No último dia de agosto, os dois maiores monopólios do mundo da tecnologia levaram um raro golpe contra seus interesses. Segundo reportagem do The Wall Street Journal o parlamento sul-coreano aprovou uma lei que bane a política de pagamentos imposta tanto pela App Store como pela Play Store, lojas digitais de aplicativos controladas respectivamente pela Apple e pelo Google. Para explicar o que isso significa, permitam-me uma breve digressão.
As duas gigantes levam 30% de comissão sobre todas as transações mediadas por suas plataformas incluindo venda de aplicativos (caso sejam pagos), venda de conteúdo dentro dos aplicativos e assinaturas. Há formas de contornar a prática abusiva. Empresas como Uber, Amazon, iFood, Airbnb e outras, que oferecem produtos e serviços alheios ao funcionamento do aplicativo estão isentas do imposto digital.
Outros monopólios, como Netflix e Spotify não vendem a assinatura de seus serviços por seus aplicativos de celular ou tablet. O usuário deve assiná-los pelo seu browser em seu dispositivo móvel ou em seu computador pessoal. Nesse caso, essa inconveniência pode ser uma barreira à compra do usuário, isto é, se o seu produto não for um dos grandes monopólios de streaming com o último filme da Marvel e a última música do Drake, provavelmente quem iria assiná-lo irá pensar duas vezes e, em muitos casos, desistir da compra.
A situação é ainda pior no caso mais simples: aplicações pagas. Para comprar um aplicativo pela Play Store ou pela App Store, o imposto é retido “direto na fonte”. Não há como vender sem pagar uma taxa ao senhor feudal que garante a lei e a ordem no espaço digital que abriga seu humilde aplicativo. No caso do Google há um fator atenuante: é possível instalar aplicativos num celular Android por fora da Play Store. Haverá algumas inconveniências como o seu sistema constantemente avisando que o aplicativo forasteiro pode ser um vírus, mas é possível. Já no caso da Apple, nada pode ser instalado sem passar pela App Store, a não ser que o dono do iPhone ou iPad tenha um certo conhecimento técnico e faça o jailbreak de seu dispositivo.
Recentemente, a “bondosa” Apple recuou em uma série de aspectos da sua política de pagamentos. Após processo no Japão, a empresa passou a autorizar o envio de emails aos usuários com instruções para formas de pagamento alternativa. No decorrer do longo processo iniciado pela Epic Games – produtora de um dos jogos de videogame mais jogados no mundo, Fortnite -, que questiona o monopólio sobre vendas digitais em iPhones e iPads, a empresa comandada por Tim Cook passou a cobrar “apenas” 15% de desenvolvedores de aplicações que faturem até US$ 1 milhão por ano. Não atende o caso da Epic Games, que ainda continua na justiça norte-americana contra a Apple, mas serve como demagogia.
A nova lei sul-coreana, porém, deveria eliminar completamente o monopólio das lojas digitais forçando os desenvolvedores dos sistemas operacionais a fornecerem meios de pagamentos alternativos. Digo “deveria” porque nunca se sabe do que são capazes os advogados de grandes monopólios. Os representantes do Google e da Apple já se apoiaram em argumentos como “custo de manutenção da plataforma” e “garantia de segurança dos usuários” para justificar suas práticas monopolistas.
Esse episódio, na minha opinião, deixa claro como uma tecnologia como a internet tem suas capacidades completamente tolhidas e distorcidas pela fase imperialista do capitalismo em que nos encontramos. Isso não é uma defesa de monopólios igualmente nefastos como o Netflix, o Spotify e a própria Epic Games. Mas apenas ilustra uma disputa entre os senhores feudais modernos que lutam para cercar suas zonas de influência digitais.
Todos eles cobram impostos. O Uber, o iFood e similares extraem 20% de todas as corridas do trabalhador que já tem que arcar com a aumento no preço da gasolina. O Spotify extrai até a última gota de suor dos músicos, principalmente os menores, que necessitam de centenas de milhares de visualizações de suas músicas para ganhar alguns trocados. O Steam, monopólio de venda de jogos de computador, cobra tarifas abusivas de desenvolvedores e entrega um serviço arcaico, péssimo do ponto de vista de quem está tentando vender na plataforma (digo isso por experiência própria!).
Disputas legais à respeito dessas práticas mostram como o Estado capitalista da época imperialista serve apenas como um mediador entre os interesses dos monopólios. Se um prejudica muito o outro, o Estado intervém, mas, no final das contas, sempre há um novo vencedor, um novo monopólio para governar todos. No sistema capitalista, os bilhões de consumidores e trabalhadores autônomos que circulam nas plataformas provavelmente estarão sempre sujeitos a tarifas e regras impostas pelos senhores dos espaços digitais e pouco poderão fazer à respeito.
Desse ponto de vista, a diferença entre o monopólio e o Estado é quase nula. As empresas impõem as tarifas que bem entenderem, uma vez que estejam de acordo entre si, e até mesmo definem regras sobre o que pode e não pode ser dito dentro de seus espaços, como é o caso de redes sociais como o YouTube, o Facebook e o Twitter. Mas esse aspecto da Magna Carta dos lordes digitais fica como tema para outra coluna.