Piso na merda após passar por uma banca de jornal. Vejo que se trata de merda humana, a mais abjeta de todas as merdas. Ao seu lado há mijo. Descansam junto deles um cobertor e uma sacola jogados no chão.
Continuo a andar, ainda pensativo. Antes de entrar no metrô, um homem maltrapilho de meia idade, descalço e sem máscara, está caído no chão esbravejando palavras incompreensíveis.
Já dentro do trem, sento e ouço, vindo ao meu encontro, uma pessoa falando de modo cada vez mais desesperado. O ser, humilhado, conta sua história enquanto segura o corrimão. Mora com sua esposa e três filhos pequenos. Perdeu o emprego e não consegue mais bicos em feiras e comércios por causa do lockdown. Nunca lhe chegou nenhum auxílio emergencial. O que chegou foi o proprietário do imóvel onde vive lhe cobrando 11 meses de aluguel atrasado e sentenciando: dentro de um mês, terá de despejá-lo. O homem diz já não ter mais dinheiro para pagar luz e água, além do aluguel vencido pela 11ª vez.
Algumas almas caridosas lhe dão moedas enquanto passa por mim, já sem nada na carteira. Costumo levar comigo algumas moedas e notas de baixo valor justamente para esse tipo de ocasião. Mas essas ocasiões se tornaram tão corriqueiras que a esmola acaba em poucas paradas de metrô.
Lembro que antes de 2016 não era assim. Claro, havia muitos mendigos nas ruas, como sempre houve neste país de esfarrapados. Mas com o golpe a mendicância, bem como o comércio irregular, explodiram e adentraram até mesmo as mais vigiadas linhas de metrô.
Sou obrigado a fazer uma autocrítica. No dia seguinte à aprovação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, em 18 de abril de 2016, publiquei uma crônica no Diário Liberdade sobre crianças de rua vestidas com a camisa da seleção brasileira e brincando com um balão de um pato amarelo no Paraíso, ao final da Avenida Paulista. Concluí, à época, que para elas (ao contrário da maioria da população) não mudaria nada saindo o PT e entrando os golpistas.
Ledo engano. Àquela época já era visível o aumento de moradores de rua e mendigos. Mas com o golpe essa situação degradante se transformou em um tenebroso cenário surrealista, daqueles que aterrorizam a imaginação. O pior de tudo é que é real. Aquela meia dúzia de crianças se multiplicou, algumas cresceram e, ainda adolescentes, se reproduziram, reproduzindo também a miséria e a indigência, única herança que podem transferir a seus filhos.
No mesmo vagão, após sair o inquilino prestes a ser despejado, entra uma outra criatura, de voz estranha. Quando levanto os olhos, até então fixados no meu jornal, vejo que aquela voz saía de uma caixinha de som que acompanhava a cadeira de rodas na qual a criatura, imóvel, se prendia. Empurrando a cadeira, uma outra pessoa, pois aquela que falava através da caixa de som não conseguia se deslocar sozinha com a cadeira. Estavam, como o primeiro pedinte, implorando por alguma ajuda.
Desci em uma estação no centro de São Paulo. Tive a impressão de que todos os moradores de rua, desempregados e mendigos do mundo haviam se reunido na Praça da Sé. A degradação pesava o ambiente. Caminhando até a Praça da República, onde uma nova leva de dezenas de lúmpens me esperava, fiquei pensando qual seria a reação de Jack London ao se deparar com esse tropical povo do abismo.
Indignado com a situação, encontrei os companheiros do PCO que iniciavam mais um ato de rua contra todas essas mazelas.