Faz algum tempo, sempre que me encontrava com amigos poetas e editores alternativos, alguém dizia: você precisa ler Hélio Neri! Fui buscar e precisava mesmo. No início de 2021, o Hélio entrou em contato comigo e me deu a oportunidade de escrever a orelha de Vida útil, seu novo livro de poesias, lançado logo agora, no segundo semestre, pela Corsário-Satã. Mas como seria ir além daquela necessidade e arriscar, em poucas palavras, uma forma de ler sua poesia, já que ler, no caso, quer dizer interpretar? Sua poesia é hermética, cheia de versos obscuros, carregados de figuras de linguagem e efeitos sonoros? Longe disso, sua poesia não é difícil de ler e é, justamente aí, que ela ganha sua dificuldade.
Quando ouvi pela primeira vez a canção “Dívidas”, de Paulinho da Viola, do álbum Memórias cantando, de 1976, senti algo parecido quando li, quase meio século depois, a poesia do Hélio. Na canção são narradas as desventuras de algumas pessoas, moradoras do morro – a canção não especifica qual deles, o que lhes dá universalidade entre os explorados pela burguesia em quaisquer partes do mundo –, às voltas com a cobrança de dívidas, contraídas nas modestas mercearias da comunidade. No último, verso o poeta diz “era menino, mas me lembro muito bem”. Na época, tinha eu quatorze anos e me lembro do quanto aquela crônica era plena de sentido, embora eu não soubesse compreendê-la com facilidade. Agora, com mais de cinquenta anos, sinto o mesmo lendo os versos do Hélio: como ler suas crônicas? De que modo, nelas, a poesia surge?
Não se pode responder a isso de modo ligeiro, mas posso arriscar, pelo menos, seguir duas trilhas abertas para mim pela poesia do Hélio, que gostaria de partilhar. Tudo cabe na literatura… os poetas podem insistir na metalinguagem, mostrando a poesia dos próprios códigos em que ela se manifesta, enquanto outros preferem a fruição das palavras, construindo seus temas por meio da declamação quase musical dos versos, muitas vezes improvisados… há os poetas das formas fixas, compondo sonetos, haikai, madrigais, entre tantas delas, e há os poetas que fazem versos conversando conosco. O Hélio é assim… ler seus poemas é escutar sua voz aguda, tranquila, amistosa, firme… voz de companheiro de luta, digno de confiança. Penso que tal impressão de firmeza vem da sinceridade com que o Hélio fala do mundo e da realidade miserável descrita por ele, facilmente vulgarizada na boca dos demagogos. Ele não se exalta, não descamba a vociferar contra o sistema… ele descreve a mazela humana gerada pelo capitalismo sem subterfúgios; sua denúncia, antes de comover, traz a consciência política expondo os motivos das revoluções. Esta é a primeira trilha: seu tom de voz, sua entonação poética tão bem articulada com seu social realismo.
O outro caminho é traçado por sua crônica. Tematizar o mundo não é simplesmente falar das coisas cotidianas; trata-se de fazer recortes dessa realidade, construindo-a por meio das escolhas realizadas. Alimentados por sua voz ao mesmo tempo que a justificam, seus recortes incidem nas mazelas sociais mais contundentes não por serem raras e ocasionais, como são as exceções, mas por serem regra frequente.
Por fim, o que faz da arte do Hélio poesia além da denúncia social, da entonação de poeta e da sinceridade? Não consigo definir arte – creio que ninguém consegue – para demonstrar objetivamente minhas impressões; consigo sugerir, contudo, meus modos de ver a beleza de uma poesia cujo um dos temas principais é a desumanização. Essa beleza, penso eu, vem, paradoxalmente, da humanização do poeta e, por decorrência, de todos aqueles que, tão imersos na peste emocional do capitalismo quanto ele, dela se curam para combatê-la.
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