outras situações. Acho que comparável à Covid-19, só a gripe espanhola, mas em outras situações de infecções, de surtos, de epidemias, havia uma atuação da saúde… Entra muito no que você falou: negligência. A gente às vezes até cria uma expectativa, “ah, o cara é incompetente, o cara é burro, não sabe fazer as coisas”, não, na verdade temos que pensar que a coisa era muito óbvia e os caminhos também, enquanto várias outras entidades, outros países, estavam lidando com a situação e já tinham um caminho definido, mesmo que tivessem errados…  

DCO: Até porque você coloca uma questão, você citou a gripe espanhola, na verdade essa experiência já estava acumulada, e geralmente o exército age nessas situações. A gente viu que tudo que foi gasto dentro dos quarteis, pra terem todos esses cuidados, pra que eles pudessem ficar protegidos, a gente percebe que o governo não quis gastar, não quis dar toda essa estrutura para toda população, isso teria uma despesa. A gente viu que Cuba praticamente conseguiu controlar o contágio, sem ter a vacina.  

FM: Sim, a própria China foi um exemplo disso. Apesar de todas as vezes que se fala da China, alguém dizer: “ah, mas os dados não são confiáveis”. Eles simplesmente, fizeram os casos cair, em três semanas, agindo de forma enérgica. Tem outros exemplos de países, que tem uma dinâmica mais próxima a do Brasil e que conseguiram lidar melhor com a questão. Fica muito evidente que não havia mesmo interesse em fazer as coisas da maneira correta.  

DCO: O que você vê que faltou pra nós? Faltou formar esses conselhos nos bairros pra administrar a situação? Distribuição de máscaras, contratação de pessoal, ampliação de leitos…Tem a questão dos respiradores, faltou isso? No geral, o que teria ajudado a conter a pandemia lá no começo, e hoje qual seria a solução para os problemas maiores que você pode verificar? Nesse momento, não tem outra coisa que não seja também a vacina?  

FM: No início, faltou a disposição e o interesse do poder público, de todas as esferas em fornecer condições para as pessoas, tanto em campanhas mesmo de dizer: ” o jeito certo de usar máscara é esse, a máscara você consegue e tais lugares”. Faltou esse Auxílio Emergencial que deveria ser muito maior do que os 600 reais, para que as pessoas realmente poderem fazer algum tipo de isolamento. E fora que deveria ter uma outra dinâmica também, porque as pessoas vivem em ambientes muito insalubres, vivem apinhadas nos grandes centros. O pessoal está desempregado, morando na rua, muita gente na rua, então não tem há condição sanitária decente. Deveria haver abrigos, coisas do tipo, durante esses períodos, em que fosse necessário deixar as coisas mais restritas. Tinha que ter um mínimo de condições para que as pessoas pudessem fazer esse isolamento, esse distanciamento, até mesmo um eventual lockdown. O que faltou foi disponibilidade e interesse do governo em ajudar, em fazer as coisas pra população. Nesse momento, o que é gritante é a falta da vacina. O que faltou foi o interesse na compra da vacina, porque de fato nunca houve esse interesse por parte do governo. Negaram várias propostas de compra de vacina, a da Pfizer é um dos exemplos mais marcantes, foram 70 milhões de doses. Com isso, poderíamos ter adiantado a vacinação de um jeito, que começaríamos 2021 com um programa em andamento, e o que estamos vendo hoje de 3 mil mortos por dia, não iria chegar nem na metade disso. Se preocuparam em jogar dinheiro nas mãos dos capitalistas, isso ficou bem claro, bem óbvio. Logo no início da pandemia, umas das primeiras medidas feitas foi aqueles 1 trilhão e 200 bilhões que eles liberaram de liquidez para o setor financeiro. Imagina, se isso fosse convertido em medidas com as que chegamos a comentar? Tanto, medidas de orientação, fornecimento de equipamentos pra pessoas, ampliar o valor do auxílio emergencial num valor descente. Daria pra fazer tudo isso, com certeza, o que daria pra ter controlado tudo isso muito antes, teríamos uma situação muito diferente. Poderíamos até estar ensaiando reaberturas num momento desses. Mas não, o negócio é salvar capitalistas. Então é isso, é vontade do poder do estado, que atuou em função dos capitalistas, em função da burguesia, nada será em prol da população, sempre em prol dos capitalistas que comandam o país. 

Entrevista com Rangel José Alcantara Rodrigues: 

Diário Causa Operária: Rangel, pedimos inicialmente para que faça uma breve apresentação para que os leitores conheçam você. 

RJ: Meu nome é Rangel José Alcântara Rodrigues, sou médico, cardiologista, formado na Universidade Federal de Uberaba, na cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro. Fiz residência médica no Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto.  

DCO: Você atua desde quando como médico? 

RJ: Me formei em julho de 2007 e atuou desde então. Como me formei em Uberaba, fui pra Monte Carmelo e depois fui pra outra cidade pequena chamada Ibiá, ambas próximas à Uberaba. Minha família é de Itirapuã, que uma cidadezinha perto de Franca, que foi uma cidade aonde trabalhei por 2 anos. Depois fiz residência em São Paulo, por 2 anos, clínica médica no Hospital Heliópolis. E na sequência mais 2 anos de cardiologia em Ribeirão Preto. 

DCO: Fale como foi o planejamento para a chegada da pandemia, quais foram as dificuldades que surgiram, como se desenvolveu a situação da saúde pública e sobre a política de saúde pública aplicada desde o início da pandemia.  

