Pertencer à esquerda pequeno-burguesa é mais ou menos como ser católico não praticante. Acredita-se vagamente em um ideário, mas tão vagamente que aquilo não interfere nas ações e decisões do indivíduo. Alguns, de tão liberais, são convidados para o banquete do próprio Satanás e não só se sentam ao seu lado como chamam todos os amigos para fazer o mesmo. Afinal, quando se trata de preservar o Estado Democrático de Direito e as sagradas instituições da República, até o anjo caído é um bom companheiro.
Subscrever a carta dos empresários e banqueiros e “exaltar a urna eletrônica” (tomando de empréstimo os termos da Folha de São Paulo) é parte desse comportamento frouxo. Mergulhar de cabeça nas pautas identitárias é outra parte – afinal, essas “lutas”, do modo como são propostas, exigem muito pouco de seus adeptos; em geral, basta substituir umas palavras por outras e apoiar causas nas redes sociais. Gasta-se energia com a análise do discurso, investiga-se o significado oculto de uma expressão popular, defendem-se teses às centenas nas universidades e, como práxis, passa-se a fazer campanha na internet pela higienização do vocabulário e contra o “discurso de ódio”, seja lá o que isso for.
Supõe-se que uma pessoa que se considere “de esquerda” pelo menos vá desconfiar dessa política, já que o identitarismo é, por excelência, a grande pauta “unificadora”, que passa ao largo da ”polarização”, como se fosse possível empreender luta política sem reconhecer a própria posição na luta de classes. Se a burguesia está empenhada na defesa do identitarismo, contra quem se dá essa “luta”?
Racismo, machismo e homofobia, segundo essa interpretação, são comportamentos individuais, que podem ser corrigidos mediante a adesão forçada aos ditames dessa política. O adjetivo “estrutural” é estrategicamente usado para estender à sociedade como um todo a responsabilidade pela opressão dos grupos. De quebra, os jovens universitários parecem achar sedutora a ideia de que somente agora se desvela o real motivo da opressão – e nesse sentido se veem como uma espécie de vanguarda que vai tornar a sociedade capitalista um lugar “saudável” para viver. Tamanha decadência fica evidente quando a mesma cantilena é entoada pela “socióloga” Neca Setúbal, dona do banco Itaú.
O identitarismo caminha ao lado do ambientalismo na busca desse “mundo melhor”, que não passa de um produto de marketing, bem vendido pelas agências de publicidade. Alguns ícones representativos das identidades, porém absolutamente enquadrados na estética burguesa, fazem parecer que o capitalismo deu certo: há, afinal, lugar para todos na festa da inclusão, como se pode comprovar ao ver na tela da TV um bebê Johnson negro e um comercial de margarina com pessoas negras bem-vestidas, usando belos penteados afro. Só que não.
Indígenas com diploma de doutorado chancelado nas universidades dos brancos arvoram-se em representantes dos “povos originários”, como gostam de dizer, mas pouco ou nada os aproxima daqueles que vêm morrendo na luta pela terra. Os indígenas com “postdoc”, em geral, são paparicados pela imprensa burguesa e pelas ONGs imperialistas, que os apresentam ao público como detentores de valores superiores, verdadeiros defensores da natureza. Desse ponto de vista ilusório, os índios continuariam vivendo exatamente como há 500 anos e nisso estaria sua “sabedoria ancestral”. É óbvio que esses garotos-propaganda das causas vivem muito bem e não abririam mão da luz elétrica nem de seus modernos smartphones – e nem mesmo vivem nas aldeias alvejadas pelos tiros dos latifundiários.
Embora a esquerda pequeno-burguesa se entusiasme com essa conversa (e com as bolsas de estudos nas universidades americanas e europeias), resta saber por que motivo os países ricos estariam tão interessados em proteger esses povos originários remanescentes de um processo civilizatório brutal. Ah, dirão, é por causa do aquecimento global. Somente os índios saberão cuidar da Amazônia, desde que sejam tutelados pelas ONGs e pelos pesquisadores europeus e que sejam devidamente alfabetizados em inglês (cursos do idioma vêm sendo ministrados gratuitamente para comunidades indígenas).
A propósito, o território da Amazônia, por suas características naturais e importância para o clima do planeta, não pode pertencer aos países onde está situado. Somente uma “governança internacional” saberia administrar esse importante recurso “em prol da humanidade”. Acreditará a esquerda pequeno-burguesa, que vem endossando esse discurso, em histórias da carochinha, coelho da Páscoa e Papai Noel? Ou seus intelectuais simplesmente estarão acomodados aos próprios interesses imediatos – cargos, bolsas de estudo, cursos no exterior etc.?
Enquanto isso, a presidenciável Simone Tebet, representante da chapa “feminista” da direita, está muito preocupada com as flechadas desferidas pelos índios de Mato Grosso do Sul na luta contra as armas de fogo de grosso calibre dos latifundiários e de seus jagunços. Anda incomodada com a violência dos “dois lados”, que, segundo discurso seu de 2015 no Congresso, é equiparável. Uma verdadeira pacifista, defensora dos grandes proprietários de terras.
Está faltando essa esquerda pequeno-burguesa sair da universidade e das redes sociais e procurar ver como vive um índio de verdade e quais são, de fato, os seus anseios. Talvez se surpreendam ao saber que os índios de hoje nem são a encarnação romântica do Peri, de José de Alencar, nem estão parados no tempo. Eles querem viver no século XXI, com tecnologia, casa, carro, trator, hospital – e, para a frustração da esquerda amiga da Neca Setúbal, não querem comer só batata e mandioca assada.