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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Demagogia identitária

Identitarismo é arma da direita

Está na hora de separar a política identitária das causas que ela diz defender

bruna brelaz fhc(1)

Dia desses, o Jornal Nacional, da Rede Globo, mostrou com grande entusiasmo uma reportagem sobre uma menina que queria jogar futebol na escola, a qual, por sua vez, só tinha times masculinos. A mãe da criança não teve dúvidas: foi à Justiça e obteve para a filha o direito de integrar o time dos meninos. Segundo a matéria, coroada por palavras de apoio de várias jogadoras profissionais, esse foi um grande tento na luta das mulheres.

Curiosamente, no dia seguinte, no mesmo jornal, aparece outra reportagem sobre outra menina que queria jogar futebol no time dos meninos e que ganhou esse direito na Justiça. Voltam as jogadoras profissionais com suas mensagens etc. Em nenhum dos dois casos representantes das escolas foram ouvidos, mas, aparentemente, o que estava em jogo não era uma proibição de que meninas jogassem futebol por mero machismo: em ambos, havia uma só menina interessada em praticar o esporte, o que era insuficiente para montar um time feminino. Por enquanto, os esportes não têm times mistos, o que talvez, em breve, também venha a ser assunto da Justiça.

Dois pontos nos chamam a atenção na veiculação dessas matérias no principal noticiário da Rede Globo: um deles é a insistência, mesmo forçada, numa suposta valorização da mulher; o outro é a normalização de que o Judiciário seja o árbitro de toda e qualquer questão entre as pessoas.

O clima de “valorização da mulher” na Rede Globo é peça de propaganda, que se junta à do TSE. Estão todos empenhados em eleger mulheres, que, afinal, constituem metade ou mais da população. Com esse mesmo argumento, o TSE também poderia promover a eleição de negros, mas, veja só a coincidência, a candidatura da terceira via é representada por uma mulher, só que branca (Simone Tebet, que apoiou o golpe para destituir outra mulher, Dilma Rousseff).

A população brasileira, mesmo sendo estruturalmente machista, como se descobriu em Harvard, elegeu duas vezes seguidas para a presidência da República uma mulher, a sucessora de Lula. Ora, o Partido dos Trabalhadores não escolheu Dilma por ser mulher, mas escolheu uma mulher entre muitos homens, mesmo sem campanha do TSE, da Rede Globo e dos identitários. Como sabemos – e não devemos esquecer –, Dilma foi deposta numa farsa político-jurídica, “com Supremo, com tudo”.

Querem que a população dê seu voto a “uma mulher” por ser mulher, sem considerar a que projeto essa figura está associada. Como a coisa toda é sutil, ninguém chama de “fake News” ou de “desinformação”, mas que nome novo mereceria a lavagem cerebral diuturna a que estamos submetidos?

Por outro lado, não demora o Judiciário estará resolvendo briga de crianças na hora do lanche. Se não houver lei que embase o julgamento, não faz mal. Os juízes transformam suas opiniões em lei, aplicam penas e sanções de acordo com seu sentimento e, assim, logo estaremos vivendo numa república que nem Kafka imaginou.

Para piorar a situação, o Judiciário anda muito preocupado com a própria imagem nas redes sociais. Foi, aliás, o jurista Lenio Streck, aquele do grupo Prerrogativas, quem, a propósito da sabida ilegalidade da PEC do estado de emergência (ou da compra de votos de Bolsonaro), justificou a inação do STF com base nisso. Ora, seria “mui amigo” quem cobrasse ao Supremo que impedisse a tramitação de uma PEC inconstitucional que vai permitir distribuição de dinheiro às vésperas da eleição. Como se vê, o STF está preocupado com a própria imagem nas redes sociais, e o Lenio Streck não quer perder os amigos do STF. Tudo normal.

Como o identitarismo, em suas versões mais fanáticas, tem atuação constante nas redes sociais, é fácil supor que esteja a cargo dessa ideologia definir a nova régua legal no país. Veja-se o caso da “injúria racial”, que, para alguns juízes, se equipara ao crime de racismo, embora haja diferentes tratamentos legais para um e outro caso.

Uma injúria é um dito percebido como ofensivo; uma injúria racial pressupõe que a ofensa abranja o conjunto da população ofendida, definida com base em critério racial. A nova moda dos identitários é criminalizar as palavras e expressões da língua portuguesa, como se elas, em si, carregassem séculos de preconceito. Como sabemos, as coisas não são tão simples assim.