Rangel José: Desde que soubemos da pandemia na China e que os casos começaram a aparecer na Europa – essa referência é bastante importante porque começamos a ter conhecimentos dos casos do coronavírus em meados de janeiro de 2020 e o primeiro caso registrado no Brasil, informado pela imprensa, foi no começo de março. Então, temos aí, pelo menos, um mês e meio. O reportado científico pela OMS (Organização Mundial da Saúde) foi no final de dezembro de 2019 -, o governo brasileiro teria que estar ciente desses casos e ter começado o preparo de uma possível epidemia no Brasil desde essa época. O primeiro caso chegou em São Paulo em março de 2020, mas antes mesmo dos primeiros casos, poderiam ter sido tomadas várias medidas, como por exemplo: o fechamento dos aeroportos e dos portos, mas não houve. Quando já havia em fevereiro aumento importante dos casos na Europa, os passageiros estavam circulando, saindo do Brasil para Europa e Estados Unidos, depois voltando sem controle de temperatura, sem quarentena, sem testes de Covid e tudo isso já poderia ter sido feito. Então, houve uma falha. Já se sabia do tipo de transmissão do vírus, que é a transmissão por aerossol. O primeiro caso detectado foi o de um viajante. Mesmo depois do viajante ter voltado pro Brasil infectado, ele e todos que tivessem estado no aeroporto e no avião poderiam ter sido isolados, em quarentena, em algum outro lugar, fechado imediatamente todos os aeroportos e portos, as entradas do Brasil e registro sistemático dos casos. Era pra todos os contactantes terem sido examinados e abordados diariamente para saber dos sintomas, além do rastreio de cada um para saber aonde foram depois de terem passado pelo aeroporto. Imagine quantas pessoas circulam no aeroporto internacional. Mas daria pra fazer, eram bem menos pessoas do que se tem agora. Depois disso houve erros atrás de erros. A política do “fica em casa” começou depois que viram que a pandemia estava se alastrando na cidade de São Paulo – o principal foco era Rio de janeiro e São Paulo, por onde essas primeiras pessoas chegaram. Não havia vacina na época, então a única forma de limitar a distribuição da doença (o aumento dos casos) era isolar a cidade inteira e ter um lockdown realmente efetivo, parar a indústria, parar todos os setores econômicos e que todos ficassem de verdade em casa, e não só trabalhadores do comércio ou ambulantes. Poucas pessoas pararam de verdade, só a elite e a classe média. O que fica bastante claro é a deficiência de informação. O governo em momento algum elaborou um protocolo de atendimento dos pacientes. Os protocolos eram bem atrasados em relação aos conhecimentos científicos disponíveis na época, foram os próprios médicos que buscaram se informar as melhores condutas. Em governos anteriores, quem estava na linha de frente e tinha o conhecimento de ponta de tal doença durante uma epidemia, era o Ministério da Saúde. Nos casos de dengue, de febre amarela, a principal referência de informação, eram as notas técnicas e boletins do Ministério da Saúde. Isso não aconteceu dessa vez, e quando acontecia era defasado, houve atrasos, o que dificultou o trabalho médico. Depois, quando a doença já estava percorrendo o Brasil inteiro, começou a criação dos Hospitais de Campanha, que primeiro foi criado nas capitais, depois cidades médias, e por fim nas cidades pequenas, como aqui em São Joaquim da Barra. Nesse hospital de campanha, eu fui o coordenador e cheguei a trabalhar 6 meses, de abril de 2020 até novembro de 2020. O lugar era um hospital entre aspas, vamos dizer assim. Era uma área, com pouca infraestrutura hospitalar, disponibilizada para atendimentos de pessoas com suspeita de Covid-19, uma sala de atendimento e uma sala de estabilização para pacientes com situação mais grave, um lugar onde o paciente aguardava até surgir uma vaga no hospital. Era para não misturar os pacientes com Covid-19 com os pacientes da Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Foi feito propaganda de que era um hospital, tinha até oxigênio, mas não tinha as medicações necessárias, demorava pra chegar e quando chegava não era suficiente. Não havia funcionários suficiente, os funcionários estavam muito sobrecarregados, a demanda começou a aumentar muito aqui na cidade, principalmente nessa época de junho e julho do ano passado – isso falando do hospital de campanha. A pandemia começou mais forte nesses meses. E a maior parte dos pacientes que tinham suspeitas e depois se confirmavam com os testes, eram pacientes que vinham das indústrias da região, principalmente do frigorífico da Seara, que é da JBS, que fica numa cidade vizinha, Nuporanga. É um frigorífico grande, e que tem muitos trabalhadores aqui da cidade. Começaram a chegar muitos casos procedentes de lá, a produção nunca chegou a parar. Conversei com pacientes que relataram que funcionários do frigorífico com Covid-19 apresentavam os atestados, mas o médico vinculado à empresa os liberava somente por 7 dias e não por 14 dias conforme a orientação para isolamento. O paciente voltava a trabalhar quando tinha uma melhora dos sintomas, mas no período em que ainda podiam transmitir o coronavírus. Os ônibus estavam abarrotados, não houve aumento do número de ônibus pra transporte na época. E as esteiras de produção, abate e corte de frango, ficou normal, não teve redução, realojamento, diminuição do número de trabalhadores por ambiente, num primeiro momento nem máscaras foram fornecidas. Havia um potezinho de álcool em gel e depois passou a ter máscaras simples também, mas que não foi efetivo para controlar o número de casos do frigorífico. Em agosto, aqui começou a faltar testes, então a prefeitura teve que comprar alguns, pois os que vinham do governo federal não estavam sendo suficientes. Além dos pacientes, começaram a testar os funcionários do Hospital de Campanha. Eu trabalhava lá, quando eu tinha algum sintoma, eu fazia o teste nasal, que é o efetivo. Na época houve bastante rigidez pra fornecer estes testes, nem todo mundo podia fazer o teste, pois haviam poucas unidades, a prefeitura havia comprado pouco. A gente esperava o paciente ter pelo menos 7 a 10 dias de sintomas pra depois fazer o teste rápido, que é o teste de furar o dedo, que verifica os anticorpos do vírus, pra depois confirmar se a pessoa havia sido infectada ou não. E a gente sabe que esperar 7 a 10 dias pra agir sobre uma doença, pro paciente saber o diagnóstico, é um atraso pra isolar o paciente, pois ele não sabe se tem ou não, se fica realmente isolado ou não, pra podermos controlar a doença, saber se o paciente precisa voltar antes. Sabemos que o paciente que tem coronavírus e, por exemplo, tem alguma comorbidade, mesmo o paciente não tendo sintomas graves, a gente deixa o paciente monitorado, ele fica mais perto do médico, a gente pede pra ele voltar mais frequentemente à unidade. Mas como não tínhamos os testes, e quando tinha era feito tardiamente, não havia como fazer esse acompanhamento. Foi um período de muita dificuldade com relação aos testes. Até setembro, eu era o responsável técnico pelo hospital de campanha, mas na verdade quem dava as cartas no Hospital de Campanha era o prefeito que é médico também. Eu estava lá só pra assinar… 

