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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Cinema brasileiro

Das tripas coração, de Ana Carolina

O sexo é tematizado no filme, mas não se trata somente de corpos transando, pois toda sexualidade aparece vinculada à educação burguesa e seus fracassos morais.

Das Tripas Coração

Eu nasci em 1964, quando era adolescente, por volta da década de 1980, frequentei bastante sessões de cinema nos tempos quando a cultura de massas, ditada pelo imperialismo cultural, ainda não havia se imposto de maneira tão totalitária como no século XXI. Naquela época, os países da Europa e da América Latina insistiam em projetos culturais próprios; Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Werner Fassbinder, Carlos Saura e Werner Herzog estavam em plena atividade criadora. Foi em uma dessas sessões em que assisti, em 1982, ao lançamento do filme brasileiro “Das tripas coração”, de Ana Carolina, um dos melhores trabalhos da diretora e do cinema nacional. Anos depois, ao assistir novamente ao filme para escrever esta coluna, foi emocionante rever atores brilhantes, entre eles Myriam Muniz, Dina Sfat, Xuxa Lopes, Nair Bello, Cristiane Torloni, Celia Helena, Maria Padilha, Cristina Pereira, Othon Bastos, Antônio Fagundes, Ney Latorraca, Álvaro Freire e Eduardo Tornaghi, estando diante de uma dramaturgia brasileira de primeira linha.

Hoje, anos depois, assistir a críticos especialistas em streamings classificando das “Das tripas coração” entre filmes pornográficos, depreciando o cinema nacional, é lamentável. Sim, o sexo é tematizado no filme, mas não se trata somente de corpos transando, pois toda sexualidade aparece vinculada à educação burguesa e seus fracassos morais. Ver apenas sexo em “Das tripas coração” revela pelo menos duas mazelas: (1) incompreensão do filme; (2) puritanismo imperialista projetado em nossa cultura com vistas a animalizar nosso comportamento sexual.

No filme, um superintendente tem a missão de fechar um colégio de moças, cuja contabilidade, apresentando graves problemas, levou à inviabilidade da instituição. Na sala de espera, enquanto aguarda pelas professoras e diretoras do lugar, ele pega no sono, sonha e seu sonho é o desenvolvimento da trama. A partir de então, o filme toma forma de delírio, resumi-lo apresenta as mesmas dificuldades de resumir músicas instrumentais, para conhecê-las, deve-se ouvi-las, dando-se o mesmo com “Das tripas coração”. Em linhas bastante gerais, no filme são tematizados os excessos e carências sexuais das personagens, das faxineiras às diretoras, sem se esquecer das professoras e alunas, incluindo professores – em seu sonho, o superintendente é um dos professores –, o médico, o zelador e os religiosos, pois trata-se de um colégio católico.

Na história do trabalho feminino, boa parte dos serviços domésticos das mulheres foram assumidos pela indústria, tais quais a fabricação de velas e a tecelagem, tornando sua contribuição na economia cada vez mais pífia e causando, pelo menos, duas mazelas: (1) a desvalorização da mão de obra da mulher operária; (2) a ociosidade da mulher burguesa. Ora, no filme expressam-se ambas as mazelas: (1) as faxineiras são exploradas; (2) as alunas, filhas da burguesia, são educadas para serem futuras esposas desocupadas, fazendo com que, nesse sistema educacional, professoras e diretoras sejam tão inúteis quanto as estudantes.

Em outro filme de outros tempos, 1916, e outros lugares, EUA, D. W. Griffith, em um dos quatro episódios de “Intolerância”, mostra industriais interferindo no lazer dos operários quando promovem leis fechando bares e proibindo bebidas alcoólicas para, justamente, evitar desperdícios da energia destinada exclusivamente para a força de trabalho explorada nas fábricas. Entre tais diversões, evidentemente, estão os prazeres sexuais, os quais também devem ser reprimidos por meio de discursos puritanos. Em “Das tripas coração”, tanto a energia roubada das faxineiras quanto os excessos de energia mal aproveitados das professoras e alunas são desviados para o sexo, gerando não as ditas perversões sexuais, mas a perversão da própria energia sexual em atos escatológicos.

Apenas para citar um exemplo disso, nas cenas finais, surge um professor fazendo pós-graduação na USP, citando as teorias de Fernando Henrique Cardoso, então sociólogo… esse professor termina se engraçando com uma faxineira e, em meio às tentativas frustradas de fazerem sexo, ele a xinga de doméstica, mucama etc. buscando a excitação que não se resolve para, por fim, perguntar para outra faxineira, quem observara a cena, se ela já leu Engels.

Infelizmente, quando escutei uma crítica do filme no Youtube, o comentarista teve a infelicidade, para não dizer a estupidez, de classificar o filme de Ana Carolina entre filmes pornográficos da época, colocando-o entre “O homem de Itu”, uma comédia sobre um bobalhão de pinto grande, afinal, segundo piadas daqueles tempos, tudo em Itu, cidade do interior do Estado de São Paulo, era descomunalmente grande. Esse youtuber, segundo ele mesmo, é um especialista em cinema; seus vídeos são análises superficiais do lixo imperialista espalhado na Netflix… seus critérios visavam unicamente desprezar o cinema do próprio país, baseando-se no mesmo puritanismo utilizado para reprimir as personagens do filme de Ana Carolina.

O filme “Das tripas coração” está por completo no Youtube, apesar da imagem levemente embaçada em algumas cenas, vale a pena conferir esta obra de Ana Carolina e do cinema brasileiro. Por fim, desejo aos companheiros boa sessão de cinema.

 

* As opiniões dos articulistas não expressam, necessariamente, as deste Diário.

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