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Luta de classes

Um Dia de Cão e as origens do identitarismo moralista

Filme de Sidney Lumet, de 1975, oferece análise sobre a cooptação da agenda identitária pelo capitalismo

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Atualmente, o PCO é o único partido de esquerda no Brasil que expõe as contradições intrínsecas da chamada cultura identitária.

No entanto, a crítica a esta estratégia política não é nova e existe desde a década de 1970, em especial, em alguns meios acadêmicos mais progressistas e vinculados à crítica cultural materialista e aos estudos culturais.

Um exemplo bastante pertinente e que nos ajuda a esclarecer a questão é o trabalho do teórico americano Fredric Jameson.

Em seu artigo “Classe e alegoria na cultura de massa contemporânea: Um dia de Cão como filme político”, de 1977, ele analisa a película dirigida por Sidney Lumet, produzida dois anos antes, como uma representação contraditória da matéria histórica com a qual trabalha.

O filme conta a história de um assalto a banco e é baseado em fatos acontecidos alguns anos antes em Nova York. Na forma, segue a narrativa hollywoodiana clássica e foi veículo para o brilho de uma estrela de cinema que estava no auge na época, Al Pacino, que interpreta o protagonista Sonny, um típico anti-herói.

No entanto, como aponta Jameson em seu texto, ao trabalhar com materiais do cotidiano, o filme não consegue fugir totalmente das contradições inerentes à materialidade social e à chave política do seu momento histórico.

Para ele, “a identificação do filme com o conteúdo político da vida cotidiana (…) contribui para o surgimento de profundas contradições formais, às quais o público não pode deixar de notar, tenha ou não os instrumentos conceituais para compreender o que tais contradições significam”.

Na história, Sonny e um comparsa tomam uma agência bancária onde se encontram funcionárias (todas mulheres), um gerente de meia idade e um segurança negro e idoso.

Tudo parece acontecer de maneira rápida, mas o amadorismo do assaltante faz com que o aparato policial da cidade e a política federal americana (o FBI) realizem um cerco à agência.

O que segue é uma longa negociação para libertação dos reféns que se torna um grande espetáculo midiático transmitido ao vivo por emissoras de TV, acompanhada de perto também por populares que, de modo inesperado, ficam do lado de Sonny.

Logo, recebemos a informação que ele decidiu realizar o assalto como forma de conseguir o dinheiro necessário para que sua esposa, um transexual, pudesse realizar uma cirurgia de mudança de sexo.

O filme coloca, portanto, todos os elementos que hoje poderíamos chamar de identitários em sua pauta. Com nosso olhar contemporâneo, fica impossível não perceber as representações de raça, gênero e identidade sexual.

No entanto, a crítica de Jameson ressalta os elementos de classe que a forma hollywoodiana não consegue esconder.

A agência bancária impessoal, propriedade de um conglomerado financeiro, é um marcador histórico que invade o bairro decadente e se contrapõe à barbearia local, tomada pelo aparato da polícia durante o cerco.

A agência materializa a mudança capitalista na forma do consumo massificado e na financeirização da vida cotidiana. As funcionárias do banco revelam a opção por mão-de-obra barata da instituição financeira. E o segurança negro e idoso, confundido com um dos assaltantes pela polícia, é um subempregado.

O espetáculo televisivo representado no filme antecipa a nossa própria experiência com as redes sociais nos dias de hoje. É possível inferir que as redes sociais são do jeito que são porque repetem a cultura do espetáculo que já existia.

Mais importante, a representação de diversos grupos identitários não esvazia um problema comum a todos: a questão de classe. Este fator os une visto que as mudanças estruturais que o capitalismo impõe atinge a todos igualmente. Sobre este assunto, Jameson afirma:

“O que está mais claro atualmente é que as reivindicações de justiça e igualdade proclamadas por esses grupos não são (ao contrário da política de classe social) intrinsecamente subversivas. (…) Os valores do movimento pelos direitos civis, do movimento feminista e o igualitarismo do movimento estudantil são notadamente cooptáveis, porque já estão – como ideais – inscritos no cerne ideológico do próprio capitalismo; além disso, devemos considerar a possibilidade de que esses ideais sejam parte da lógica interna do sistema, que tem um interesse crucial na igualdade social, na medida em que precisa dela para transformar o maior número possível de sujeitos ou cidadãos em consumidores.”

Atualmente, a política identitária reivindicada por grupos brasileiros contém os mesmos defeitos da americana, que apenas imita. Não por acaso, grandes grupos capitalistas fazem da inclusão igualitária estratégia de “responsabilidade social”.

Trata-se de uma política burguesa e capitalista, (não de esquerda e socialista), que serve aos interesses da classe dominante ao fragmentar os grupos sociais formados por assalariados e trabalhadores. É uma política de promoção de conflitos e de desunião entre os integrantes de uma mesma classe.

Além disso, a sua forma atual no Brasil é, antes de tudo, uma ideia fora do lugar, para citar Roberto Schwarz. Lembra um tipo de moralismo conservador que se nega a ver a realidade dos miseráveis que andam por nossas ruas e trabalha somente para a inclusão privilegiada de poucos indivíduos ao sistema que oprime a todos, sem exceção.

É no socialismo, via luta de classes, que emergirá a subjetividade solidária necessária para o fim dos preconceitos históricos.

O artigo citado está em:

JAMESON, Fredric. As Marcas do Visível. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1995.

Streaming

O filme Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975) pode ser assistido no Google Films.

A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste Diário.

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