DCO: Quem era o prefeito?  

RJ: …o Marcelo Mian, que foi eleito pelo PPS e mudou para CIDADANIA, ele era do PT, foi secretário da saúde no segundo mandato da prefeita anterior (Maria Helena Borges Vannuchi – PT). Ele ganhou para prefeito, entrou em 2013 e seu primeiro mandato acabou em 2016, na época do impeachment, tinha a questão do PT, a burguesia toda fazendo campanha contra o PT, então ele trocou de partido, se filiou ao PPS e teve seu segundo mandato que foi de 2017 a 2020. 

DCO: Sobre a falta de profissionais na área da saúde – técnicos, enfermeiros e médicos – não houve nenhum tipo de contratação?  

RJ: A prefeitura não contratou… 

DCO: …e existe disponibilidade no mercado desses profissionais?  

RJ: Durante a pandemia teve que contratar profissionais para fazer o plantão no Hospital de Campanha, e a prefeitura tem um contrato assinado com uma empresa médica de Ribeirão Preto que oferece plantonistas. Então pediram dois a mais por dia. Um para ficar durante o dia e o outro à noite. Então, não houve uma contratação de médicos, eram médicos terceirizados. Em relação a enfermeiros, a prefeitura fez um contrato com a Santa Casa que forneceu os profissionais. 

DCO: Então não houve um aumento, pegaram de um lugar e remanejaram para outro? 

RJ: Isso, só remanejaram. Não houve contratações.  

DCO: E essa empresa que foi contratada, continua prestando serviço ou não tem mais? 

RJ: Essa empresa já fazia prestação de serviços antes da pandemia, era ela a responsável por fornecer os profissionais para a UPA. Só ampliaram a quantidade de profissionais. Começaram a fornecer o dobro, ao invés de dois por dia, haviam quatro profissionais. 

DCO: Mas eram o suficiente?  

RJ: Não, de forma alguma. Pra demanda, só para o Hospital de Campanha, teriam que ser pelo menos quatro profissionais por dia. Porque o Hospital de Campanha tem 2 consultórios de atendimento, e tem os pacientes que ficam em observação. E esses pacientes às vezes agravam de situação de uma hora para outra e os médicos precisam parar de fazer os atendimentos dos pacientes que chegam pra ser atendidos, para atender o paciente que está em estado grave. O correto seria, ter um para ficar com os pacientes em observação, pra ficar monitorizando, prescrevendo medicação, fazendo encaminhamento dos que precisam para o hospital, ou dando alta para os que já melhoraram, enquanto o outro ficasse na porta de entrada, nos atendimentos. Portanto, não foi suficiente. E se pensarmos na atenção básica, ela deve cobrir o município todo, que são os PSF (Programa Saúde da Família). Tem que ter um PSF com um médico a cada 4 mil pessoas. E essa cidade só tinha 5 PSF. E era uma cidade de 52 mil habitantes, cobriria 25 mil pessoas. Então somente 50% da cidade estava coberta pela atenção básica. Que é onde poderiam ser tratados esses pacientes com suspeita de Covid-19, com quadro típico de um quadro gripal. A atenção básica teria que ter sido ampliada, contratado mais médicos para os PSF. E não foi ampliado, apesar de ter chegado mais verbas. Ouvi falar que a cidade recebeu 18 milhões em verbas do governo federal, e não foi feita nada em relação a atenção básica, que poderia ser mantido depois da pandemia e favorecer o atendimento depois desse período, mas não foi o que fizeram. Em relação aos profissionais é isso.  

DCO: Ou seja, trabalhava com a metade do que deveria ter. Antes da pandemia já era um sistema defasado. 

