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Literatura negra

A luta de classes na obra de Carolina Maria de Jesus – Parte 2

Uma análise dos livros Pedaços da Fome e Diário de Bitita

jornal Última hora

─ Por Emanuel Régis Gomes ─ Deixando de lado a escrita diarística, Carolina realiza em Pedaços da fome o antigo desejo de dar vazão à sua produção ficcional, aventurando-se pelo gênero romanesco.

Nessa obra, Carolina paga tributo ao romance de folhetim romântico da segunda metade do século XIX (é preciso lembrar que o primeiro livro que a escritora leu e que marcou profundamente sua concepção da escrita por toda a vida foi um desses folhetins, A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães); mas, também, à dramaturgia das radionovelas, muito populares nas décadas de 1950 e 1960. Em ambas as formas de manifestação artística, encontraremos mocinhas inocentes tendo de enfrentar o poder arbitrário de algum vilão, numa atmosfera de total maniqueísmo na representação das personagens.

Na obra de Carolina, acompanharemos os infortúnios da personagem Maria Clara, filha de Galdino, um poderoso Coronel de uma cidade do interior paulista. Seduzida por um impostor da capital, chamado Paulo Lemes, a protagonista do romance terá a vida dela radicalmente transformada para pior ao descobrir que o homem com o qual se envolvera e fugira para a metrópole era na realidade um pobretão indolente.

O título original desse livro, escolhido por Carolina e descartado pelos editores, era A felizarda. Aqui é curioso observar o teor de ironia e deboche que a escritora deposita na denominação da protagonista de seu próprio romance, como um tipo de “ato falho” do inconsciente popular diante de uma figura de sua classe inimiga, ou seja, os ricos. É interessante notar também a modernidade desse procedimento literário, a partir da comparação com outros títulos consagrados de autores modernistas no Brasil, que promovem um olhar crítico ou irônico em relação aos seus protagonistas (Macunaíma – o herói sem nenhum caráter; A hora da estrela etc.).

Em Pedaços da fome a divisão social brasileira é mostrada sem disfarces, a partir de dois espaços geográficos principais: o campo e a cidade. No primeiro, numa localidade não especificada do interior de São Paulo, o Coronel Galdino é um grande mandatário local de feições coloniais, como os antigos senhores de engenho, a quem os moradores do lugar – quase todos empregados dele – deviam obediência e temor. Era, portanto, um representante da elite rural proprietária em sentido pleno. Maria Clara, sua filha, fora criada em regime de grande isolamento, pelos cuidados excessivos do pai e pelo medo  que deste tinham os colonos da cidade, de modo que nenhum pretendente, conforme escreve Carolina, “ousava aproximar-se dela” (p. 25). É um mundo muito semelhante ao descrito pela escritora em “O colono e o fazendeiro”, revelando uma continuidade temática que Carolina apresenta em suas obras.

Como antítese desse núcleo de poder e opulência, encontraremos Paulo Lemes, pária social que mora de favor nos fundos de um cortiço pertencente a uma tia. Ao longo da narrativa, descobriremos que Paulo, na verdade, encontrava-se na cidade de Maria Clara porque cumpria pena em um presídio localizado ali. Solto, perambula pelas ruas, dorme em cemitérios e igrejas (uma experiência, diga-se de passagem, que Carolina pode ter vivido em suas andanças pelo interior de Minas) e, finalmente, depara-se por acaso com Maria Clara, que havia saído para um passeio naquele dia, e a quem seduz, fingindo ser um dentista da capital. É da boca de Paulo que sairão as palavras mais veementes em relação à diferença entre as classes na narrativa. Já casado com Maria Clara e fugindo com ela para a cidade de São Paulo, ele, rompendo com o embuste que até ali representara, dirige palavras duras à esposa, explicitando com todas as cores os sentimentos de revolta que os privilégios dos ricos causam nos despossuídos: 

“Você tem a mesma mania de pretensão do teu pai. Você deve estar habituada a dirigir ofensas aos outros. Vocês ricos vivem bajulando-se. Um rico não gosta de inimizar-se com outro rico, mas nós os pobres vocês não consideram. Vocês é quem predominam e selecionam as classes.” [1]

Em São Paulo, Maria Clara e Paulo vão morar inicialmente num cortiço em Guarulhos e, depois de algum tempo, mudam-se para uma favela em local não especificado na capital paulistana. Cabe observar como, mais uma vez em uma obra de Carolina, a ficção encontra-se com a biografia, pois a trajetória de Maria Clara na narrativa, com as diferenças evidentes de origem social entre esta e sua autora, guarda grandes semelhanças com o percurso que a escritora mineira realizou como migrante: de uma cidade do interior paulista (Franca), ela chega a São Paulo e, após algumas experiências como empregada doméstica, vai morar em um cortiço; por fim, como a personagem de seu romance, termina na favela do Canindé, onde permanece por doze anos.

