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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Identitarismo

Podemos discutir o identitarismo?

Com o apagamento do real inimigo do povo, a classe média identitária vem colaborando para a diluição da energia de contestação do povo.

Há coisa de duas semanas, o jornal Folha de São Paulo publicou um texto do antropólogo Antonio Risério que pretendia ser um contraponto ao discurso identitário hoje dominante nas universidades, na mídia e mesmo nas grandes empresas com seus departamentos de “diversidade”. O artigo, em que o autor afirmava existir um “racismo reverso de negros contra brancos”, gerou grande controvérsia e até carta aberta dos jornalistas da empresa, que, ao externarem seu repúdio à publicação, levantaram outra questão, a da liberdade de expressão, que será tema de um próximo artigo.

De lá para cá, quase todos os articulistas do jornal têm mostrado seu posicionamento – honrosa exceção à colunista Djamila Ribeiro, que não quis entrar na conversa. No melhor estilo pragmático, apenas recomendou às pessoas que lessem seus livros sobre o racismo.

Fato é que o texto foi criticado menos por sua fragilidade conceitual que por sua suposta apologia do racismo. As redes sociais se levantaram e Risério foi sumariamente tachado de racista, mesmo por quem leu apenas o título criado por algum editor do jornal.

Ao que nos parece, o autor, com o intuito de criticar a política identitária, que promove a percepção da sociedade segundo uma divisão racial, arrolou fatos avulsos de reações de negros à condição de opressão (nos Estados Unidos) e a isso considerou uma espécie de racismo com sinal invertido. A tese que tentou construir ofende não só os negros mas a inteligência de pessoas de quaisquer cores, mesmo a das que não têm afinidade com esse tal “identitarismo”.

Segundo Risério, “ninguém precisa ter poder para ser racista”. Esse é o erro fundamental de sua percepção, sobre o qual ergueu a famigerada tese do racismo reverso. Por outro lado, a ideia de “racismo estrutural”, que se apresenta como consenso entre os intelectuais identitários, de certa forma, também diz isso.

Afinal, ‘somos todos racistas’: o branco pobre morador de favela é privilegiado em relação ao seu vizinho negro, o branco, qualquer que seja ele, só ocupa algum lugar por privilégio racial (pode ser o caixa de supermercado, o balconista de loja, o funcionário de banco, o jornalista, o professor de escola pública, o entregador de pizza, o motorista do ônibus, a manicure, o servente de pedreiro, o coletor de lixo e até o desempregado que pede ajuda nas ruas da cidade).

Os grandes defensores dessa tese estão, obviamente, na classe média, encastelados em universidades ou no meio artístico e nas redes sociais. São pessoas que não enfrentam a dureza do dia a dia e podem ter sua existência pública mediada pelas redes sociais, espaço em que vence o melhor marqueteiro de si mesmo. Embora se reconheçam privilegiados, não precisam abrir mão de seus privilégios. Basta a eles fazer o ato de contrição identitário, ou seja, reproduzir esse discurso e ajudar em operações de cancelamento. São os “formadores de opinião”, que nem mesmo sabem o que é pegar um ônibus lotado. Quem já andou feito sardinha enlatada na hora do pico talvez não veja tanto privilégio em ser branco nessa hora.

O problema da ideia de “racismo estrutural” parece ser o adjetivo “estrutural”. O racismo, infelizmente, existe e deve ser combatido. Nenhuma pessoa de boa-fé pode negar isso. O termo “estrutural”, no entanto, ainda que sua intenção fosse a de mostrar que o racismo se instaura a partir das instituições, traduz-se na prática pela afirmação de que todos os brancos são racistas desde a maternidade, nascendo já com uma dívida histórica em relação aos negros descendentes dos outrora escravos.

Um discurso como esse, que é o que circula hoje na intelectualidade, provoca alguns efeitos (e talvez o tal Risério estivesse preocupado com isso). Vejamos alguns deles.

As empresas que aderem ao discurso identitário e, a exemplo do Magazine Luiza, fazem programas de treinamento destinados unicamente a pessoas negras, em geral, estão preocupadas com a própria imagem, pois o exército de ativistas universitários de redes sociais está de prontidão para pôr em prática suas operações de cancelamento, se achar conveniente.