RJ: Defasado…sistema sobrecarregado. Porque temos que trabalhar com o dobro da quantidade de pacientes que deveríamos. E nem todo mundo tem acesso, tem bairros que são descobertos da atenção básica, que o paciente não tem atendimento, porque não tem nenhum médico no bairro. Bairros grandes, bairros periféricos. 

DCO: Os profissionais que se infectaram também foram repostos, ou quando se contaminavam e diminuía o quadro e ficava por isso mesmo? 

RJ: Não, não eram repostos. Sobrecarregavam e ainda sobrecarregam o pessoal. Eu agora saí do Hospital de Campanha e estou atendendo somente na Santa Casa na UTI. Eu, por exemplo, atendo ainda os pacientes com Covid-19, só que na Santa Casa. A UTI de lá sempre teve 12 leitos e metade dos funcionários foram remanejados para uma nova UTI que foi aberta, a UTI Covid-19, que tem 13 leitos. Então, estamos trabalhando com metades dos funcionários, já por conta da pandemia. A quantidade de profissionais que tinha na UTI normal, com 12 leitos, teve que dar pra 2 UTIs. O pessoal da enfermagem está sobrecarregado. Os médicos eles até que aumentaram o quadro de médicos, mas os técnicos e enfermeiros estão muito sobrecarregados. E quando há alguém infectado. Eu tive experiências com colegas que foram infectados e que trabalhavam na Santa Casa também, trabalhavam no hospital de campanha na época e trabalhavam na Santa Casa. E quando o paciente era infectado a Santa Casa pedia pra voltar também, mesmo sendo um hospital, pedia pra voltar antes do tempo que deveria de isolamento. Então, eles não poderiam ter voltado antes, com 7 a 10 dias já voltavam, mesmo ainda apresentando sintomas de Covid-19, mesmo ainda não tendo dado o prazo de isolamento. Não foi respeitado nem a questão do isolamento dentro do hospital. O que aconteceu? Teve um boom de infectados na Santa Casa no ano passado, por não haver o isolamento nem dos que estavam infectados, pois era necessário mão-de-obra, era necessário atendimento de enfermeiros. 

DCO: Você tem conhecimento se há algum programa de formação e preparação para novos profissionais, em âmbito regional ou nacional? 

RJ: A formação de médicos não existe, de enfermagem não sei te falar, não estou a par da questão. Não há nenhum programa, nenhum incentivo para aumento de escolas médicas, ou recrutamento de alunos para trabalhar no SUS para que possa atender o aumento da demanda. Que eu saiba não tem nada disso. A única questão relativa à educação médica que mudou que tenho conhecimento é em relação à Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a AMIB, que mudou o tempo de formação do intensivista. Antes eram preciso 4 anos, agora precisam só de 3. Diminuíram o tempo de formação do intensivista, que trabalha em UTI. Antes precisava fazer uma residência em Clínico ou em cirurgia pra depois ser intensivista. Agora se formou já pode direto na residência de medicina intensiva. Foi isso que mudou… 

DCO: Diminuíram o tempo de formação, mas não abriram mais vagas pra mais pessoas se formarem… 

RJ: Não, de forma alguma. A quantidade de intensivistas nas UTIs brasileiras é muito pequena. A legislação brasileira indica que deve haver 1 intensivista responsável por UTI, que tenha título da AMIB. E o responsável é aquele que assina o papel, não aquele que trabalha efetivamente. Os outros médicos plantonistas não são intensivistas, são cardiologistas, como eu sou, são anestesistas, cirurgiões, que tem conhecimento de UTI, porque não residência a gente tem conhecimento de UTI, mas não tem toda abordagem e especialização pra tratar dessa questão. Isso é muito defasado no Brasil, os cuidados em saúde nas UTIs no Brasil são muito precários em relação a outros países. Na Holanda, por exemplo, a enfermagem que cuida dos pacientes na UTI é formada em curso superior, com graduação. Aqui existe uma enfermeira só pra UTI inteira, e que muitas vezes cuida de duas UTIs, como acontece onde eu trabalho em São Joaquim da Barra, e ainda cuida da enfermaria que são os pacientes que estão internados fora da UTI. É uma enfermeira pro hospital inteiro praticamente. Quem cuida são os técnicos de enfermagem. A gente sabe que o nível técnico de enfermagem é bom, mas ele não dá todos os subsídios que são necessários para um atendimento de qualidade aos pacientes. Precisa investir mais em formação, tem enfermeiros que são intensivistas, que seria o ideal. Pois além da pessoa fazer um curso de graduação, seria bom ter uma especialização em UTI. Então está muito aquém. Com relação a parte médica então, não houve nenhum programa especial do governo para aumentar o número de médicos no país. 

DCO: Como está a questão salarial, os profissionais tem recebido em dia, você, por exemplo, está recebendo certo? Como está a situação?  

RJ: Eu sou contratado pela prefeitura por um concurso como cardiologista e fui remanejado para o Hospital de Campanha. Eu teria que atender 4 horas por dia, então eu parei de fazer os atendimentos cardiológicos e fiquei só com a parte do Covid-19. Então, meu salário não mudou, só mudei a função, em prejuízo aos atendimentos cardiológicos. É o cobertor curto, cobre o rosto e descobre o pé. Em relação ao salário, não teve atrasos, pelo menos aqui na prefeitura nunca atrasou. Quanto à Santa Casa, estariam devendo bastante horas extras, como não houve contratação de novos funcionários, os funcionários começaram a fazer horas extras, e teve atrasos sim. Não sei dizer o quanto e se foi muita gente prejudicada, mas teve atrasos. Inclusive o pessoal de enfermagem que foi trabalhar no Hospital de Campanha como horas extras. Quem pagava os funcionários era a Santa Casa. Em outros municípios sei que houve atrasos, principalmente porque era fim de gestão das prefeituras, fechamento de contas, o que acabou atrasando o salário dos servidores. Eram municípios que sempre atrasavam, como São José da Bela Vista, Cristais Paulistas, entre outros com menos recursos. 