E aqui gostaríamos de abrir um parêntesis para analisar o fundo histórico que serve de esteio para a imaginação de Carolina Maria de Jesus em Pedaços da fome. Este romance, apesar de não estabelecer com clareza o tempo em que se desenrola a sua narrativa, permite supor que ela vai do começo do século XX até aproximadamente 1950. Ora, esse é justamente o período histórico em que o Brasil deixava de ser um país agrário e tornava-se um país urbano, com enormes fluxos migratório do campo para a cidade, em decorrência da industrialização levada adiante pelos governos de Getúlio Vargas, após a Revolução de 30, e posteriormente por Juscelino Kubitschek e seu nacional-desenvolvimentismo, conforme vimos. Boa parte desses migrantes fugia da exploração nos latifúndios do interior do país, o que nos permite compreender a relação entre a desigualdade no campo e os problemas sociais da cidade.

Com as reformas urbanas e a chamada gentrificação dos espaços mais centrais da capital paulistana na década de 1950, por exemplo, esses migrantes acabariam, por falta de opção e recursos, estabelecendo-se nas primeiras favelas, em condições de grande abandono institucional e pauperismo.

É neste ponto que a estética romântica que serve de inspiração para Carolina no romance em análise é literalmente penetrada pela realidade histórico-concreta brasileira. Nesse sentido, é interessante invocar duas passagens dos primeiros diários publicados pela escritora mineira para percebermos que, também neles, obras de caráter testemunhal, Carolina captura esse processo – perverso – de transformação do país.

Em Quarto de despejo, Carolina relata, no dia 7 de junho de 1958, um encontro com um outro catador de lixo. A autora o descreve como “um preto” cujo aspecto era de alguém “rasgado e sujo que dava pena”. Compadecida do homem, que cambaleava de fome, Carolina pede que o sujeito aguarde enquanto ela vende alguns papéis para dar a ele o dinheiro de uma refeição. Ele recusa e explica a sua condição nos seguintes termos:

“ – Eu não quero. A senhora cata papeis com tantas dificuldades para manter os teus filhos e deve receber uma migalha e ainda quer dividir comigo. Este serviço que a senhora faz é serviço de cavalo. Eu já sei o que vou fazer da minha vida. Daqui uns dias eu não vou precisar de mais nada deste mundo. Eu não pude viver nas fazendas. Os fazendeiros me explorava. Eu não posso trabalhar na cidade porque aqui tudo é a dinheiro e eu não encontro emprego porque já sou idoso. Eu sei que eu vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades.” [2]

Já em Casa de alvenaria, as observações de cunho sociológico de Carolina sobre os fenômenos da migração e da modernização perversa do país são ainda mais explícitos e precisos. Assim, no dia 2 de dezembro de 1960, enquanto participava do II Congresso Estadual de Vereadores, em Porto Alegre, a convite de Leonel Brizola, Carolina pronuncia o seguinte discurso:

“– Nós os favelados somos os homens do campo. Devido os fazendeiros nos explorar ilimitadamente deixamos as fazendas e vamos para a cidade. E nas grandes cidades os que vivem melhor são os cultos. Nós os incultos encontramos dificuldades de vida. Mesmo trabalhando na cidade como assalariado, encontramos dificuldades para viver porque o salário não cobre as despesas. Não há possibilidade de pagar uma residencia decente.” [3]

Logo após essa fala, Carolina recita “O colono e o fazendeiro”, mostrando a coerência de sua percepção da desigualdade no campo como a causa da favela e da miséria urbana.

