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Reflexão e interpretação

Que mal faz não interpretar textos!

Não se lê os clássicos. Estudantes que já chegam às universidades com baixa capacidade reflexiva

Dentre as muitas recentes contendas entre os ditos “tradicionalistas” e os ditos “identitários”, uma tornou evidente um dado que, há muito, despertava suspeitas: a incapacidade de se interpretar textos. Já tem tempo que palavras, tomadas ora na sua literalidade, ora em algum sentido figurado ou raiz etimológica fantasiosa, despertam a sanha das polícias ideológicas digitais da esquerda identitária e da direita liberal (que, vejam só, andam tão estranhamente juntas nessa questão, com pautas do feminismo ganhando propaganda de bancos). E, a partir daí, surge aquela série de desenganos sobre vocábulos como “denegrir”, “mulato”, ou o uso de expressões como “feito nas coxas” ou “o homem (como espécie) foi à Lua”. Tomando por óbvio que alguém à frente de think tanks estrangeiras ou brasileiras, ligadas ao capital internacional, é o disparador deste fenômeno e, adiante, por meio de prepostos, contaminam inocentes úteis na esquerda, quero me debruçar sobre este último grupo. 

Afinal, por que parte da classe trabalhadora cai na esparrela que desce via tobogã dessas Fundação Ford, Global Americans, NED etc, para causar divisão na luta proletária, revolucionária e nacionalista?

Uma pista está num episódio recente, ocorrido no Rio Grande do Sul, durante a pré-campanha do ex-presidente Lula. Antes de ser entoado o hino local, de profundo valor simbólico para o estado que, talvez, seja o mais apegado à sua cultura regional, a plateia, inapropriadamente, lavava roupa suja em público gritando em uníssono: “hino racista, hino racista, hino racista!”. Tomando o cuidado de verificar qual o racismo do hino, descobri o “malfadado” trecho: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Ponto. Logo, se há a palavra escravo, é um hino racista. Está, dizem os incautos, dizendo que os escravos foram escravizados porque não tinham a virtude, inerente aos brancos. 

Mas seria isso mesmo? Vejamos outros possíveis textos usando a mesma ideia. A começar pelo original. Se “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, sendo a palavra escravo designada de forma imprecisa, evocando um conceito, uma memória discursiva do que é ser escravo, chega-se à conclusão que esta palavra pode ser substituída por dominado, explorado, maltratado. E que a virtude é a insurreição, e não saber apreciar uma peça de Beethoven. Pois bem, se fosse “Povo que não tem virtude acaba como ‘um escravo’”. Ora, aí teríamos não mais um conceito, mas o apontamento geral da condição de privação da liberdade e imposição de trabalhos forçados para a sobrevivência. O que, evidentemente, nos permitiria uma gama de interpretações que iriam desde os hebreus do Antigo Testamento até imigrantes deixados em condições análogas à escravidão ou mulheres sequestradas pelo tráfico de pessoas. O suposto autor instaria o leitor a imaginar quaisquer dessas, inclusive os negros brasileiros da época, e se insurgirem e não terminarem nessa situação. Refere-se, portanto, a um determinado grupo social presente em várias sociedades durante o progresso do materialismo histórico. Por fim, se ele escrevesse “povo que não tem virtude acaba ‘como os escravos’”, aí sim, o artigo definido encerraria margens para interpretação. “Os escravos”, no contexto da Revolução Farroupilha, meados do século XIX, eram os negros traficados ao país. Haveria, portanto, uma concepção racista, ainda que abrandada pelo tempo, em que isso estava naturalizado, não sendo algo definidor do caráter de quem escreveu. Mas não é o que está escrito. 

A isso dá-se o nome de polissemia, isto é, a capacidade de uma palavra significar muitas coisas na semântica, embora cumpra com uma exata função sintática. E a melhor forma de entender a polissemia e relacionar-se com o outro, seja o que está ao seu lado, seja aquele que viveu duzentos anos atrás, é a leitura. Quando lê-se em Machado de Assis que “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, não quer dizer que “contos de réis” é uma fração de tempo inferior a mês, ou que o autor se confundiu, mas que o tempo pouco importa. O que importa é quanto tempo levou para o dinheiro acabar e, portanto, com ele ir embora o amor interesseiro de Marcela.

Esse processo é fundamental para o entendimento da linguagem, seus conceitos e, em última instância, da filosofia e das ideologias que assumimos. Sem ele, estamos fadados a ver um discurso bem-intencionado e conceitualmente correto em qualquer obra, mensagem, programa de TV que nos aparecer. Afinal, ninguém vai dizer: “Olá, sou um banco estrangeiro que explora o trabalhador, prático metas abusivas e assédio moral”. Mas dizer: “sou contra o assédio sexual contra a minha atendente virtual”, sim. “Dane-se a trabalhadora bancária de verdade”, que, por sua vez, talvez esteja muito feliz ouvindo a propaganda do banco, e vendo na TV que tal marca colocou o arco-íris na logo para o mês de junho. 

Por fim, o mais importante é denunciar um problema que poucos apontam, dada a “nova fantasia do rei” que toma as universidades. Não se lê os clássicos. Estudantes que já chegam de ensinos precários nas escolas públicas (sucateadas) ou privadas (campos de treinamentos para vestibular), chegam às universidades com baixa capacidade reflexiva e já são introduzidos, pelos professores, ao pensamento pós-moderno de Deleuze, Derrida, ou aos conceitos artísticos enlatados de Andy Warhol, sem nunca passar por um Agostinho, Kant, ou mesmo visitar o célebre quadro As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, triunfo da virada do Gótico para o Renascimento na pintura, que fica em exposição no MASP. Marx, então, já o conhecem só pelo discurso ouvido no DCE. 

Sem alicerce para tirar as próprias conclusões sobre nada, essa juventude toma pela literalidade a letra de um hino estadual, escrito no contexto de uma revolva popular, transformando-o numa ode ao supremacismo branco que, acreditam, os gaúchos professam desde sempre.

* A opinião dos colunistas não expressa, necessariamente, a opinião deste Diário

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