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Izadora Dias

Izadora Dias é militante do Partido da Causa Operária em São Paulo, coordenadora do coletivo João Cândido e integrante da secretaria de organização do PCO. É militante anti-imperialista e anti-identitária. É estudante da USP e, além de colunista do Diário Causa Operária, participa do programa matinal da Causa Operária TV, o Reunião de Pauta, às sextas-feiras.

Grandes da literatura

Carolina Maria de Jesus, trabalhadora e escritora

Especialista da autora de "Quarto de despejo" faz série de artigos sobre vida e obra de Carolina de Jesus para o blog Tição

Quando o esquife chegou ao cemitério de Cipó, distrito da pequena cidade de Embu- Guaçu, na região metropolitana de São Paulo, naquele 15 de fevereiro de 1977, trazia uma das mais singulares e importantes personagens da história literária recente do Brasil, Carolina Maria de Jesus. 

Apesar da presença do prefeito da cidade e também de Audálio Dantas, jornalista que trouxera a história e os escritos dela à luz, no final dos anos 1950, eram as pessoas simples do povo que acompanhavam sua despedida.

Carolina falecera aos 62 anos, vítima de uma crise de bronquite asmática, encerrando uma trajetória existencial que pode ser definida por uma atividade basilar – o trabalho – embora cindido em duas diferentes modalidades: material e intelectual. Era uma trabalhadora, no sentido comum, e uma escritora. Como trabalhadora, sustentou sozinha a si e aos seus três filhos; já como escritora, revolucionou a literatura brasileira.

É por essa lente – o trabalho – que gostaríamos de realizar uma breve apreciação de sua biografia no presente texto.

A última fase da vida da escritora – iniciada após ela se mudar, em 1964, para o sítio que comprara com o dinheiro das vendas de seu livro Quarto de despejo e que se estende até 1977, ano de sua morte – foi marcada pelo labor na lavoura e uma escrita esparsa. 

Por essa época, no Brasil, a vida da população pobre deteriorara-se completamente após o golpe empresarial-militar de 1964 e Carolina, expulsa da cena literária nacional pelo clima de censura e opressão sistemáticas que o país passara a viver, encontrou na plantação de legumes, verduras e frutas, junto com a criação de porcos e galinhas, uma maneira de não voltar à situação de fome que vivenciara nos seus anos como catadora de papel e moradora da favela do Canindé.

Tendo como companhias apenas os seus três filhos – João José, José Carlos e Vera Eunice – são poucas as ocasiões em que a reclusão da escritora foi quebrada, geralmente pela iniciativa de alguma revista ou jornal desejosos de saber como estava a  “ex-favelada” que se tornara um fenômeno de vendas no início dos anos 1960, com o já mencionado Quarto de despejo. Nesta obra, escrita em fora de diário, contava as agruras da marginalidade social em que se debatia o subproletariado do país no auge do desenvolvimentismo levado adiante pelo governo de Juscelino Kubitschek.

Nesse sentido, gostaríamos de destacar aqui uma matéria jornalística específica com Carolina no período em questão.

Trata-se de uma reportagem publicada em 21 de abril de 1973 na revista Manchete. No lead dessa matéria, uma frase dita por Carolina à entrevistadora, a jornalista Neide Ricosti: “Catei lixo, catei tudo, menos a felicidade”. Aqui é interessante notar que a escritora resume a sua existência, metaforicamente, ao ato de “catar”, ou seja, a um trabalho braçal.

Na reportagem de Ricosti, eivada de preconceitos (a jornalista chega a se referir à formação de Carolina como “quase primitiva”), a escritora é retratada como uma figura arruinada e desiludida. Entre uma e outra afirmação melancólica sobre o passado, Carolina explica no que consiste a sua vida no sítio: 

“Quando eu percebi que morando dentro da cidade eu ia sofrer muito mais, vim para o campo. Como verdura, mato um frango e faço uma sopa. Fome a gente não passa”. 

Um pouco antes, na mesma reportagem, a entrevistadora de Carolina tece o seguinte comentário sobre a escritora:

“Carolina Maria de Jesus, a ex-favelada, só não perdeu o encanto de escrever. Traz na mão um bloco de papéis manuscritos e pede que eu leia, antes de perguntar: ‘Será que isso dá um livro?’”. 

É fácil depreender que, com seu gesto, Carolina tentava viabilizar os escritos que vinha produzindo em sua reclusão, muito provavelmente “Diário de Bitita”, o segundo livro mais célebre da escritora, que só viria a ser publicado postumamente, em 1982, na França.