Voltemos agora ao romance Pedaços da fome. Fazendo de Maria Clara, a protagonista da obra, uma típica representante da elite rural e levando-a a confrontar-se com o mundo dos marginalizados sociais, Carolina procura em muitos momentos expor a alienação em que vive a classe dominante brasileira. Dessa forma, a escritora utiliza o discurso indireto livre para revelar o choque da personagem em questão diante do mundo dos desafortunados, ou seja, a maioria do povo: “Era a primeira vez que ela entrava num lugar tão pobre. Desconhecia as classes sociais; não sabia que existia paupérrimos, médios e ricos.” [4]

Após trabalhar como empregada doméstica na casa de uma tia de Paulo, sofrer o assédio do primo de seu marido, ir morar na favela e tornar-se mãe de seis filhos, Maria Clara é encontrada por seu pai, seis anos após sua fuga. Durante todo esse tempo, ele a procurara pela cidade de São Paulo, sendo inclusive apelidado pelos funcionários do hotel em que se hospedara para tentar encontrar a filha de “judeu errante”. 

O desfecho do romance apresenta um teor patético, com direito a happy end, revelando mais uma vez os modelos melodramáticos dos folhetins do Romantismo e das radionovelas dos quais Carolina se valeu para escrevê-lo: Paulo, assustado com a chegada repentina do pai de Maria Clara ao barracão em que mora com sua família, morre de infarto. O Coronel compra o cortiço que pertencia a tia de Paulo e o doa aos antigos moradores, num gesto de filantropia. Conduzida de volta à sua antiga situação de classe pelo pai, a protagonista renega a vida de penúria que conhecera e deixa de questionar a legitimidade da ordem social que tantos privilégios proporcionava a uns e tanto sofrimento depositava sobre outros. Ao receber do Coronel as joias que deixara para trás ao fugir da fazenda, Maria Clara exulta:

“minhas jóias! Obrigada papai! É ao lado do senhor que devo dizer: – sou uma felizarda.” [5]

Provérbios, o livro seguinte de Carolina, é lançado também no ano de 1963 [6]. Nele, a escritora utiliza uma forma de expressão pela qual sempre demonstrara grande apreço. O livro Quarto de despejo, por exemplo, já se encontra repleto de provérbios, esse tipo de sabedoria popular condensada, geralmente com fins didáticos, muito característica da cultura africana (é bom lembrar que o avô de Carolina – com quem ela aprendeu muitos ensinamentos, através da oralidade, em sua formação inicial – era um negro cabinda, proveniente de Angola). Para citar apenas um exemplo, entre vários, desse tipo de linguagem que poderíamos apontar no primeiro livro publicado da escritora: “Eu comi pensando naquele proverbio: quem entra na dança deve dançar. E como eu tambem tenho fome, devo comer.” [7]

Uma modulação curiosa dos provérbios da escritora mineira é que eles não se constituem apenas de adágios, ditados e epigramas retirados da tradição erudita ou popular, mas também de reflexões que Carolina oferece a partir de sua própria experiência de vida: “Como é horrível para uma mãe ouvir esta canção. mamãe estou com fome, quero um pedaço de pão.” [8]

Em Provérbios, Carolina também registra alguns acontecimentos marcantes do contexto histórico e político tenso em que o livro foi escrito, tanto no âmbito internacional (“Ninguém passa um ano sem ter um aborrecimento e o meu aborrecimento do ano de 1963, foi a morte de Kennedy” [9]) quanto no âmbito nacional (“Juscelino Kubitschek perdeu o seu mandato político” [10]).

Apesar desse livro ser o que talvez apresente a maior gama de temas que a escritora mineira já tenha tratado em uma única obra (“amor”, “maternidade”, “fé”, “racismo” etc.), seu caráter político não deixa de saltar aos olhos do leitor. Em Provérbios, o conflito entre as classes sociais é configurado através das diferenças de vida e comportamento entre “ricos” e “pobres” apontadas por Carolina em suas máximas, mas também por meio de críticas e admoestações que a escritora dirige aos políticos e governantes do país. Os provérbios a seguir são bastante ilustrativos dessa dimensão política da obra em questão:

“O homem que prevalece de sua condição financeira para se engrandecer aos olhos da turba, não é um homem: é um verme.”  (p. 11)

“Um sábio pobre é criticado pela turba. Um rico estúpido é aclamado.” (p. 12)

“Um homem quando decide ser negociante, reveste o seu coração de pedras, pode ver um pobre morrendo de fome, se não tiver dinheiro ele ignora a sua presença.” (p. 26)

“Como é humilhado um pobre que reside ao lado de um rico que está sempre preocupado que o pobre irá roubá-lo.” (p. 48)

Ou, ainda, em relação ao governo e aos governantes:

“Quando um governo deixa o custo de vida oprimir o seu povo, ele deixou de ser um governo concreto para ser um governo abstrato.” (p. 20)