DCO: Você comentou sobre a falta de alguns medicamentos, isso trouxe prejuízos para os pacientes? Você viu casos em que era possível salvar algumas vidas, mas que por falta de medicamento acabou por perder pacientes ou coisas do tipo?  

RJ: Sim. Teve casos de pacientes, no Hospital de Campanha, que ficavam internado numa unidade que na verdade não é hospitalar. Na verdade, é uma unidade ambulatorial com leito de observação, onde faltava muito material. Por exemplo, um paciente teve suspeita de infarto durante a internação, e não havia as medicações para infarto, e isso prejudicou o paciente. Teve paciente que precisava de antibióticos mais forte e não tinha, por sorte o paciente não teve nenhuma complicação, mas ele precisava de um antibiótico mais forte. Então teve casos de falta de medicação que prejudicou o paciente, mas que não chegou a ter óbito. Que eu saiba não, pelo menos comigo, no Hospital de Campanha em que eu estive trabalhando, não. Mas teve um aporte insuficiente, sim, de medicamentos. Já no caso de respiradores, por exemplo, teve. Havia respirador que não funcionava no Hospital de Campanha. Houve caso de paciente que sofreu de insuficiência respiratória, de falta de ar, e teve uma parada cardíaca por falta de respirador, depois conseguiram reanima-lo, ele foi transferido pra UTI da Santa Casa, mas lá ele faleceu. Boa parte desse prejuízo foi por falta de materiais no Hospital de Campanha. Recentemente, houve um caso, que inclusive foi noticiado pela EPTV (Rede Globo) da região. Eu não estou mais lá, mas creio que faz umas 3 semanas. No Hospital de Campanha, teve um vazamento no oxigênio do hospital, o paciente entrou em suficiência respiratória e teve uma parada cardíaca. Foi transportado com urgência para a Santa Casa, mas faleceu, porque não deu tempo de reanima-lo. Na notícia da EPTV, foi divulgado que o paciente chegou na Santa Casa, como não tinha vaga na UTI, que ele ficou aguardando e faleceu por falta de vaga. Mas não contaram que o paciente estava no Hospital de Campanha, que houve esse problema com o oxigênio e que por falta de oxigênio o paciente faleceu. 

DCO: Você citou esse frigorífico que funcionou normalmente durante a pandemia, mesmo com casos de Covid-19, teve denúncias desse frigorífico? O pessoal denuncia essas fábricas que continuam funcionando com casos de Covid-19 condenando o povo? 

RJ: Eu conversei com funcionários do frigorífico da Seara, e me disseram que falaram com o sindicato e que não se resolve nada. De que reclamavam para o sindicato, mas nada era feito… 

DCO: …esses sindicatos estão abertos?  

RJ: Eu não sei. Esse sindicato do frigorífico não fica na cidade, então não sei, fica em Nuporanga. Além desse frigorífico, existem mais 4 empresas que emprega a maioria dos operários da cidade. São 3 metalúrgicas e mais 1 usina de cana-de-açúcar. Eu cheguei a conversar com o sindicato dos trabalhadores rurais da usina, e me disseram que não mudou nada em relação a questão do transporte, há vários trabalhadores infectados e que não houve nenhuma mudança na questão do trabalho. Eu fui no sindicato, estava até aberto, mas muito ausente. Eu me ofereci a dar suporte em alguma dúvida técnica, convoquei eles para o Ato de 1º de Maio, mas não demonstraram interesse. Fui também no sindicato dos metalúrgicos, mas estava fechado. Cheguei a conversar com metalúrgicos na porta das empresas, me disseram que nunca parou nada, que sempre funcionou do mesmo jeito. A cidade passou por momentos de fechamento, não lockdown, mas não houve nenhuma mudança no local de trabalho, nenhuma alteração nos horários desses trabalhadores. O que uma das empresas que conversei fez, foi fornecer álcool em gel e máscara, e mais nada. E continua tendo casos, os pacientes suspeitos eram afastados, mas não teve nenhuma mudança mais importante, mesmo na pior fase da pandemia. E os sindicatos, nas duas vezes que fui estavam fechados. Fui pra fazer a convocação para o Ato de 1º de Maio e estavam fechados. 

DCO: Você disse de falta dos testes no início da pandemia. Como foi isso, esses testes chegaram quando, e quando começou a faltar? 

RJ: Os testes começaram a chegar em abril… 

DCO: …e em agosto já começou a faltar?  

