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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Cinema

David Cronenberg e o desejo de plástico

Cinema de David Cronenberg exige do público uma leitura política do atual momento histórico

Em um momento de uma entrevista a uma emissora de rádio canadense sobre seu mais recente filme, Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 2022), o diretor David Cronenberg mandou esta deixa monumental: “para mim, todos os filmes são políticos”.

Ele tenta explicar ao entrevistador que todo filme é político independente do seu gênero, ou seja, da categorização mercantil do enredo usada para nomear as listas dos serviços de streaming ou para classificar os filmes em cartaz nos cinemas.

O jovem entrevistador, infelizmente, não explora a questão que poderia nos render uma aula incrível de cinema. Este texto, no entanto, toma aquela fala como guia para  tentar oferecer uma leitura dos temas abordados em Crimes do Futuro.

Com uma sólida carreira com mais de 40 obras desde a década de 1970, David Cronenberg é um dos mais importantes cineastas contemporâneos. Com filmes como Videodrome (1983), A Mosca (1986), Crash (1986), Marcas da Violência (2005) e Cosmópolis (2012), apenas para citar alguns, seus trabalhos são críticos do capitalismo e contam histórias sobre personagens que se dilaceram ou que não conseguem se adaptar ao ambiente em enredos que beiram o surreal.

O surrealismo de Cronenberg tem suas origens no do cineasta espanhol Luiz Buñuel, de filmes como Um Cão Andaluz (1929) e O Anjo Exterminador (1962). Nessas obras, a forma da representação de uma realidade que beira o absurdo, o pesadelo, é o que é discutido. Essa é a natureza política dos filmes desses cineastas: suas imagens apenas devolvem para nós o absurdo da realidade à qual estamos imersos, como se revelassem seu avesso.

Na enredo de Crimes do Futuro, a médica Caprice (Léa Saydoux) e seu companheiro Saul Tenser (Viggo Mortensen) são artistas que fazem performances nas quais ela extrai, com a ajuda de uma máquina de dissecação, os órgãos extras produzidos pelo corpo em transformação de seu parceiro.  Aqui, Cronenberg retoma um tema que ele mesmo havia abordado em outro filme intitulado Crimes do Futuro, de 1970. 

As performances de Caprice e Tenser são assistidas com êxtase por uma plateia ávida por sensações. No cenário da cirurgia, lê-se as palavras: “o corpo é a realidade”, um artifício cênico que lembra os usados por Brecht na encenação teatral de suas peças. A representação da performance engloba a diegese do filme e, ao mesmo tempo, nos inclui como audiência também.

A escolha da arte performática é um toque de gênio do diretor canadense. A instalação singular é uma das expressões artísticas da pós-modernidade,  consumida nos circuitos de arte mundo afora e uma manifestação elitista, alienada e altamente rentável de comércio. 

Vale a pena conhecer algumas reflexões sobre este assunto. É possível encontrá-las em textos como Aesthetics of Singularity, do filósofo marxista estadunidense Fredric Jameson e também em alguns filmes de Agnès Varda, como a minissérie From Here to There, de 2011, e na incrível abertura de Animais Noturnos (Nocturnal Animals, Tom Ford, 2016).

A escolha de Cronenberg visa claramente abrir a discussão sobre forma da representação e o papel social da arte contemporânea no nosso atual momento histórico. Nesse sentido, a frase “a cirurgia é o novo sexo”, dita pelos personagens no filme, é a própria enunciação da subjetividade pós-moderna em todo o seu esplendor. Junta-se a ela várias frases sobre a “busca do significado” ou “busca de sentido” e temos o cardápio completo para uma crítica irônica aos discursos vazios e relativistas do pós-estruturalismo, pai filosófico destas manifestações.

Nos personagens de Cronenberg, o corpo é a matéria-prima desta arte/mercadoria na forma de um espetáculo de mutilação. Não muito diferente dos círculos sociais de pessoas que frequentam cirurgiões plásticos e galerias de arte com os mesmos objetivos. Não por acaso, o médico é sempre uma figura visceral nos filmes do cineasta, uma espécie de apóstolo da irracionalidade de base científica.

Na frase “o corpo é a realidade” figura também o foco de Cronenberg. É uma frase política que merece toda a atenção de quem assiste ao filme. Ela nos obriga a encarar, de um lado, o material, o concreto, ou seja, a materialidade representada pelo corpo. De outro, a realidade da política, que nos obriga a encarar a História com H maiúsculo. É o conceito de materialidade histórica que essa frase expressa e guia a nossa percepção do filme. A verdade é concreta, diz Trotski em Literatura e Revolução.

O personagem de Mortensen merece um comentário final. Vestido sempre de preto, circulando sempre à noite por ruelas de uma cidade sombria, ele lembra a figura de um vampiro sedento, o que adiciona mais um elemento à sua caracterização como artista nesta sociedade decadente. Isso também explica a presença de Kirsten Stewart, atriz que ficou famosa pela série Crepúsculo e que representa Timlin, uma personagem que se apaixona por este vampiro.

No entanto, não é sangue o que ele deseja. Ao final do filme – desculpe-me o spoiler – ele descobrirá que é um mutante e que seu alimento, como de outros que vão aparecendo, é o plástico. Neste universo distópico, os seres humanos se adaptaram ao capitalismo de tal forma que se tornaram uma espécie de vampiro que pode digerir plástico para viver. 

É uma representação que explora a contradição do que significa evolução e adaptação, uma espécie de darwinismo surrealista, fruto de uma realidade histórica que possibilita a artistas criativos e políticos, como Cronenberg, imaginá-la e transformá-la na arte que nós necessitamos neste momento.

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