“Nós aqui no Brasil não temos complicações como nosso solo. Tudo se planta dá. E não temos super-produção. O que nos falta? Coragem, boa-vontade, cultura, ou apoio do governo?” (p. 30)

“Num país onde os predominadores deixa os predominados sofrer de fome, e desconforto moral e social, é o comprovante de que os predominadores são incientes, verdadeiras toupeiras.” (p. 45)

Dentro do contexto político problemático em que Carolina publica Provérbios, na iminência do golpe empresarial-militar de 1964 – ou, acreditamos, após essa ruptura institucional – não falta nesta obra a hipótese de um levante popular como solução da situação precária do povo:

“Não devemos confundir a paciência do povo com idiotice.” (p. 26)

“Quando o sofrimento atingir a classe predominadora, então eles hão de olhar a classe predominada.” (p. 46)

Como podemos perceber, trata-se de um livro em que as desigualdades sociais, as tensões políticas, as críticas aos governantes e a invocação da revolta popular, típicos daquele momento histórico, apresentam-se com grande nitidez.

Finalizando a nossa análise, gostaríamos de enfocar agora o livro Diário de Bitita, lançado postumamente no Brasil em 1986.

A história de publicação dessa obra é curiosa. Expulsa da cena literária desde a instalação da ditadura empresarial-militar de 1964, e recolhida em seu sítio em Parelheiros, na região metropolitana de São Paulo, uma Carolina de Jesus já bastante combalida pelos infortúnios da vida recebe a visita, em 1975, das jornalistas Clélia Pisa, brasileira, e Maryvonne Lapouge, francesa, que realizavam àquela época uma série de entrevistas visando a publicar um livro sobre escritoras brasileiras na França.

Carolina, então, aproveita a oportunidade para viabilizar a publicação de um manuscrito que vinha revisando há alguns anos e entrega dois cadernos a essas pesquisadoras, que os levam para a França e lá publicam esses escritos, em 1982, sob o título de Journal de Bitita (“Diário de Bitita”), provavelmente para aludir à obra mais famosa da escritora brasileira (o título original que Carolina concebera era Um Brasil para os brasileiros).

Não causa surpresa o fato de que o longo hiato de obras inéditas de Carolina no Brasil (a escritora nunca cessara de escrever) tenha sido quebrado apenas em 1986, após nove anos da morte da escritora. A ditadura empresarial-militar instalada aqui vinte anos antes chegara ao seu fim com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, o primeiro presidente civil após a retomada da democracia. Apesar da morte inesperada deste, seu vice, José Sarney, procurou criar um governo que estabelecesse as bases legais para garantir as liberdades individuais, sociais e políticas em nosso país, como as eleições diretas para presidente e prefeitos de capitais, o direito a voto dos analfabetos e a legalidade dos partidos comunistas, há décadas proscritos da esfera pública. Em 1986 também é enviada ao Congresso uma proposta de emenda para convocar a Assembleia Nacional Constituinte, eleita pela população, que seria responsável por elaborar uma nova Carta Magna que desse cabo do “entulho autoritário” do período ditatorial.

Nesse clima de liberdade e euforia, em que o país voltava a se repensar enquanto nação, uma obra como Diário de Bitita – repleta de reflexões sobre a nossa sociedade e a nossa cultura, dentro de uma ótica popular – surgia com um perfeito timing histórico.

Trata-se de um romance memorialístico, em que a escritora mineira rememora a sua infância, adolescência e parte da juventude em Sacramento e nas cidades do interior de Minas Gerais e São Paulo por onde perambulou em busca de trabalho ou tratamento de saúde. 

Em Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus plasma o biográfico ao histórico e social, a partir da perspectiva dos de baixo, marcados negativamente por sua classe, sua cor e, no caso dela e de suas semelhantes, também por seu gênero, para construir um quadro do país da primeira metade da década de 1920 até 1937, ano em que chega a São Paulo.

