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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Peleguismo estrutural

Neca Setúbal, Carrefour e a política identitária

Lideranças econômicas, sociais, políticas, acadêmicas e periféricas de mãos dadas por um mundo melhor. Parece comercial de margarina, mas é a agenda do empresariado

Neca Setúbal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setúbal, uma ONG do grupo Itaú, autodescrita como “familiar”, foi convidada a participar do último ato contra o governo Bolsonaro. Naturalmente, não lhe passou pela cabeça brindar os manifestantes com sua presença física – no que mostrou a prudência típica da burguesia, cujos membros, afinal, sabem o lugar que ocupam na sociedade e não se expõem à execração pública.

A banqueira gravou um vídeo, cuja exibição em um telão instalado na avenida Paulista, pretendia animar a festa da democracia frente-amplista. Na prática, quase ninguém viu a imagem e mal se ouvia a voz do além que, no meio da muvuca, soava no áudio do carro de som. A brilhante ideia de infiltrar a direita no ato, obra de uma esquerda morna e indecisa, não deu em nada, mas é claro que chama a atenção botar dono de banco pra fazer discurso em ato público.

Pois a senhora Neca, apresentada como “socióloga”, agora, aos 70 anos, descobriu que existe racismo no Brasil, conforme explicou recentemente na Folha de S.Paulo:

[…] me surpreende muitíssimo como pudemos, enquanto sociedade nas suas diferentes instâncias, invisibilizar durante tantos anos nosso racismo sob o conceito dissimulador da democracia racial.

…em artigo cujo título é o mantra dos identitários: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Em entrevista, publicada no mesmo jornal, ela diz: “Sou branca, privilegiada, mas quero ao meu lado um país mestiço, diverso”.

Alvissareira a notícia de que brancos privilegiados, como essa banqueira, “querem ao seu lado” um país mestiço. O que não está dito claramente é que a estratégia inclusivo-diversitária não põe em risco seus privilégios, do contrário a senhora Neca não estaria a ocupar-se dessa pauta – poderia estar flanando pela Europa, a gastar um naco da sua fortuna.

Diga-se que, durante o primeiro ano da pandemia, foi muito ouvida a frase “sou privilegiada” ou “sou privilegiado”, vinda de artistas, empresários, herdeiros, gente cuja opinião sempre tem espaço na imprensa da burguesia. O reconhecimento do “privilégio” como circunstância fortuita (fruto da vontade divina?) é uma espécie de salvo-conduto usado antes que a pessoa expresse algum tipo de solidariedade, geralmente da boca para fora, em relação ao povo mais sofrido, aquele que toma ônibus lotado, enfrenta a falta de dinheiro para o alimento e o botijão de gás etc.

É bom lembrar que a esquerda pequeno-burguesa também usa muito essa frase (sou privilegiado, mas defendo os pobres, os negros, as mulheres, os LGBT). Vejam-se as feministas de jornal da burguesia, que igualmente se dizem privilegiadas porque cresceram em famílias maravilhosas e têm maridos e empregos fantásticos, mas reconhecem que outras mulheres possam ter sido humilhadas etc.

Esse parêntese serve de sinal de alerta. Se a pessoa começar a frase dizendo “Sou privilegiada”, vamos desconfiar. Quem é privilegiado vai defender os próprios privilégios.

Voltemos, porém, a Neca Setúbal, que, empenhada em sua luta antirracista, escreve em seu artigo:

Não podemos mais tolerar a violência policial que promove o genocídio da juventude negra. Não podemos apoiar a violência simbólica e excludente contra pessoas negras em diferentes espaços da sociedade. Estar atento a essa agenda, que encontra adversários movidos pelo ódio, envolve nos responsabilizarmos por iniciativas no nível de políticas, projetos e também no cotidiano de cada um.