Diga-se que um bom exemplo disso ocorreu recentemente na própria Folha de São Paulo, cujos jornalistas protagonizaram um levante identitário nas redes sociais por causa da publicação desse texto do Risério. Vale lembrar que essa empresa instituiu programa de treinamento para jovens negros, que agora cobram coerência: afinal, o jornal vai ser identitário ou vai continuar se dizendo “pluralista”? Como sabemos, esse “pluralismo” é muito útil para que o jornal faça pose de progressista enquanto defende pautas conservadoras. Certamente, a direção não vai abandonar sua principal estratégia política para satisfazer a onda identitária pseudoprogressista, que, afinal, pode sair de moda.

Os artistas e universitários com canais de YouTube vão manter o discurso identitário em alta porque isso é “ser do bem”, o que lhes rende seguidores, consciência apaziguada e até dinheiro. Afinal, essa “luta” deles é bem fácil: basta mudar um pouco o vocabulário, evitar algumas palavras, trocar “escravo” por “escravizado”, abolir a palavra “denegrir”, de origem latina, como se tivesse alguma coisa a ver com racismo, tirar foto com pessoas negras, divulgar que está lendo o livro de um autor negro maravilhoso etc.

Os negros dessa classe média passam a usar seus penteados afro muito bem trabalhados, sem aqueles alisamentos etc., o que é esteticamente positivo, mas pouco efetivo enquanto luta concreta. Digamos que o pessoal da universidade é nota dez em semiótica, em percepção dos aspectos simbólicos das coisas, o que produz milhares de teses acadêmicas que serão lidas, no máximo, pela própria comunidade acadêmica. Gastam toda a sua energia nisso.

Enquanto os ricos e médios se digladiam na arena publicitária, os pobres continuam na luta diária, cada vez mais difícil, almejando o direito a serem explorados por algum patrão como se esse fosse o mais alto dos privilégios. Quando um consegue emprego com carteira assinada, chega a ser motivo de inveja. No geral, estão todos tentando se virar como podem, subempregados, fazendo bicos, totalmente alheios ao que um dia foram direitos trabalhistas. Para essas pessoas, entre as quais também há gente de pele branca, talvez ser branco não pareça um privilégio, pois estão muito mais próximas dos negros de sua classe social, afinal seus companheiros de infortúnio, que dos brancos do topo da pirâmide. O discurso identitário transformou todos os brancos em privilegiados, inclusive os pobres, como se a cor de sua pele, por si só, abrisse as melhores portas.

Para esses novos “formadores de opinião”, como a luta de classes não existe mais (tendo sido, quem sabe, substituída pela luta de negros contra brancos), os pobres, moradores de favelas e bairros periféricos, devem buscar o “empreendedorismo”. Será assim, com a aposta no talento do indivíduo, que os problemas serão resolvidos. Quem for competente sairá do atoleiro por seu próprio mérito.

Com o apagamento do real inimigo do povo, ou seja, os donos do dinheiro e do poder, a classe média identitária vem colaborando para a diluição da energia de contestação do povo. É muito útil ao sistema capitalista promover a canalização da revolta do povo oprimido para um inimigo de cor, que pode ser o seu vizinho ou colega de trabalho, e transformar reivindicações concretas por uma vida digna em questões psicológicas e simbólicas.

Os dois discursos, o do identitarismo e o do empreendedorismo, além de uma flagrante valorização da psicologia como caminho para enfrentar as relações de trabalho (aliás, as empresas têm disponibilizado serviço de atendimento psicológico aos funcionários), têm grandes afinidades.

Negros, por serem a maioria dos explorados, poderiam liderar um movimento verdadeiramente revolucionário contra o seu real opressor, ora ocultado pela nuvem de fumaça do identitarismo. Os explorados, de modo geral, de todas as cores, deveriam estar organizados em sindicatos em vez de serem atendidos por psicólogos on-line da empresa onde trabalham. Favelados deveriam reivindicar condições de sair da favela para os bairros onde quisessem morar dignamente, em vez de serem estimulados por ONGs a ser empreendedores da favela, para continuarem no seu gueto.

Enquanto assistimos a esse tipo de debate público nas redes sociais, os beneficiários do capitalismo, que costumam representar menos de 1% da população, reúnem-se em alegres jantares para tramar contra a candidatura de Lula, sem medo de revolta popular.

A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste Diário

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