“Putin sempre ambicionou o poder. Zelensky era comediante. Putin sempre foi carrancudo, sem mostrar expressões. Zelensky sempre foi alegre querendo fazer os outros rirem.” Essas são palavras de um certo Guga Chacra, que, embora se apresente como “analista de política internacional” da Globonews, bem poderia ser roteirista de algum video game. O título do seu artigo (publicado n’O Globo), “O heroico comediante contra o covarde ex-agente da KGB”, em si ridículo, dá o tom da cobertura da imprensa amiga do imperialismo e inimiga da reflexão.
Em tempos de “cultura do cancelamento”, nada como eleger o vilão da vez, o pária, transformando todo o resto em mocinhos. Putin é o agressor e Zilensky é a vítima. Em outras palavras, os propósitos e os métodos imperialistas, que incluem tanto o controle da soberania e das riquezas dos outros países como sanções e embargos econômicos àqueles que não aceitam de bom grado o seu lugar de quintal das grandes potências, merecem o aplauso dos próprios oprimidos.
Acreditar piamente na propaganda mentirosa veiculada por uma imprensa entreguista, que só tem compromisso com os oligarcas nacionais (ou será que só existe “oligarca” na Rússia?), é abrir mão não só do direito de refletir sobre as coisas como também, a médio prazo, da capacidade de fazê-lo.
Até a semana passada, a discussão sobre o nazismo animava as redes sociais no Brasil, aparentemente saciadas após o “cancelamento” de um youtuber que, num exercício de raciocínio, admitiu como correta a legalização de um partido nazista no país. Se ele estivesse dialogando com Sócrates, na antiga Grécia, a sua fala poderia ser um passo numa reflexão, mas, como seus interlocutores eram a Batata Liberal e o Kim Katapiolho, a discussão não tinha mesmo como evoluir. Mesmo assim, era apenas uma ideia, não sendo o tal Monark um membro de organização nazista, como o são os milicianos apoiadores do mocinho Zelensky, o qual, como nos lembra o “Guga”, é judeu.
Parece que a realidade é mais complexa do que uma luta entre um herói e um vilão de desenho animado. Ou será que existe “nazista do bem”?
Para adicionar um pouco de combustível a essa discussão, vale lembrar a frase dita por David Sakvarelidze, ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia, em entrevista à BBC acerca do conflito: “É muito comovente para mim, porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes”. Por muito menos, o exército de canceladores faria um escândalo, mas esse aí, sendo ucraniano, deve ser “racista do bem”…
Fazendo coro com a sensibilidade racista do ucraniano, o apresentador inglês da Al Jazeera, Peter Dobbie, descreveu os que fogem da guerra como “pessoas prósperas de classe média” que “não são obviamente refugiados tentando fugir de áreas do Oriente Médio que ainda estão em grande estado de guerra; essas não são pessoas tentando fugir de áreas do norte da África, elas se parecem com qualquer família europeia com a qual você moraria ao lado” [sic].
Então a comoção provocada pelo sofrimento dos refugiados ucranianos é explicada pelos seus traços étnico-raciais (loiros de olhos azuis) e pela sua posição social (“pessoas prósperas de classe média”). O jornalista inglês Daniel Hannan vai na mesma linha, em artigo intitulado “A monstruosa invasão de Vladimir Putin é um ataque à própria civilização”, publicado no site The Telegraph: “Eles se parecem tanto conosco. É isso que o torna tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Seu povo assiste à Netflix e tem contas no Instagram, vota em eleições livres e lê jornais sem censura. A guerra não é mais algo que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um”.
O artigo desse jornalista faz inveja ao do Guga Chacra, os dois competindo no quesito propaganda explícita do imperialismo. A Ucrânia, segundo seu autor, merece a solidariedade da classe média (europeia/ branca) que assiste às bobagens da Netflix e acredita no que lê em jornais da burguesia.
O texto fala com a classe média e, particularmente com os identitários, entre os quais o autor se inclui ao dizer isto: “Confiantes na hegemonia do Ocidente, nos entregamos a discussões sobre políticas de identidade, fluidez de gênero e mudanças climáticas. Mesmo enquanto os T80 russos atravessavam as estepes cobertas de granizo da Ucrânia, nossas embaixadas ao redor do mundo estavam dando palestras a povos menos esclarecidos sobre a importância da COP26 e dos direitos LGBT+.
O mérito do artigo, se é que o tem, é o de ser explícito. Seu autor nem teme soar prepotente ao aceitar que “populações empobrecidas e remotas” possam morrer nas guerras patrocinadas pelo imperialismo mundo afora ou ao supor que os países do Ocidente hegemônico, por pura benevolência, levem as luzes do saber identitário a povos “menos esclarecidos”. Segundo ele, vemos a ordem social abalada por alguém “que persegue os gays”, mais uma na conta do vilão Putin.
Por aqui, a imprensa em geral e, particularmente, a Rede Globo se esmeram em mostrar imagens de prédio atingido por bomba ou de pessoas assustadas em fuga para outros países, bem como choradeiras de todo tipo, para ilustrar o discurso pró-Ucrânia (ou seja, pró-Otan/ EUA). É óbvio que conflito armado traz destruição e morte, mas isso vale para todos, não apenas para aqueles que essa imprensa não apoia. A estetização do noticiário, apresentado como se fosse um filme, conduz a opinião: ninguém acha certo ou bonito matar pessoas inocentes, logo o “agressor” ou o “invasor” é o vilão.
Falta discutir quem, de fato, é o responsável por essa situação. Segundo a imprensa ocidental, Putin é o monstro (será que “come criancinha”, como se falava dos comunistas?) que invadiu um território soberano. Falta explicar por que o fantoche Zelensky não negociou, por que admite ser usado pelos Estados Unidos e pela Otan, pondo seu território a serviço do imperialismo expansionista. Foram muitas as tentativas de negociação, mas o herói Zelensky, adotado pelo “Ocidente hegemônico”, se recusou e pediu à população que defendesse o país com coquetéis-molotov, transformando os cidadãos em potenciais alvos militares.
Para evitar que essa cobertura acrítica do conflito seja desmascarada, o YouTube tratou de bloquear os canais russos RT e Sputnik em sua plataforma em toda a Europa – e a Meta (Facebook) acaba de fazer o mesmo. A censura dos gigantes da tecnologia de comunicação mundial deve ser ruidosamente repudiada, mas, por aqui, ao que tudo indica, nem a esquerda, particularmente a ala “pompom-vegana”, quer discutir o conflito em bases racionais, para além do noticiário standard das grandes agências do Ocidente.
A sensibilidade identitário-cirandeira, acostumada a travar batalhas contra símbolos e contra a linguagem, compra barato o discurso pacifista e acaba defendendo o imperialismo por tabela. Só que, na vida real, os conflitos não se resolvem com a derrubada de uma estátua ou com blá-blá-blá na internet. É preciso tomar posição contra o imperialismo.
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