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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Identitarismo

Vamos falar da vida real

Identitários fazem vista grossa para as políticas que protegem os ricos e concentram a renda e a terra nas mãos de banqueiros e latifundiários.

Uma ou duas semanas atrás, as redes sociais se distraíam com uma polêmica lançada por jornal da imprensa burguesa sobre os tempos da escravidão. Um assumido colunista de direita resenhou um livro de história que registra um fato do período bastante incômodo para os identitários: a existência de negras libertas que enriqueceram e se tornaram elas próprias donas de escravos.

Segundo o autor do texto, essas mulheres seriam a prova de que o capitalismo premia o empreendedorismo e que qualquer um – até mesmo um ex-escravo durante o regime escravocrata – pode vencer na vida, desde que tenha talento. O disparate eriçou o exército identitário, que, como de hábito, reagiu emocionalmente e pediu o cancelamento do sujeito, enfim acusado de racismo, e a sua demissão do posto de articulista do jornal.

Entre mortos e feridos, o cara manteve seu emprego em nome do “pluralismo de opinião”, que o jornal apregoa ser sua política. Toco nesse assunto agora que a poeira baixou, porque fica mais fácil enxergar o que se passa. A estratégia da direita dita “civilizada” e apreciadora do “bom debate”, que detém os grandes meios de comunicação, é controlar os polos da discussão.

De um lado está um direitista assumido e provocador, e de outro um identitário histriônico a chamá-lo de “racista” e a descrever as próprias reações fisiológicas ao ler o texto – ânsia de vômito, enjoo, coisas desse tipo. A polêmica vai para as redes sociais e as pessoas se posicionam a favor de um ou de outro e xingam-se mutuamente até cansar ou até aparecer um novo tema.

Um dado importante dessa história: o direitista trata o identitário como esquerdista, coisa que sabemos ser uma falácia. Esse mesmo representante da política identitária, por sua vez, no lugar de rebater a interpretação do direitista, preferiu – em texto posterior – rebater os fatos, que reputou mentirosos, tendo perdido uma ótima oportunidade de mostrar que as pessoas agem de acordo com a posição que ocupam na sociedade. Se aquelas negras conseguiram, a despeito do regime escravocrata, enriquecer, não espanta que passassem a agir como os ricos da época – a menos, é claro, que fossem ativistas dos movimentos abolicionistas, coisa que certamente não eram.

O mais curioso é que, passados os espasmos, os dois contendores bem poderiam perceber que suas divergências não são assim tão profundas. O direitista Narloch afirma que o problema da teoria crítica racial é que ela enxerga o mundo pela lente das relações coletivas de poder” e que, segundo ela, “houve na história uma divisão nítida entre opressores e oprimidos, nitidez que persistiria hoje”. Na visão dele, apoiada na história de algumas exceções, indivíduos podem vencer independentemente da luta coletiva.

Os identitários, na prática, parecem acreditar também nessa força do indivíduo, a quem cabe o poder de representar a coletividade. Esta comparece com os dados estatísticos que comprovam a situação coletiva de opressão e justificam o direito de ascensão de alguns. Esses indivíduos que conseguem cargos dentro do sistema funcionariam como “inspiração” aos demais, que, pouco a pouco, acolhidos pelo beneplácito dos programas de diversidade das empresas, ascenderiam também. Quem quiser que acredite.

De resto, os negros que, seguindo esse caminho, chegarem aos cargos de chefia das corporações serão pessoas a serviço dessas corporações, cujo objetivo é aumentar os próprios lucros, não fazer ativismo. E, por óbvio, isso em nada muda a situação da massa de explorados. E o capitalismo segue muito bem, obrigado.

O identitarismo é muito interessante para a direita, pois mascara os verdadeiros polos da luta política, ou seja, as classes. Como poderia estar na esquerda sem ter compromisso com a classe trabalhadora?

Outra “polêmica” que tem sido objeto de muita “produção intelectual” é a que diz respeito a uma certa linguagem neutra e inclusiva, que pretende mudar a categoria gramatical de gênero. Os que defendem a sua adoção nas escolas e um processo de “reeducação” de toda a população, a título de promover a inclusão de “pessoas não binárias”, sempre apontam seus opositores como os “bolsonaristas”. Em outras palavras: ou se defende esse monstrengo linguístico, ou se é fascista, homofóbico, bolsonarista.

Como se vê, não há espaço para discussão real sobre essas questões, pois os identitários estão sempre munidos de um carimbo para marcar nas redes sociais aqueles que discordam de suas posições. Em geral, boa parte dessas pessoas são jovens de classe média oriundos do meio universitário, que acreditam piamente na última moda intelectual vinda de Harvard.

Quem chegasse de Marte hoje e presenciasse esse tipo de discussão na sociedade poderia imaginar que vivemos em uma situação de grande abundância e saciedade, o que explicaria estarem nossas reivindicações todas concentradas no plano simbólico: destruir estátuas, mudar a história contada pelo vencedor, mudar a língua, proibir uso de certas palavras, substituir nomes de ruas.

O que se vê na vida real, no entanto, é bem mais urgente. A pobreza está em todos os cantos: muitas pessoas fazem fila à espera de ossos de boi e carcaças de peixe para comer; outras se arriscam a furtar do supermercado um frasco de xampu ou um pacote de macarrão instantâneo para alimentar os filhos. As que não se resignam ante a humilhação de esperar uma doação ou mesmo o lixo do açougue são tratadas pelo nosso sistema judiciário como pessoas “que não conseguem viver em sociedade” e que representam “risco à ordem pública”.

É até difícil imaginar que pequenos furtos, como esses, motivados pela evidente situação de penúria e abandono da população, se tornem ações judiciais que tramitem em várias instâncias do sistema, chegando ao STF, o Supremo Tribunal Federal. Mais difícil ainda é acreditar que um membro dessa corte, no caso a ministra Rosa Weber, tenha endossado decisão de instância inferior segundo a qual o rapaz que subtraiu dois frascos de xampu de uma loja deve ser preso, pois “não consegue viver em sociedade”.

Esses casos são públicos e notórios, divulgados mesmo pela grande imprensa, mas não provocam nos identitários a mesma indignação, o enjoo, a ânsia de vômito que sentem diante de um texto de jornal sobre fatos ocorridos 200 anos atrás. Por que será? Não estará boa parte da população negra nessas filas de miseráveis à espera de restos do açougue? O carimbo dos identitários marca indivíduos, que devem ser condenados pelo que dizem, mas não se aplica aos verdadeiros culpados da situação caótica em que se encontra a sociedade.

Esses identitários fazem vista grossa para as políticas que protegem os ricos e concentram a renda e a terra nas mãos de banqueiros e latifundiários. Se não forem ingênuos, estarão a serviço da direita que quer “invisibilizar” – como eles gostam de dizer – a massa de explorados que sustenta a riqueza de uma ínfima porcentagem de cidadãos “civilizados”, esses que se acham no direito de ditar os rumos do país, dando golpes de estado quando lhes convém e, vez ou outra, concedendo uma esmola aos mais pobres.  

A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste diário.

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