O que gostaríamos de chamar a atenção, a partir da reportagem em foco, é que Carolina, mesmo em seu ostracismo e após suas desilusões com o sucesso perdido, não deixa de conjugar o trabalho manual na sua pequena lavoura ao trabalho intelectual, rompendo com a tradicional separação que a sociedade burguesa geralmente estabelece entre um e outro tipo de atividade. Voltaremos a este tópico mais adiante.

Por enquanto, é preciso observar que o equilíbrio entre o trabalho e a escrita nem sempre foi possível na trajetória de Carolina. Isso fica claro ao recuarmos um pouco mais no tempo, em que a vida da escritora apresentava uma outra configuração.

O ano era 1963. Utilizando o dinheiro angariado com as vendas de Quarto de despejo, Carolina luta para manter a sua carreira literária de pé e publica, às suas expensas, dois livros: Pedaços da fome, um romance, e Provérbios, uma obra contendo as máximas e aforismos da escritora sobre temas diversos.

Àquela altura, o sucesso conquistado com seu primeiro livro já arrefecera completamente e essas duas obras revelam-se fracassos comerciais, sendo também ignoradas pela crítica especializada e complicando ainda mais a já bastante delicada situação financeira da autora. Três anos depois, o Jornal do Brasil noticiava que Carolina voltara a catar papel nas ruas de São Paulo. 

Convém notar que, quando Carolina decide dedicar o seu tempo exclusivamente à atividade intelectual, tornando-se uma escritora no sentido estrito, essa experiência é frustrada pela iniquidade da sociedade de classes brasileira, que não franqueia aos pobres essa liberdade de escolha. Mesmo tendo desfrutado de imenso sucesso comercial e fama, o dinheiro conquistado àquela altura já se esgotara e os fracassos editoriais que enfrentou foram fatais para as suas pretensões de tornar-se uma profissional da escrita.

Como contraposição ao caso de Carolina, podemos lembrar que outras escritoras, em geral de origem pequeno-burguesa, que produziam ou despontavam na mesma época – a já consagrada Cecília Meireles, mas também Clarice Lispector, Henriqueta Lisboa, Lygia Fagundes Telles e Adelaide Carraro, por exemplo – apesar das eventuais dificuldades para verem publicadas e reconhecidas suas obras, puderam dar continuidade às suas carreiras literárias sem os obstáculos da luta pela sobrevivência e da indiferença das elites culturais e do público leitor da época com os quais a “escritora favelada” debatia-se em sua trajetória.

Para enxergar com mais clareza a ligação dos fatos acima descritos com a dupla condição – trabalhadora e escritora – que Carolina teve de carregar por toda a vida dela, voltemos ao ano de 1960; mais precisamente, ao dia 5 de maio daquele ano. Nesta data, Carolina assinaria o contrato de publicação de seu primeiro diário, Quarto de despejo, com a Livraria Francisco Alves, a sua editora. Como é narrado no livro seguinte da escritora, Casa de alvenaria – diário de uma ex-favelada, Carolina começa dia em questão tendo de vasculhar o lixo para conseguir o dinheiro do café da manhã dela e dos filhos.

Desde a reportagem que verdadeiramente a projetou na consciência nacional, publicada no dia 20 de junho de 1959, Carolina já desfrutava de uma pequena notoriedade. Notoriedade, porém, que não a livrara da fome nem da necessidade de catar papel para sobreviver. Estimulada pela ideia de ver os seus livros publicados, a escritora passou então a conciliar, agora com mais ânimo, as suas tarefas como trabalhadora braçal (catadora) com a escrita regular do diário (literata). Essa dupla condição é, sem dúvida, a explicação concreta para as longas pausas no registro do cotidiano que configuram Quarto de despejo como um livro excessivamente fragmentário e errático – mesmo levando em consideração que é um “diário” editado por outrem – em sua forma.

Detendo-nos por um momento em Quarto de despejo, lançado no dia 19 de agosto de 1960, podemos afirmar que foi uma obra que pegou o público leitor brasileiro completamente desprevenido. Na história anterior de nossa literatura, simplesmente não houvera nenhuma figura que reunisse todas as características dissonantes de Carolina. De origem proletária, sim, como Machado e Lima Barreto – apenas para ficarmos no grandes – mas altamente cultos e informados sobre a história literária e filosófica do país e do mundo. Negros, também, como os dois autores supracitados. De míngua educação formal, nenhum de renome. Mulher? Contavam-se nos dedos as que haviam conquistado alguma projeção em nossa literatura. Carolina era, então, um caso único.

