É banal que as sociedades se acostumem com a desgraça? Parece que sim. No capitalismo, para evitar a indignação excessiva, o horror muitas vezes é imposto de maneira homeopática. Contudo, chega uma hora em que as desgraças vão se sucedendo com tanta velocidade que a impotência de enfrentá-las apenas faz com que mudemos de canal ou de calçada.
Esta semana assisti a um pequeno filme que é uma metáfora desta situação. Chama-se Sentidos do Amor (Perfect Sense, 2011), dirigido pelo cineasta inglês David Mackenzie. No enredo, Michael (Ewan McGregor), um chef de cozinha, e Susan (Eva Green), uma epidemiologista, enfrentam uma epidemia desconhecida. Aos poucos, sem nenhuma razão aparente, a humanidade começa a perder os sentidos, como o olfato, o paladar, a audição, a fala e por aí vai.
Ao longo da trama, os personagens da pequena-burguesia enfrentam arroubos emocionais, mas a cada sintoma vão se adaptando às novas condições a ponto de esquecer a habilidade perdida e tocam a vida como se nada tivesse acontecido. A perda de sentidos físicos é uma premissa interessante visto que é através deles que percebemos a realidade e conseguimos trocar com o mundo, com as pessoas e com a sociedade. Assim, no filme, esta perda torna-se metáfora de alienação social em uma conjuntura que considera normal ou natural situações aterrorizantes e abomináveis, marcas do nosso momento histórico.
Tomemos como exemplo a concreta chacina que aconteceu no dia de ontem no bairro da Vila Cruzeiro, na cidade do Rio de Janeiro. Ao que tudo indica, morreram 24 pessoas que foram perseguidas e executadas por policiais das esferas estadual e federal. Os parentes tiveram que tirar os corpos do meio do mato. O massacre lembra outro que aconteceu na comunidade do Jacarezinho, há pouco mais de um ano, quando 27 moradores perderam a vida.
Durante o dia de ontem, houve cobertura jornalística que repercutiu o acontecimento. No entanto, hoje, menos de 24 horas depois, não há mais nada nos sites dos jornais da imprensa hegemônica. A vida segue absolutamente normal. No portal G1, do Grupo Globo, o único destaque é para o velório de uma mulher que foi alvejada dentro de casa. O texto ressalta os lamentos do coronel responsável pela operação e do governador, que tenta a reeleição.
Sobre os outros 23 mortos, o veredito já está dado. Tudo que foi divulgado sobre essas pessoas é que são suspeitos de tráfico de drogas e que, por isso, não merecem que seus nomes sejam citados nas páginas dos jornais. A eles são oferecidos o esquecimento e o silêncio que compactuam com o trabalho altamente produtivo da polícia. O grotesco caráter de espetáculo da operação e o degradante uso político-eleitoral tanto do aparato de violência estatal, quanto daqueles que foram mortos não são colocados em questão. Este debate ficou restrito a alguns canais progressistas.
A brutalidade cega, surda e muda da burguesia chegou ao ponto de contabilizar a morte de brasileiros pobres como ganho eleitoral, político e econômico. No filme O Fascismo de Todos os Dias (Obyknovennyy fashizm, 1965), o cineasta russo Mikhail Romm mostra o lucro decorrente de cada morte nos massacres ou nos campos de concentração europeus durante a expansão do nazismo alemão pelo continente (leia aqui a minha análise do filme). Ao que tudo indica, a indústria de cadáveres brasileira parece que aprendeu com os nazistas como a produção de gente morta às dezenas pode gerar lucro e ganho eleitoral. Dias mais sombrios estão no horizonte.
Onde assistir
Sentidos do Amor está no Mubi.
O Fascismo de Todos os Dias está no YouTube (legendado em espanhol) ou pode ser adquirido em DVD no site do CPC-UMES.