RJ: Chegaram os primeiros testes em abril, e detalhe, os testes rápidos, os testes ruins, que não servem muito para fazer o diagnóstico de Covid-19, mas era o que tínhamos. Chegaram em abril por compra direta da prefeitura. A prefeitura importou os testes. Ficavam fechados em armários da Secretaria da Saúde, e pouca gente tinha acesso a esses testes. Fazíamos diagnóstico somente em casos suspeitos mesmo. Depois em junho, no aumento da pandemia, começaram a chegar mais testes do governo federal, sempre esses testes piores (testes rápidos). Em junho e julho chegaram os testes de cotonete, aquele que é melhor, só que em pequenas quantidades. Em agosto esse teste sumiu, parou de chegar, não teve mais. Houve uma época em agosto que não teve teste nenhum, não conseguíamos fazer diagnóstico e os pacientes brigavam. Então, a prefeitura comprou um novo lote por via direta e, ao invés de testar os profissionais da saúde que estavam com suspeita, foram testar o pessoal de segurança pública, a Polícia Militar e a Polícia Civil. Foi nesse momento que eu sai, pois não queria fazer parte disso. A Polícia Militar e a Polícia Civil iam lá no Hospital de Campanha fazer esses testes, sendo que a nós não podíamos fazer, que trabalhava, que entrava em contato com o público, direto com os contaminados, não podíamos fazer os testes, mas a Polícia estava fazendo. 

DCO: Você chegou a denunciar isso?  

RJ: Denunciei, cheguei a denunciar aqui na cidade, mas não deu em nada. O prefeito falou que era ele quem mandava e que era assim e pronto. Conversei com outros profissionais da Saúde e com os sindicatos dos funcionários públicos, mas não surtiu efeito nenhum.  

DCO: O sindicato dos servidores está funcionando?  

RJ: Está funcionando, ele não parou, estão com as portas abertas, eles não fecharam. 

DCO: E essa situação dos testes, normalizou agora?  

RJ: Normalizou. Agora já tem testes suficientes, todos os testes, tanto teste rápido quanto o do cotonete. Pelo que tenho conhecimento já está bem disponível. 

DCO: A normalização da situação dos testes tem relação com esse surto de contágio, a compra dos testes se deve a esse acontecimento…? 

RJ: Boa parte do aumento da oferta de testes é que diminuiu a demanda dos países imperialistas, Estados Unidos e Europa. Porque a pandemia por lá não está como no ano passado, estão vacinando mais – lógico, ainda tem muitos casos -, mas eles estão com a vacinação bem mais adiantada. Então, está chegando mais testes. Uma outra questão relativa aos governos, no caso do governo municipal daqui, houve uma mudança de prefeito (Wagner José Schmidt –MDB), que acho que conseguiu disponibilizar mais testes. Ainda não são os melhores testes disponíveis, os mais sofisticados, que dão diagnóstico rápido, dentro de minutos, mas esse ano pelo menos não faltou. 

DCO: Não há qualquer investimento pra produção desses testes em massa, uma política de Estado verdadeira? 

RJ: No Brasil, não. É tudo importado da China.  

DCO: Queria que você falasse do que você viu no Brasil, desde que você começou a atuar como médico, da situação da saúde pública. Nós temos um marco importante que é o Golpe de Estado (de 2016), e posteriormente, outro marco, que foi a chegada da pandemia. Você conseguiria resumir qual a situação da saúde nesses períodos?  

RJ: Só antes queria fazer um comentário, antes de fazer esse caminho histórico. Como eu estou trabalhando mais na (UP) agora, o que está acontecendo é o seguinte, está tendo uma pressão muito grande dos pacientes, porque tem duas UTIs no hospital, uma para os pacientes com Covid-19 e a outra para os pacientes não-covid, então não se misturam. Eu estou atendendo os pacientes não-covid. As vezes falta leito pra paciente na UTI de Covid-19, mas eles não vão pra UTI não-covid para não contaminar os pacientes que não tem Covid-19. Então, esses pacientes têm que ir para UTI em outras cidades. O que está acontecendo é que estão escolhendo alguns pacientes, com critérios econômicos e interesse pessoal da direção, que estão ficando na UTI não-covid. Mesmo com suspeita de Covid-19, mesmo pacientes com teste positivo, estão ficando junto com os pacientes que não tem Covid-19.  

DCO: …criminoso isso.  

RJ: Sim, criminoso. Então assim, teve uma paciente que era mãe de uma médica do hospital, de uma oftalmologista, de família importante da cidade, não havia vaga na UTI não-covid, mas arrumaram uma vaguinha pra ela nessa UTI, mesmo estando com exame positivo pra Covid-19, mesmo com o quadro clínico de Covid-19, colocaram ela na UTI juntos com pacientes que não tem covid-19. 

DCO: E você está como responsável nessa UTI? 

RJ: Nessa UTI, eu não sou responsável, sou somente plantonista. Se eu fosse responsável, não teria deixado. Mas, não mando, então… 

DCO: …mas isso deve estar acontecendo no Brasil inteiro, né? 

RJ: Provavelmente…provavelmente sim.  

RJ: Agora, com relação ao caminho histórico da saúde pública, eu entrei na faculdade em 2001, era governo FHC ainda – o Lula entrou em 2003-, no meio de uma greve de professores das instituições federais que durou 6 meses. E o hospital da universidade federal que eu entrei, estava com uma dívida estratosférica. Faltava tudo, papel higiênico, gaze. Havia vaquinha com ex-alunos para conseguir materiais básicos para atendimento dos pacientes e para o ensino. Em 2003, entrou o Lula, no meu 3º ano de faculdade, essas dívidas foram saneadas, as dívidas foram quitadas. A Faculdade de Medicina passou a ser Universidade Federal, o campus foi ampliado. Na época que eu entrei, só tinha os cursos de medicina, enfermagem, biomedicina. Depois, abriram outros cursos de saúde, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, e de outras áreas também, engenharia, exatas, humanas. Agora é uma universidade bem maior, que tem outro campus, foi aberto outro campus além do campus que tinha. Então salto de qualidade foi imenso, foi extraordinário. Não tenho como eu negar isso. É impossível não elogiar essa parte do governo (Lula) em investimento em educação e nos hospitais universitários, isso ficou patente… 

DCO: Só uma pergunta pontual, mesmo assim, era o ideal que se esperava da saúde ou só melhorou? 