A senhora Neca faz a crítica da violência policial que assassina jovens negros na periferia, dado concreto ao qual soma a ”violência simbólica e excludente”. Como ela mesma diz, lutar contra essa violência está na sua agenda, cujos adversários são movidos pelo ódio. Até aí, aparentemente, há uma crítica à gestão da extrema direita que se instalou no Brasil com Jair Bolsonaro e seu “gabinete do ódio”.

O parágrafo final do texto traz a solução do problema:

Construir esse país que não está no retrato significa unirmos e reunirmos as lideranças sociais, acadêmicas, econômicas, políticas, periféricas, brancas, negras e indígenas. Somos um país com 51% de mulheres e 54% de negros, e é somente com essa cara que vamos construir uma nova sociedade, realmente brasileira e democrática.

Numa espécie de mágica, lideranças econômicas (bancos, empresários, agronegócio), sociais, políticas (quais?), acadêmicas e periféricas se juntariam num ato de congraçamento. Todos juntos, de mãos dadas, por um mundo melhor. Parece comercial de margarina, mas é a agenda do empresariado.

Para entender melhor a proposta, vejamos qual é a “missão” da Fundação Tide Setúbal, segundo seu site:

Fomentar iniciativas que promovam a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuam para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do mercado.

E continua:

[…] é preciso um movimento articulado e contínuo de ações no território, por isso a Fundação acredita na importância de as periferias serem sujeitas a um planejamento que qualifique as práticas do poder público e potencialize os resultados do investimento social privado e da sociedade civil. Quando se pretende a busca pela equidade, criar sinergias em torno da transformação do território é um passo fundamental.

Como se vê, fala-se muito em periferia, mas numa linguagem cifrada, que ninguém entende ao certo o que quer dizer. Na prática, a fundação do banco Itaú quer planejar a vida da periferia (o tal “território”) para obter ganhos. A coisa ainda está um pouco abstrata, por isso vamos lembrar uma história bem concreta, que revoltou o país, o assassinato de Beto Freitas, homem negro que foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour, outro representante da burguesia recém-convertido ao identitarismo.

O Carrefour teria oferecido à família de Beto uma indenização no valor de R$ 1 milhão, segundo o site Conjur, valor esse semelhante ao ajustado mediante TAC (termo de ajustamento de conduta) quando outro segurança do mesmo Carrefour assassinou cruelmente um cachorro nas dependências de uma das unidades da rede.

O que se sabe é que, com a ação dos advogados identitários, esse valor aumentou bastante, chegando a R$ 115 milhões, dos quais uma parte – não divulgada – foi para a família de Beto (uma família pobre, diga-se) e a outra, o “grosso”, foi para ações de combate ao racismo, segundo informa o grupo Carrefour:

Boa parte do recurso financeiro será destinado à concessão de bolsas de estudos para pessoas negras, de nível superior e de pós-graduação. Haverá ainda bolsas voltadas para a aprendizagem de idiomas, inovação e tecnologia, com foco na formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho. Ao todo serão mais de 10 mil bolsas.

Segundo o Estadão:

O plano de ações […] conta também com a promoção do empreendedorismo entre pessoas negras e aceleração de empresas. “Há ainda a implementação de política de Tolerância Zero, treinamento contínuo de todos os profissionais que atuam no Grupo Carrefour Brasil em relação ao letramento racial e ao combate de todo o tipo de discriminação e violência, bem como o fortalecimento do canal de denúncias. Todas as três ações já em implementação na Companhia.”

O Carrefour não fez mais que sua obrigação ao desembolsar o dinheiro. Até aí, não se discute. Quem intermediou a negociação, no entanto, achou por bem favorecer a população negra universitária e conceder bolsas de pós-graduação. Por que é tão importante que a morte cruel de um negro pobre seja compensada com benefício aos negros universitários?

Podemos imaginar que esse contingente de negros com pós-graduação vá ocupar os tão almejados cargos de chefia nas empresas, hoje majoritariamente ocupados por brancos, e assim criar certa equidade. Chegando lá, os novos chefes negros mostrarão que são capazes de fazer o mesmo que os brancos, isto é, aumentar os lucros da empresa, explorar os trabalhadores etc.