A expressão popular “preto de alma branca”, por exemplo, constitui um interessante caso de ressignificação. De início, era usada por pessoas brancas que pretendiam fazer um elogio a uma pessoa negra; estava, portanto, embutido na expressão que ser negro, em si, era algo ruim, que, no entanto, era compensado por um bom caráter, identificado com a “alma branca”.  Ora, esse uso, em que se percebe uma visão de mundo racista (brancos superiores a negros), praticamente desapareceu.

A expressão passou a ser usada pelos próprios negros em relação àqueles negros que, em troca de vantagens pessoais, capitulam ante o sistema dominado pelos brancos. O que se vê, portanto, é uma inversão do sentido original, pois a mesma expressão passa a tratar a “alma branca” não como a “parte boa” do negro, mas justamente como a sua “parte ruim”. Nesse sentido, o “preto de alma branca” é uma espécie de traidor do movimento negro, pois age a serviço do opressor da população negra de conjunto. O conteúdo racista da ofensa, portanto, desapareceu.

Quem duvidar disso terá de acusar o cantor negro Martinho da Vila de ter sido racista ao usar a mesma expressão para caracterizar o presidente da Fundação Palmares, o também negro, porém bolsonarista, Sergio Camargo. Disse Martinho da Vila:

A Fundação Palmares era uma fundação criada para tratar dos assuntos da cultura negra, do negro no geral. Botaram aquele cara lá, o Camargo, bolsonarista radical. Ele é um preto de alma branca, como se diz. No duro, ele gostaria de ser branco. Ele acha que ele é branco. Ele se sente branco. E “tem que acabar com essas coisas todas de preto”.

Ao que tudo indica, o movimento identitário não se erguerá em defesa do negro Sergio Camargo contra o negro Martinho da Vila. Por outro lado, há alguns anos, o Judiciário condenou o jornalista de esquerda Paulo Henrique Amorim (o criador da sigla PIG, “Partido da Imprensa Golpista”) por ter proferido a referida expressão, também em sentido irônico, em relação ao jornalista negro Heraldo Pereira, da Rede Globo, a quem considerou subserviente à emissora. Vale lembrar que o jornalista William Waack, aquele que usou a expressão “coisa de preto”, foi defendido por todos os seus colegas da imprensa em inúmeros artigos e, embora demitido da Globo, imediatamente ganhou um programa na CNN Brasil. Até onde se sabe, não recebeu nenhuma condenação.

Como se vê, a caixa de Pandora, aberta pela criminalização da expressão, propicia, na prática, que se condene a pessoa não pelo ato praticado, mas por ser quem é. Dito isso, que podemos esperar de processo aberto pela presidente da UNE, Bruna Brelaz, contra o companheiro negro Juliano Lopes, do PCO? Ele usou em relação a ela a mesma expressão, “preto de alma branca”, que, como explicou Martinho da Vila, é “como se diz” quando um negro critica em outro a sua “amizade” com os brancos representantes do sistema.

Trata-se, por óbvio, de uma crítica política, não de uma “injúria racial”, mas a “líder” do PC do B entendeu que deveria pedir à Justiça que respondesse ao companheiro militante de esquerda. Diante da incapacidade de argumentar e de enfrentar o debate político, a “mulher negra” que está à frente da UNE pede punição a um companheiro de luta. Juliano não é seu companheiro de partido, mas está ao lado da população negra oprimida, aquela que não recebe os holofotes da imprensa, exceto quando é chamada a expor sua fragilidade social como atração nos telejornais a que a classe média assiste acriticamente na hora do jantar.

Está na hora de separar a política identitária das causas que ela diz defender. As causas são legítimas, mas, ainda que haja aspectos simbólicos ou psicológicos a considerar, a opressão tem sua raiz nas condições impostas pelo capitalismo, um sistema que funciona na base da exclusão. É contra esse sistema e seus beneficiários que a luta deve ser travada.

A política identitária camufla os interesses das classes dominantes, fazendo parecer que o opressor é qualquer pessoa branca, independentemente de sua classe social, e que a solução dos problemas passa por mudanças de comportamento ou mesmo de vocabulário. É tempo de usar a inteligência e identificar os inimigos reais.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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