Esta obra é importante também porque, através dela, conhecemos a gênese da formação política de Carolina, que se dá por três vias basilares: [11]

  1. Através dos ensinamentos transmitidos oralmente à família por seu avô Benedicto da Silva:

“quando as noites eram mais quentes, nos agrupávamos ao redor do vovô para ouvi-lo contar os horrores da escravidão. Falava dos Palmares, o famoso quilombo onde os negros procuravam refúgio. O chefe era um negro corajoso de nome Zumbi. Que pretendia libertar os pretos. Houve um decreto: quem matasse Zumbi ganharia duzentos mil-réis eum título nobre de barão. Mas onde é que já se viu um homem que mata assalariado receber um título de nobreza!” [12]

  1. Por meio das leituras públicas que um oficial de justiça mulato chamado Manoel Nogueira fazia para os negros analfabetos de Sacramento:

“O senhor Manoel Nogueira passava o dia com os brancos porque era oficial de Justiça. E no entardecer ele sentava na porta de sua casa, e lia o jornal O Estado de São Paulo para nós ouvirmos trechos que foram ditos pelo Rui Barbosa; por exemplo, que cada estado deveria ceder terras para os negros cultivar. Mas este projeto não foi aprovado na Câmara.” [13]

  1. Pela leitura de figuras negras proeminentes na história cultural e política do Brasil:

“Nas horas vagas, eu lia Henrique Dias, Luiz Gama (…)” [14]

A luta de classes apresenta-se praticamente em cada parágrafo de Diário de Bitita. Retratando a vida dos despossuídos em uma cidade interiorana na República Velha, com a escravidão ainda fresca na memória – e no comportamento – dos poderosos locais, não tinha como ser diferente. As arbitrariedades e violências de todo tipo a que são submetidas as pessoas negras nessa narrativa de Carolina mostram-se em todo o seu horror. Da precariedade das moradias (“nossa casinha era recoberta de sapé. As paredes eram de adobe cobertas com capim” [15]), ao racismo (“O que eu notava era que nas festas dos negros os brancos não iam.” [16]), até o desamparo na velhice e a mendicância (“Quando o negro envelhecia ia pedir esmola.” [17]) e mesmo o assassinato (“O fato que me horrorizou foi ver um soldado matar um preto.” [18]).

Carolina denuncia a extrema impotência e submissão dos pobres diante da elite local: 

“O homem pobre deveria gerar, nascer, crescer e viver sempre com paciência para suportar as filáucias dos donos do mundo. Porque só os homens ricos é que podiam dizer “Sabe com quem está falando?” para mostrar a sua superioridade.” [19]

Na obra, porém, os maiores conflitos e tensões se dão no contato direto – geralmente nas relações de trabalho – entre pobres e ricos, negros e brancos.

Sobrevivendo basicamente do trabalho doméstico nas casas de fazendeiros, as mulheres, desde a infância, eram expostas ao abuso de seus patrões:

“Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia reclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outros porqueiras que vieram do além-mar.” [20]

Carolina dá especial atenção à exploração e à espoliação do camponês pelos proprietários das terras (como já mostrado, um tema recorrente em toda a sua obra):

“O fazendeiro dava uma ordem de cento e cinquenta mil-réis para o colono ir comprar os gêneros alimentícios num empório. O colono comprava feijão, farinha, toucinho, açúcar, querosene, fósforo, fumo, sabão e carne-seca. Não comprava arroz porque o dinheiro não dava. O que comprava não dava para oito dias. E se fosse pedir outra ordem para o fazendeiro, tinha que ouvir isto:

– Vocês trabalham pouco e comem muito.

No fim do ano, o fazendeiro ia acertar as contas com o negro, o negro estava lhe devendo quinhentos mil-réis…” [21]

Em outro momento da narrativa, a autora mostra-se ainda mais taxativa em sua análise dessa situação. Referindo-se às artimanhas dos fazendeiros e a certeza de sua impunidade, Carolina escreve:

“Atualmente, eles fazem assim: dão as terras para os colonos plantarem; quando vai se aproximando a época da colheita, o fazendeiro expulsa o colono e fica com as plantações e não paga nada para o colono. O fazendeiro tem um atenuante:

 – As terras são minhas, eu pago imposto. Sou protegido pela lei. 

É um ladrão legalizado.”  [22]

Na manutenção desse estado de coisas, a violência do Estado – controlado em âmbito nacional, regional e local pelas elites rurais – exercia, é claro, um papel fundamental:

“Aos sábados, os policiais apertavam-se. Ele (sic) colocavam um cinturão por cima da túnica. Era a prova de absoluta autoridade. Os pretos ficavam apavorados. As mulheres pretas saíam, iam nas vendas retirarem os seus filhos e seus esposos. Como é horroroso suportar uma autoridade inciente, imbecil, arbitrária, ignorante, indecente e, pior ainda, analfabeta.” [23]

Os exemplos desse tipo de relações de trabalho e opressão em Diário de Bitita poderiam se multiplicar às dezenas. 