Uma reivindicação dos negros identitários é que não sejam percebidos coletivamente, mas individualmente, como os brancos. Querem ser valorizados por suas conquistas individuais e, quando conseguem isso, oferecem ao grupo majoritário (o grupo de negros pobres) apenas a sua imagem, que, em abstrato, teria o condão de representar a “possibilidade de chegar lá”. Seriam, portanto, pessoas inspiradoras. É o caso da ativista Djamila e sua bolsa Prada, por exemplo, uma verdadeira inspiração para os negros “periféricos”.

Essa política obviamente os desobriga de qualquer compromisso com qualquer tipo de luta coletiva. O coletivo, no entanto, tem sua utilidade quando traduzido em estatística. A estatística fornece o argumento para as ações de inclusão e diversidade nas empresas, que beneficiam alguns escolhidos, cuja presença nesse ambiente reforça o marketing da própria empresa.

Voltemos ao mundo mágico da senhora Neca Setúbal, em que o mercado estará de mãos dadas com “lideranças acadêmicas”. Os pós-graduados também são importantes por outro motivo. Eles serão os futuros professores universitários, a quem caberá reproduzir a política pelego-identitária.

No começo, a burguesia se posicionava contrariamente à política de cotas sociorraciais nas universidades públicas, pois sentia “seu território” invadido. Hoje, num passe de mágica, todos são favoráveis à diversidade. O que mudou? O que teria fomentado na burguesia essa tomada de consciência coletiva, tão bem expressa nas palavras da “socióloga” Neca Setúbal?

Olhando para a realidade, vemos os ricos cada vez mais ricos – e a pobreza, em contrapartida, vem aumentando. Os filhos da alta burguesia já são, desde cedo, preparados para sair do ensino médio e ingressar em universidades do exterior; quando não conseguem, optam por ensino universitário de “elite”, em instituições como Insper ou Faap, destinadas a quem pode pagar muito. Estão, portanto, livres da convivência com os cotistas egressos dos “territórios de favela” e, mais importante, os departamentos de RH saberão reconhecer facilmente quem vem de onde, como sempre fizeram.

Os cotistas “periféricos”, por sua vez, vão encontrar uma universidade cada vez mais identitária. Onde grassava, em outros tempos, o fermento revolucionário que fazia dos estudantes uma força de vanguarda na luta social, hoje existe um ambiente cada vez mais amigável ao mercado e às suas políticas meritocráticas de inclusão.

O potencial revolucionário da juventude é canalizado para pautas como a defesa da “linguagem neutra e inclusiva” ou a revisão histórica, quando não para a queima de estátuas, para a reivindicação de mudança de nomes de ruas ou para pueris performances no saguão da Bolsa de Valores e coisas do gênero, cujo ponto de convergência é a anulação da percepção da luta de classes.

Encontramos, portanto, o que está por trás da defesa da “diversidade” sob a ótica identitária. Trata-se de uma camuflagem da luta de classes; não passa de tentativa de apagamento da esquerda revolucionária.

A trama foi muito bem urdida, pois, primeiro, impôs-se um novo recorte social (dado pelas identidades, como se um negro rico e um negro pobre ou um LGBT rico e um LGBT pobre, por exemplo, estivessem no mesmo barco) e, em seguida, cooptaram-se “lideranças” para o projeto, lideranças essas que estão sendo muito bem pagas pelo grande capital, por meio de suas fundações, ONGs e departamentos de diversidade e publicidade.

As causas do negro, da mulher, da população LGBTQIA+, do índio são todas legítimas. Não é a opressão que atinge esses grupos em particular o que aqui se discute, mas sim o modo de diagnosticar o problema e, principalmente, o modo de enfrentá-lo. O identitarismo, enquanto política, padece de peleguismo estrutural. Ou alguém imagina que, numa sociedade de uns poucos “privilegiados” e milhões de pobres e empobrecidos, não haja mais luta de classes?

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