Não é uma obra que sai dos círculos intelectuais tradicionais, dominados pela pequena burguesia, formada em sua maioria por jornalistas, advogados e médicos. Trabalhadora e escritora, põe abaixo a distinção tradicional entre essas duas esferas da ação humana. E o pior: faz sucesso. Por essa “audácia” – nas palavras da escritora – ou por esse “atrevimento”, conforme interpretação de Conceição Evaristo, nunca será perdoada, como pudemos ver em seu triste epílogo.

De certa forma, não é tão difícil identificar os fatores que se fizeram presentes no “fracasso” de Carolina como escritora profissional. Em sua chegada à capital paulista, em 1937, vinda como migrante dos cafundós de Minas Gerais, já trazia marcas demais de exclusão para conseguir suplantar a sociedade que a confrontava em seus planos.

Antes de chegar a São Paulo, já conhecera as inúmeras agruras que a sociedade de classes – primeiro, sob o domínio do latifúndio; depois, da burguesia industrial e financeira – da primeira metade do século XX tinha a oferecer aos, como ela, descendentes diretos de ex-escravizados.

Nos dez anos anteriores à sua ida definitiva para a maior metrópole do país, passara por maus bocados.

Após sair pela primeira vez de Sacramento, sua terra natal, Carolina morou ou esteve, em oito cidades, entre Minas Gerais e o interior paulista: Uberaba, Restinga, Franca, Conquista, Ribeirão Preto, Jardinópolis, Sales de Oliveira e Hortolândia. Com exceção de Ribeirão Preto – aonde fora em busca do apoio, baldado, de uma tia para tratar uma moléstia nas pernas – Carolina trabalhou nessas cidades como agricultora ou doméstica, sofrendo diferentes graus de exploração.

Aliás, é por volta dos oito ou nove anos de idade que a escritora deu início à sua vida como trabalhadora, junto com a mãe e o padrasto, em uma fazenda na cidade de Uberaba. Esse evento é o que provocou a sua saída prematura da escola, que iniciara cerca de dois anos antes, no Colégio Espírita Allan Kardec, de Sacramento. 

Estamos em 1923. Apenas um ano antes, em São Paulo, escritores e artistas de vanguarda deram início oficial ao Modernismo no Brasil com a célebre Semana de Arte Moderna, viabilizada com o financiamento da elite agrária paulistana que dominava o país, junto à elite agropecuária de Minas Gerais, na República Velha. Carolina, neste mesmo ano, se viu obrigada a deixar a escola para trabalhar na roça. Para uns, portanto, as últimas novidades artísticas e culturais da Europa; para outros, a impossibilidade de dar seguimento aos estudos, o que demonstra como modernidade e atraso são as marcas perpétuas do (sub)desenvolvimento do país.

O abandono da escola por Carolina aconteceu porque sua família, constituída basicamente de agricultores, não tinha um pedaço de terra para plantar. Na realidade, seus familiares viviam na miséria quase total; fato este que pode ser explicado pela história do patriarca da família, Benedicto José da Silva, avô dela e pai de sua mãe. 

Chamado de “Sócrates africano” nas reminiscências da escritora, Benedicto era provavelmente de origem africana e nascido por volta de 1852. Pai de oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, entre as quais a mãe da escritora, Maria Carolina de Jesus, também conhecida pelo apelido de “Cota”. O avô era um homem, portanto, que chegara ao Brasil como escravizado (inclusive, Carolina refere-se a ele, em suas memórias, como “soldo da escravidão”).

Sem direito a nenhum tipo de indenização pela Lei Áurea de 1888, provavelmente tenha trabalhado o resto de seus dias anteriores à velhice como agricultor, levando uma vida pouco diferente dos tempos de cativeiro. Espoliado por toda a sua existência, só pôde transmitir à sua família o legado da miséria.

Seguindo a trajetória de exploração do pai, a mãe de Carolina revezou-se entre a agricultura e os serviços domésticos, equilibrando-se entre a má remuneração e as humilhações abundantes. Apesar de presa a um casamento sem amor, encontrava nos festejos que se davam nos fins de semana de Sacramento uma válvula de escape de sua opressão. Em um desses festejos, conheceu o pai de Carolina, João Cândido Veloso, um violonista e poeta apreciador da boemia. Grávida, é abandonada pelo marido traído, e precisará criar sozinha, além da filha que está para nascer, o filho pequeno do, agora, ex-esposo.

E assim, no dia 14 de março de 1914, nasce Carolina Maria de Jesus, apenas vinte e seis anos após a abolição da escravidão. Era mulher e negra.

 1 – “Carolina, a miséria revivida”, de Fernando Guimarães, Jornal do Brasil, edição de julho de 1966, página 21.

Emanuel Régis Gomes

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