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Repertório sinfônico

Por que ignoramos a música latino-americana?

No cenário da música de concerto brasileira, o que se pode observar é o quanto a música de compositores latino-americanos é sistematicamente ignorada

camerata romeu

Hoje, quero tratar sobre o repertório das orquestras sinfônicas e o quanto se reflete aí a dominação cultural sob a qual vivemos.

As orquestras são uma criação europeia e seu repertório reflete essa origem. A música dos compositores europeus, sobretudo do universo germânico, domina o conjunto de obras consideradas canônicas no repertório não apenas orquestral, mas de toda a música de concerto. Nossa cultura é eurocentrista e a música de concerto não foge à regra.

Sempre ouvi reclamações sobre a pouca execução de peças brasileiras pelas nossas orquestras. Mas nunca ouvi qualquer comentário sobre a ausência de obras de compositores de outros países latino-americanos. Esse repertório é completamente ignorado pelas orquestras brasileiras em geral. E eu diria que na música de concerto em geral, no Brasil.

Não só na música de concerto, mas também na música popular, o Brasil vive de costas para os países vizinhos. No caso da música popular, é possível considerar, talvez, a língua como um limitador ao acesso dos brasileiros à música de outros países da América Latina. O Brasil é muito centrado em si mesmo no que diz respeito à canção. Os povos vizinhos nos conhecem muito mais do que nós a eles, quando se trata de música.

Na música de concerto brasileira, raramente se ouve falar algo sobre compositores latino-americanos e mais raramente ainda se pode ouvir alguma peça desse repertório

Ver e ouvir o outro, na sua alteridade, é uma forma de enxergar a si mesmo e de se dar conta de suas características próprias. Foi o que aconteceu comigo ao assistir pela internet uma transmissão ao vivo da Camerata Romeu, uma orquestra de câmara cubana.Não foi o primeiro concerto em que pude ouvir um programa orquestral com obras latino-americanas. Isso já tinha acontecido no começo de 2020, quando estive presencialmente em um concerto de outra orquestra cubana, por ocasião de um colóquio de musicologia, na Casa de las Américas, em Havana.

Ouvir um repertório para mim desconhecido, diferente do habitual e com esse recorte latino-americano, me fez refletir no quanto fui privada de ter acesso a esse material, enquanto instrumentista e enquanto ouvinte. Por que não temos acesso a esse repertório? Se essas peças não chegam até nós, nem mesmo temos a opção de gostar ou não, ou de procurar conhecer mais da produção dos compositores latino-americanos. Para as orquestras brasileiras e, consequentemente, para o nosso público, esse repertório não existe. Somos todos privados dele.

A musicóloga Eliana Monteiro da Silva narra, em uma pesquisa sobre a pianista Beatriz Balzi e repertório por ela escolhido, a atuação de uma instrumentista no Brasil, no final do século XX, e seu esforço no sentido de trazer à luz obras de autores de países latino-americanos, então ignorados por aqui. De lá para cá, o cenário mudou muito pouco. Se agora encontramos algumas pesquisas sobre autores de países vizinhos, o repertório praticado nas nossas escolas de música e salas de concerto segue ignorando os compositores latino-americanos. Eliana fala da pianista “Beatriz Balzi e sua militância pelo piano da América Latina”. Parece que ainda é preciso contar com a presença de músicos “militantes” para que olhemos em direção à produção musical latino-americana.

A música não é algo que possa ser estudado como um objeto isolado. Para a compreensão de qualquer fato entendido como música é preciso considerar o contexto sociológico, histórico, político e cultural em que ele se insere. Podemos entender a situação de invisibilidade da música latino-americana no Brasil como um traço da condição de subserviência e subalternidade cultural do país em relação à cultura hegemônica. Ao que parece, os responsáveis pela escolha do repertório de nossas orquestras não se preocupam com essa atitude.

Cuba, ao contrário, é marcada pela grande valorização das artes e da cultura, assim como sua identidade cultural. A raiz da valorização do repertório não apenas cubano, mas latino-americano, naquele país, pode ser encontrada naquilo que embasa as concepções sociológicas, históricas e culturais da Cuba pós-Revolução: o pensamento martiano. Considerado o apóstolo da independência cubana, o intelectual e revolucionário José Martí (1853-1895) foi quem concebeu a ideia de unidade entre os povos da América Latina, a partir do conceito exposto sob o rótulo “Nossa América”. Conforme José Rodrigues Máo Júnior expõe, em seu livro “A Revolução Cubana e a questão nacional”:

A partir de suas observações e experiência vividas nos países latino-americanos, Martí percebeu a existência de características comuns a estas sociedades, o que mais tarde tornou possível que ele vislumbrasse não apenas a existência de uma identidade comum a estes países, mas também a existência de uma unidade de naturezas geográfica, histórica e social […]. Martí viria a adjetivar esta unidade com a expressão Nossa América.

A Revolução cubana tem o pensamento de Martí como a base de sua construção um delineador das concepções educacionais e culturais do país até hoje. É nesse contexto de maior sentimento de conexão, no conjunto dos povos da América Latina, que se pode compreender a possibilidade de abertura ao repertório orquestral latino-americano.

Nossa música precisa de renovar e se desvencilhar do tradicional “viralatismo” brasileiro, tão mencionado para falar do complexo de inferioridade e da subserviência cultural, herdados dos tempos do Brasil Colônia. O que José Rodriguez Máo Júnior escreveu sobre a época de Martí se aplica a esse caso.

O sentimento de inferioridade, aliado à ausência de identidade sociocultural mais sólida, fazia com que os elementos das elites latino-americanas se vissem tentados a negar suas origens para incorporar mecanicamente os arquétipos e aspectos exteriores da civilização europeia.

Se as abordagens da musicologia brasileira já assimilam as teorias da decolonialidade, desconstruindo a tradicional produção eurocentrista, o mesmo não se pode afirmar sobre a nossa prática orquestral. Sugiro aos responsáveis pelas orquestras brasileiras que comecem, ao menos, a prestar atenção ao trabalho dos cubanos e de suas orquestras, para talvez algum dia alcançar “um ponto de equilíbrio entre a individualidade da cultura americana [em referência ao nosso continente] e sua integração no seio de um saber universal”, para usar mais uma vez as palavras de José Rodrigues Máo Júnior.

É preciso reconhecer que a atual situação política do Brasil só favorece o isolacionismo em relação à América Latina e a postura subserviente aos países hegemônicos política e economicamente. Mais necessária se faz a atuação de intelectuais e artistas para que possamos reverter esse quadro.

Caso alguém tenha interesse em ouvir o concerto da Camerata Romeu a que me referi, deixo o link.

A posição dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste Diário.

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