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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

ESQUERDA SEM POVO

O povo: quem é esse desconhecido?

Em vez de fazer a intermediação de institutos sociais de bancos com “os pobres”, a esquerda deveria estar organizando a população em torno de seus problemas reais.

Um velho amigo gostava de contar suas histórias de estudante da Faculdade de Ciências Sociais da USP, onde ele estudou na década de 80 do século passado. Uma delas, que ele narrava com detalhes que aqui não caberia reproduzir, era a de uma moça muito bonita, egressa da burguesia intelectual do país, primeiranista do curso, que soltou uma pérola na última aula de sociologia do semestre.

Na ocasião, a professora organizou as carteiras em um grande círculo e pediu aos alunos que falassem livremente sobre seu primeiro contato com a sociologia. A jovem pediu a palavra e, entusiasmada, disse que estava muito satisfeita porque tinha percebido que “o povo é legal”. A coisa motivou o constrangimento de alguns filhos da nata da intelectualidade que estavam na turma e, depois, virou uma piadinha inocente. Fosse hoje, a frase se tornaria uma hashtag.

O episódio veio à memória deste escriba porque, 40 anos atrás, os universitários, orientados pelo marxismo, ainda vislumbravam a revolução, diferentemente de hoje, quando parecem mais empenhados em construir uma startup de sucesso. Alguém que dissesse hoje, na mesma sala, a mesma frase de outrora (“O povo é legal”) não causaria espanto nenhum e talvez recebesse uma salva de palmas.

A esquerda pequeno-burguesa universitária, agora orientada pelo identitarismo, não tem a menor ideia do que seja o povo brasileiro, para além da empregada doméstica, do jardineiro e do motorista. Anda agora metida em “agências de comunicação de causas”, que são organizações patrocinadas por institutos sociais de bancos e de outras grandes empresas, gente que, no fim do século 20, atendia pela alcunha de “terceiro setor”.

Hoje, com o identitarismo e a internet, o controle exercido por esses atores sociais tende a expandir muito mais os seus tentáculos. A divisão da sociedade em fatias é a estratégia principal desses grupos – dividir, desunir em nome da tão propalada “diversidade”. Se é verdade que a união faz a força, a desunião serve para enfraquecer.

Não à toa a velha sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) foi banida do movimento quando o identitarismo se apossou dele – e o “s” de simpatizantes desapareceu, dando lugar a muitas outras letras e a um sinal matemático que indica que novas subdivisões podem ser acrescentadas indefinidamente (LGBTQIA+). O simpático “s” incluía os héteros que assim o desejassem, mas o identitarismo não quer unir, quer dividir, separar, desunir.

Enquanto se engajam nas ditas causas (defesa de negros, mulheres, LGBTQIA+ etc.), os universitários se distanciam enormemente do povo, cuja “ignorância” eles lamentam. Segundo eles, os ignorantes (ou seja, o povo) não alcançam a sofisticação da teoria do “racismo estrutural” e da “luta simbólico-higienista” que eles empreendem em operações de censura e cancelamento virtual.

Os institutos sociais dos banqueiros, por sua vez, estão preocupados com esse pessoal “conservador” que prefere ouvir o pastor evangélico a aderir à ideologia identitária da classe média, que, aliás, não diz respeito à sua realidade. Vejamos que coisa interessante: os institutos fomentados pelos grandes capitalistas arregimentaram intelectuais identitários (que eles chamam de “progressistas”) para estudar o “discurso dos conservadores” e também o “discurso progressista”, em busca de encontrar um caminho para doutrinar essas pessoas ditas conservadoras e, assim, conter a polarização, que, na opinião deles, “ameaça a democracia”.

O objetivo deles é estabelecer o “diálogo” com esses “pobres de direita” (que eles chamam de “conservadores”) e, para tanto, chegaram à conclusão de que devem desenvolver “empatia” com essas pessoas e se dispor à “escuta” de seus problemas. O duro é que eles não conseguem usar um vocabulário diferente, ainda que essa seja uma das recomendações do estudo. Mais parecem um bando de psicólogos que vão “escutar” o desabafo dos oprimidos.

Um participante de oficina realizada por um desses institutos resume:  “[Isso] é quase um elemento básico de comunicação: você não pode fazer nenhuma campanha sem escutar quem você quer atingir. É quase um ‘ouça o público-alvo da sua campanha, antes de fazer a campanha’”. Então, esses institutos vão à periferia para tentar descobrir o que é o povo, o que pensa, como vive, de que se alimenta, que língua fala. Será que “o povo é legal” finalmente? E, depois, vão fazer sua “campanha”, ou seja, sua propaganda.

Um pastor evangélico chamado à discussão diz o seguinte: “Essa massa evangélica que cresce no Brasil hoje é majoritariamente popular, periférica e negra, composta de trabalhadores e trabalhadoras. Eu acho que isso nos dá um indício de como chegar e sobre o que falar. Porque nós podemos chegar nesses espaços e falar sobre transporte público, salário mínimo, saneamento básico, segurança pública, que atinge, muitas vezes, a vida dessas famílias. Ou seja, esses temas do cotidiano geram pontos de conexão. […] Vamos conversar sobre a vida neste território, nesta comunidade. O que tem a ver com dignidade humana, com emprego, com renda. Porque isso vai tirando esse véu do distanciamento e essa polarização muito perigosa. Daqui a pouco vai ser democracia versus evangélicos. E a democracia vai perder!”.

Em suma, os intelectuais universitário-identitários tiveram de ouvir do pastor evangélico que as pessoas têm problemas concretos a resolver (transporte público, salário mínimo, saneamento básico, segurança pública, emprego e renda). É vergonhoso. Em vez de fazer a intermediação de institutos sociais de bancos com “os pobres”, a esquerda deveria estar organizando a população em torno de seus problemas reais. Seu projeto, no entanto, está afinado com o da burguesia: conter a revolta popular à custa de despejar algumas migalhas dos ricos para os pobres – migalhas essas que, não raro, são abatidas do Imposto de Renda dessas organizações “filantrópicas” do “terceiro setor”.

Com uma esquerda amiga do capital, não espanta que o bolsonarismo avance. Uma coisa parece evidente: o povo não se sente representado por essa esquerdinha pom-pom arrogante, talhada no vocabulário identitário, que, embora se ache o suprassumo da vanguarda intelectual, de progressista não tem nada, pois atua para conservar o poder dos capitalistas sedentos de uma “terceira via” nas próximas eleições.

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