RJ: Não era o ideal. Mas a gente viu o governo (Lula) na faculdade. A gente via integrantes do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde, na faculdade fazendo reunião com a gente. Com o diretório acadêmico, com o diretório estudantil, eu era do diretório acadêmico. Eles propunham a mudança do currículo, escutavam a gente… Em relação à parte de Saúde eles mudaram uma questão que o hospital tinha uma porta privada e uma porta privada. Então, um pouco do recurso do SUS ia para essa porta privada, que era uma fundação feita pela faculdade, mas que atendia só pacientes particulares. O governo (Lula) acabou com isso, acabou com essa fundação, que é o correto, os recursos eram todos do SUS, não tem que ter destino a nada particular. Mas o atendimento era muito aquém do que deveria, tanto na questão do Ensino quanto da Saúde. No ensino, nós ainda não tínhamos recursos de atenção básica, não tínhamos contato com o PSF, com a atenção básica de saúde, era muito hospitalar ainda o curso. Na questão de atendimento à população, não tinha investimento em prevenção e promoção de saúde, era muito a questão curativa, tratar a doença já estabelecida, nem reabilitação dos pacientes era muito aquém ainda, tinha pouco investimento. Mas a gente via que estava sendo feito esforços para que as coisas melhorassem, apesar de não ser o ideal. Esforços não muito grande, poderiam ser maiores, já que é um investimento federal, mas havia. Então eu me formei em 2007, era fim do 2º mandato do Lula, comecei a trabalhar em PSF (Programa Saúde da Família) nessas cidades pequenas. No fim da minha residência médica de cardiologia, foi quando teve o impeachment da Dilma, aliás era 2014 ainda. Pra você ver, de 2013 a 2014, naquele hospital só se falava de política e 90% dos médicos eram contra o PT. Eu era voto vencido, sofria até bullying lá dentro do hospital. E no final do primeiro mandato dela, já começou a ter redução nos investimentos. Começou a ter falta de material. Tem a questão da crise financeira da época. Mas em comparação à parte de saúde pública, não tem nem comparação do Golpe pra cá… 

DCO: …esses médicos que se posicionavam contra o PT, se posicionavam por conta dessa redução de recursos pro hospital ou porque existiam interesses privados, qual foi sua percepção? Ou era mais por conta da propaganda que se fazia contra o PT? 

RJ: Não havia objeto de comparação do PT com os governos anteriores, não tinha jeito de comparar. O nível de investimento na saúde pública era alto. Não era por questão de ir contra o governo porque a saúde tinha piorado. Houve uma redução, mas não era nada substancial. Um dos motivos foi a questão dos médicos cubanos. Isso foi a gota d’água. Foi o que levou mesmo a classe médica a lutar contra o PT, a ficar a favor do Golpe, foi a questão dos médicos cubanos. Isso foi muito forte, era consenso. Na minha turma, de todos os meus contatos, a maioria era contra a vinda dos médicos cubanos. Eu estava dentro do 1%, do pessoal que eu conhecia, que apoiava a vinda dos médicos. 

DCO: Conversando com o Consul de Cuba (em entrevista), ele falava justamente que os cubanos iam pra zonas de acidentes geográficos, epidemias, eles vão aonde os médicos daqui não querem ir. Médicos que não usufruem do conforto que poderiam ter. Que vão pra zonas de guerra, uma atuação mais emergencial e realmente, no Brasil, a gente sabe que faltava médico no Nordeste, no Norte, em várias regiões. Se eu não me engano o Tocantins tinha uma taxa de mortalidade infantil grande e que foi reduzida quase a zero. Uma coisa que não dá pra entender.  

RJ: O argumento deles era que os médicos cubanos não queriam ir pra essas áreas, na verdade, eles estavam indo para as capitais, pra cidades ricas do interior. Realmente, boa parte das prefeituras pra poderem economizar, ao invés de contratarem o médico como servidor municipal, estavam recebendo médico do governo federal, mesmo prefeituras grandes, de cidades ricas, acabaram se cadastrando nesse programa. 

DCO: Era uma falha nesse programa então…? 

RJ: Sim, que as prefeituras se cadastravam por uma questão de economia mesmo. Porque aqui no interior de São Paulo, no estado de São Paulo não tem déficit de médicos. Pode até ter sim, em algumas regiões mais pobres. Mas no fim das contas, é mais barato para as prefeituras. Tinha prefeitura que tinha a disposição alguns médicos contratados por empresa, que quando acabou o contrato, mandaram embora pra ficar com os cubanos. Teve isso mesmo. Mas não tem porque ficar contra os profissionais de Cuba. Você conversa com um paciente que era atendido pelos cubanos, e por aqueles que eram atendidos pelos outros médicos, os cubanos eram muito atenciosos. No tratamento dos médicos cubanos, eles permitiam os pacientes a conversar, eles iam na casa dos pacientes, principalmente na atenção básica na PSF. Eram muito mais próximos aos pacientes no atendimento do que os médicos daqui. A gente vê que o pessoal “chuta” os pacientes no atendimento do SUS. “Chutar”, na gíria médica é atender correndo. É atender rápido pra acabar os pacientes que estão agendados para ir pra clínica. Essa é a rotina. 