Concluindo nossa análise, gostaríamos de retomar o seguinte: do primeiro poema publicado em jornal que temos conhecimento de Carolina Maria de Jesus ao último livro que a autora dedicou-se a revisar em sua reclusão no sítio de Parelheiros – e que, como vimos, só foi publicado postumamente – a escritora mineira apresentou como debate central, verdadeira “medula óssea” temática de sua obra, as relações assimétricas, arbitrárias, violentas e injustas entre pobres e ricos no Brasil.

Se voltarmo-nos para as produções literárias ainda não publicadas da autora [24],  veremos que, em todas elas, sem exceção, a luta de classes é tematizada, de forma subliminar ou ostensiva.

Carolina foi durante toda a vida uma trabalhadora e escritora. A escrita que produziu é uma literatura vista de baixo, ou seja, é uma obra formal e tematicamente condicionada pela perspectiva dos pobres e excluídos. Por mais “facetas” da autora que sejam mostradas pelas mais diversas correntes teóricas ou midiáticas da atualidade, olvidar esse aspecto fundamental de sua persona autoral é, em última análise, uma traição ao seu projeto literário.

Para terminar esse artigo com as palavras da própria Carolina, deixo aqui a letra do samba “O pobre e o rico”, que abre o seu único disco lançado, também intitulado Quarto de despejo, de 1961:

“É triste a condição do pobre na terra

Rico quer guerra, pobre vai na guerra

Rico quer paz, pobre vive em paz

Rico vai na frente, pobre vai atrás

Rico faz guerra, pobre não sabe por que

Pobre vai na guerra, tem que morrer

Pobre só pensa no arroz e no feijão

Pobre não se envolve nos negócios da nação

Pobre não tem nada com a desorganização

Pobre e rico vence a batalha

Na sua pátria rico ganha medalha

O seu nome percorre o espaço

Pobre não ganha nem uma divisa no braço

Pobre e rico são feridos

Porque a guerra é uma coisa brutal

Só que o pobre nunca é promovido

Rico chega a marechal” [25]

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[1] JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da fome. São Paulo: Editora Áquila, 1963. p. 70.

[2] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. p. 54. Grifos nossos.

[3] JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria. São Paulo: Francisco Alves, 1961. p. 91-92.

[4] Pedaços da fome, p. 71.

[5] Obra citada. p. 215.

[6] Embora, como veremos mais à frente, essa data de publicação ainda gere dúvidas.

[7] Quarto de despejo, p. 46-47.

[8] JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Gráfica Luzes, 196?. p. 50. 

[9] Provérbios, p. 44. Referência ao assassinato do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy, em 22 de novembro de 1963.

[10] Idem, p. 59. Referência à cassação do mandato e dos direitos políticos do ex-presidente do Brasil e então senador pelo PSD, Juscelino Kubitschek, em 8 de junho de 1964 – o que nos leva a conjecturar que esta obra de Carolina, ao contrário do que se estabeleceu na cronologia oficial das publicações da escritora, tenha sido publicada, na verdade, no ano de 1964.

[11] Devo o entendimento da gênese da formação política de Carolina Maria de Jesus às importantes pesquisas de Elena Pájaro Peres. Cf. PERES, Elena Pájaro. Exuberância e invisibilidade. Populações moventes e cultura em São Paulo, 1942 ao início dos anos 70. São Paulo: FFLCH-USP, 2007. Tese (Doutorado em História Social).

[12] JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 58. Grifos nossos.

[13] Obra citada, p. 39-40.

[14] Idem, p. 130.

[15] Ibidem, p. 7

[16] Diário de Bitita. p. 23

[17] Obra citada, p. 27.

[18] Idem, p. 112

[19] Diário de Bitita, p. 34

[20] Idem.

[21] Ibidem, 49-50.

[22] Obra citada, 140.

[23] Diário de Bitita, p. 89.

[24] Os romances Dr. Silvio e Dr. Fausto, Rita, O escravo, Maria Luiza e Diário de Marta ou mulher diabólica; as peças teatrais A senhora perdeu o direito, Obrigado senhor vigário e Se eu soubesse…, além de inúmeros contos, crônicas, poemas, provérbios e letras de música.

[25] JESUS, Carolina Maria de. Clíris – poemas recolhidos. Rio de Janeiro: Desalinho, Ganesha Cartonera, 2019. p. 122.

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