Uma parcela da esquerda brasileira vem caindo no conto da luta épica entre civilização x barbárie. A civilização seria todos aqueles que não concordariam, mesmo que não integralmente, com os bárbaros. Os bárbaros seriam Bolsonaro e os que seguem fiéis ideologicamente a ele. Ex-bolsonaristas, ou bolsonaristas enrustidos, como o influenciador digital Felipe Neto ou o governador de São Paulo, João Doria, estão atualmente na vanguarda da civilização.
Em carta pública dirigida ao expoente do PSDB, o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, pede que Doria lidere a luta pelo impeachment de Bolsonaro. Referindo-se a este como “Satã” e “Satanás” e citando Winston Churchill, o petista faz um apelo:
Pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no “quanto pior melhor” só favorece os assaltantes do caos.
Uma postura idêntica adotou a esquerda parlamentar na corrida eleitoral pela presidência da Câmara dos Deputados. Para justificar seu apoio ao candidato de Rodrigo Maia – Baleia Rossi -, PT, PCdoB e o PSOL (extra-oficialmente) vêm propagandeando que a sua aliança com MDB, DEM, PSDB, PSL e a direita congressista seria uma “frente democrática” contra o fascismo. Em manifesto conjunto assinado pelos presidentes dos partidos que compõem o bloco “antifascista”, afirmam:
Enquanto uns cultivam o sonho torpe do autoritarismo, nós fazemos a vigília da liberdade. Enquanto uns se encontram nas trevas, nós celebramos a Luz.
Tarso Genro não se lembrará que Doria é o mesmo que, na campanha para governador, criou o lema “BolsoDoria”, aliando-se a Bolsonaro e promovendo uma verdadeira campanha eleitoral fascista, de ataques aos trabalhadores e a todos os direitos democráticos, prometendo repressão contra os “bandidos”, “foras-da-lei” da esquerda? Gleisi Hoffmann e os parlamentares de esquerda se esqueceram que Baleia Rossi votou 90% das vezes junto com Bolsonaro na Câmara?
Mais do que isso: a esquerda não consegue entender que foi justamente a direita tradicional, conhecida como “Centrão” ou centro-direita, quem criou e impulsionou o bolsonarismo, justamente para garantir a derrubada ilegal da ex-presidenta Dilma Rousseff? Isto é, que a direita, a burguesia, promoveu o fascismo para dizimar a esquerda e as organizações operárias?
A esquerda deveria aprender com a história. E exemplos históricos não faltam para argumentar contra a ideia da falsa dicotomia civilização x barbárie.
A barbárie, ou seja, o fascismo, nasceu na Sociedade dos Industriais italianos, no momento exato em que a classe operária ameaçava realizar uma revolução com a greve geral seguida das ocupações de milhares de fábricas em 1919-1920. Foram os industriais italianos que alavancaram Mussolini, como bem retratado por Bernardo Bertolucci em 1900. Os civilizados homens de terno e gravata, a alta sociedade italiana. O próprio Mussolini não era um bárbaro. Era um político de carreira e jornalista, isto é, um típico intelectual pequeno-burguês.
Hitler era pintor. Tudo bem, um pintor fracassado. Mas um pintor de Viena, outrora uma metrópole símbolo da aristocracia europeia.
António de Oliveira Salazar, o ditador fascista que governou Portugal durante 40 anos, era um renomado professor universitário. Em 1940, recebeu o título de Doutor honoris causa da Universidade de Oxford.
Plínio Salgado, líder do Integralismo, conhecido como o “Führer brasileiro”, foi um dos mais destacados intelectuais do País nos anos 30.
A Família Real britânica, símbolo máximo da civilização ocidental, apoiou plenamente o fascismo. Quem diria que os lordes e Sua Majestade seriam todos bárbaros? Sim, os fascistas também tomam o chá das cinco! Mussolini fez grandes acordos com a Igreja Católica e Pio XI virou seu amigo. Deus e o Diabo sob o mesmo lençol!
“Os que perpetraram aqueles horrores em Maria eram a fina flor do que a educação fascista tinha produzido. Eram a fina flor da Espanha cavalheiresca”, pensa consigo mesmo Robert Jordan, protagonista de Ernest Hemingway em Por quem os sinos dobram, a respeito da horda franquista que estuprara a sua amada.
Todos os movimentos fascistas saíram da barriga da burguesia. Os capitalistas pariram o fascismo. E continuam parindo até hoje, quando sentem essa necessidade. Isso porque a ideologia da burguesia é justamente o fascismo. Se possível fosse, ela manteria a humanidade sob um regime mais brutal ainda que o próprio nazismo. Mas a luta incessante entre as classes sociais não permite. Por isso a burguesia precisa passar um perfume e pentear o cabelo de vez em quando, colocando um terno em João Doria para apresentá-lo como um modelo civilizacional, a fim de implementar a mesma política bárbara sob um verniz científico.
Para refutar completamente a tese sem sentido de que o fascismo se desenvolve apenas porque “o povo é burro e não sabe votar”, devemos enfatizar: 1) o fascismo sempre ascende ao poder como um movimento de massas, mas das massas “cheirosas” (como diria Eliane Cantanhêde, outra civilizada), ou seja, da pequena burguesia pretensamente intelectualizada; 2) os próprios líderes fascistas são membros das classes abastadas ou são tutelados pelas classes abastadas; 3) o fascismo tomou o poder em alguns dos países mais desenvolvidos do mundo “civilizado” (Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, França, Áustria, Japão) e foi um movimento muito grande nos EUA e na Inglaterra, além de ter chegado ao poder nos países atrasados só porque foi impulsionado pelas potências imperialistas “democráticas” (EUA na América Latina, Inglaterra na África do Sul, por exemplo).
A burguesia, a depender a conjuntura política e da correlação entre as forças sociais, adota uma tática diferente de tempos em tempos. Ora, veste Doria de terno e gravata. Ora, o veste de verde e amarelo. Como o “BolsoDoria” não funcionou, agora ela joga a cartada do Doria científico e civilizado. Quando a situação mudar novamente, ela irá ressuscitar o “BolsoDoria”, com um agravante: terá uma legitimidade maior, posto que recebeu o apoio de toda a “civilização”.
A esquerda deve ter um entendimento correto da situação: os civilizados de hoje são os fascistas de amanhã.
A solução, ao invés de ficar eternamente à reboque da direita golpista em uma frente ampla supostamente antifascista, é mobilizar as massas. A união necessária é entre os partidos de esquerda que têm ligação com o povo e os sindicatos e movimentos sociais, com os trabalhadores da cidade e do campo. Só a independência de classe será capaz de derrotar o fascismo. A burguesia não tem esse objetivo.