DCO: Você falou desse cuidado que os cubanos têm, deve ser por conta da questão da medicina em Cuba prezar pela profilaxia. Ou seja, que seria prevenir as doenças na população. Então por isso essa atenção maior com cada pessoa…  

DCO: O que mudou com o Golpe de Estado e o que mudou depois com o Bolsonaro e a pandemia? 

RJ: Depois de 2014 eu comecei a atender como cardiologista, eu sempre atendi SUS, nunca atendi particular, não tenho clínica, sempre gostei de atender SUS. Me contrataram em Franca, pra atender a demanda que estava reprimida no município, porque os cardiologistas do município do SUS não conseguiam atender. E isso foi até o Golpe (em 2016). A partir do Golpe, eu parei de atender, cortaram os atendimentos, então fizeram um concurso pra contratar cardiologista, mas era concurso público de ter que atender 40 pacientes em 4 horas, pra poder suprir a demanda. Então, não tem como, o contrato era inexequível. Você não consegue trabalhar da forma que eles queriam no concurso. Tanto que eu passei, mas não fui fazer, não fui trabalhar. Porque não tem como. E o valor muito abaixo do valor médio que se pagava por consulta. O SUS estava pagando 12 reais por consulta nesse concurso, sendo que a tabela no SUS é de 22 reais. Antes do Golpe, eu recebia 35 reais por paciente para atender quantos fosse possível. Não tinha essa questão fixa de atender tantos por hora. Eles diziam: “você tem 35 reais para atender quantos pacientes que você puder atender, a demanda nossa é gigante”, eu falava, então tá, atendia 24 pacientes por dia, 12 num período e 12 no outro. O concurso estava querendo que eu atendesse 40 pacientes, pagando 12 reais a consulta. 

DCO: Ou seja, diminui o salário e aumenta o serviço…  

RJ: Isso. Então eu falei, não. Fiquei um tempo dando plantão aqui em São Joaquim da Barra, eu já tinha mudado pra cá, mas estava indo pra Franca pra trabalhar. Voltei pra cá, dando um plantão ou outro na Santa Casa. E estudando pra concurso. Abriu concurso pra prefeitura, passei e estou lá até agora. O Bolsonaro não tinha entrado ainda, era o final do governo Temer. Teve uma mudança bastante importante do Temer para o Bolsonaro, que foi em relação à Promoção e Prevenção de Saúde. Ainda existia essa política no governo Temer, apesar de ter essa defasagem de salário, redução do investimento, mas existia ainda esse programa. Mas isso acabou durante o governo Bolsonaro. Eles não estão priorizando a prevenir doenças. Agora você tem que ter quantidade mínima de consultas. Antes eu podia escolher atender quantos eu conseguisse. Agora tem que atender 20 pacientes, no mínimo, a cada 4 horas. 

DCO: Como se fosse uma linha de produção…  

RJ: Sim, como se fosse uma linha de produção, ficou mecanizado. E então fui reclamar a respeito. Eu fui reclamar com o prefeito – o da antiga gestão – e ele falou assim: “eu não quero qualidade, eu quero quantidade”. Foi bem sincero comigo.  

DCO: É mais ou menos o que acontece na Educação…  

RJ: …é, tem que cumprir a meta. Virou um serviço industrial. E o governo agora, não vai mais financiar programas de combate e prevenção à hanseníase, combate de prevenção à mortalidade infantil, a tuberculose. Não está tendo estes financiamentos, que antes vinham como recursos a mais, paras as atenções básicas, agora isso diminuiu bastante. Foi cortado na verdade.  

DCO: Foi cortado no início do governo Bolsonaro ou durante a pandemia?  

RJ: No início do governo Bolsonaro já. Logo nos primeiros 3 meses teve essa mudança de investimento.  

DCO: Isso quer dizer que a tendência é a gente sofrer de outros males na saúde pública?  

RJ: Sim. Não tem mais programa pra tuberculose e hanseníase e as duas são endêmicas no Brasil. Vai piorar. Diminuíram também os recursos para o combate à Dengue. Vai explodir uma epidemia de Dengue.  

RJ: Outra mudança que teve também, tem a ver com um programa de recursos na unidade quando se cumprem metas de trabalho na atenção básica. Por exemplo, se o médico atendesse, um determinado número de gestantes, crianças, entre outras demandas, recebia uma bonificação. E agora, estão mandando esses recursos para as prefeituras, ao invés de mandar diretamente para as unidades de saúde. Inclusive para os profissionais de saúde. O médico ganhava mais, vinha um aumento no salário, vinha um aumento para a enfermagem, para os técnicos de enfermagem, para os ACS (Agentes Comunitários de Saúde). O recurso vai direto para a prefeitura sem obrigação de repasse para esses funcionários. Isso começou esse ano, é mais recente.  

DCO: Tem mais alguma coisa que você gostaria de complementar sobre todas essas questões?  

RJ: Eu gostaria de falar, por último, que é um absurdo este lockdown que eles falam que estão fazendo nas cidades. Não tem lockdown nenhum. Não sei em outras cidades, mas aqui em São Joaquim da Barra e em Ribeirão Preto nenhuma indústria parou. E 25% da população trabalha nessas indústrias e continuam trabalhando, continua sem prevenção importante contra a contaminação desses locais, continuam espalhando o vírus.

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