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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Arte Brasileira

Jesus-Shiva, de Fernando Baril, e a liberdade de expressão

Fernando Baril redimensiona Jesus na cultura pop e no hinduísmo

jesus

Na segunda semana de setembro de 2017, o Brasil foi assolado por informações aberrantes quando, contrariamente à liberdade de expressão, anunciara-se o fechamento da exposição de arte “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira”; entre os muitos motivos para tanto estavam, costumeiramente, os injustificáveis argumentos religiosos. Há muito contra o que protestar; imperialismo, exploração do proletariado, assassinato de camponeses, extermínio de povos indígenas, racismo, homofobia, intolerância religiosa, ignorância por falta de instrução são apenas as perversões mais evidentes dessa trama infeliz conduzida pelo capitalismo. Em meio a tanto sobre o que escrever, escolhi me deter em apenas um tópico: ofender-se diante da imagem de Jesus retratada no quadro Jesus-Shiva, de Fernando Baril, um dos argumentos utilizados contra a exposição.

Na imagem do pintor, Jesus, personagem da mitologia cristã, na conhecida cena da crucificação surge cheio de pernas e braços, semelhantemente à representação dos deuses na mitologia hinduísta, tais quais Shiva, Vishnu e tantos outros. Em 2009, estive na Índia; em todo templo fui bem recebido por deuses com numerosos braços, quase sempre abertos. Em Goa, diante de uma mesa povoada por pequenas imagens, chamou-me atenção a miniatura de alguém repleto de braços e montado em um tigre; ao indagar ao senhor, quem cuidava deles, de qual deus se tratava, ele me respondeu não ser um deus, era a deusa Durga. Dias depois, em Nova Delhi adquiri uma imagem sua, um desenho em que a divindade aparece com mais braços ainda que na imagem de Goa; de volta ao Brasil, resolvi investigar de quem se tratava.

Segundo as lendas, Mahishasur espalhava horror e destruição nos céus, na terra e no mundo subterrâneo, dotado dos poderes de conquistador invencível do universo, dados a ele por Brahma. Descontentes com isso, os deuses procuram Brahma, quem, ao encontro de Vishnu e Shiva, busca resolver a questão e então, bastante furiosos, os deuses emanam de seus corpos raios de força e de luz; desse mar de luz, feito da combinação de suas energias, surge Durga, apta para derrotar Mahishasur. Durante a batalha, Mahishasur assume múltiplas formas, sendo em todas elas derrotado por Durga; por fim, após beber do vinho divino, Durga emana luz paralisando Mahishasur, dando-lhe oportunidade para decepar sua cabeça, com sua foice. Uma boa sugestão para os artistas plásticos contemporâneos seria, justamente, retratar Durga segurando a foice a o martelo, volumes de “O Capital”, um megafone, uma metralhadora, uma bandeira vermelha etc., pisando no pescoço do capitalismo depois de desmascarar os mesmos culpados sob suas múltiplas formas de expressão, tais quais o fascismo e a social-democracia burguesa; pelo menos para mim, estaria formada uma bela imagem do proletariado pisando na ditadura da burguesia.

Na iconografia indiana, o número de braços não está relacionado à monstruosidade dos deuses, não se trata de representar seres cheios de membros iguais a alguns monstros da mitologia grega, mas de mostrar, sintetizados na imagem, os principais atributos do deus. Durga, por isso mesmo, não é ser monstruoso, mas deusa dominando seus atributos.

Fazendo o inventário dos objetos mais recorrentes de Durga, é possível separar: a azagaia de Agni, o disco de Vishnu, a concha de Varuna, o tridente de Shiva, a clava de Kuber e o arco e flecha de Vayu. Agni representa o fogo do sacrifício ritual e a força criadora da vida, sua azagaia, portanto, remete a tudo isso; o disco de Vishnu simboliza a força ordenadora do deus; Varuna, entre seus muitos domínios, preside os oceanos, por isso a concha, na qual vibra o som Om, origem de tudo; o tridente de Shiva, com suas três pontas, significa os princípios metafísicos de dispersão, concentração e equilíbrio; Kuber rege os tesouros; Vayu é o senhor do ar e dos ventos. Para terminar o inventário, restam a flor de lótus, símbolo do renascimento espiritual, e o tigre, dado a Durga por Himvana, pai de Parvarti, uma das esposas de Shiva.

Ora, o Jesus-Shiva, de Fernando Baril, certamente deve ser pensado em função dessa chave de leitura; seus muitos braços não são para fazer dele monstro, mas para dar sentido a suas muitas atribuições religiosas, afinal, tanto Jesus quanto Shiva e Durga são símbolos religiosos. Em seus quatorze braços, Jesus, segundo Baril, segura, entre outros objetos, ramos da árvore da vida, em que germinam maçãs e bananas; um peixe e um cachorro quente; luvas de boxe. Em seus três pares de pés, além dos cravos, Jesus calça tênis e saltos altos; sob a cruz, vê-se com facilidade imagens da arte pop – a sopa Campbell e a Marilyn Monroe, ambas de Andy Warhol – e da vida moderna – computador, garrafa de Coca-Cola e um revólver –.

Valendo-se dos símbolos religiosos e das relações entre os valores cristãos e hindus, ao que tudo indica, ante de fazer galhofa com Jesus, ofendendo católicos e evangélicos, Fernando Baril, ao redimensionar o Cristo na cultura pop por meio do hinduísmo, termina por atualizar seu mito, dando a ele outros sentidos, tudo isso dentro do próprio universo religioso, antes expandindo do que invalidando o cristianismo.

Durga

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* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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