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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Cinema brasileiro

Carlota Joaquina e a independência do cinema brasileiro

A soberania nacional se manifesta em diferentes atividades. O cinema com certeza é uma delas.

Para escrever sobre cinema neste cenário de celebração dos 200 anos da Independência do Brasil, escolhemos Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil, uma produção de 1994, dirigida por Carla Camurati, que retrata, no estilo da farsa, a vinda da família real portuguesa ao Brasil.

O filme é uma leve e satírica representação histórica, a partir da figura da rainha Carlota Joaquina (Marieta Severo) que, aos 10 anos de idade, casa-se com D. João VI, interpretado por Marco Nanini. A escolha deste filme visa menos uma análise sobre o fato histórico em si, e mais uma reflexão sobre a representação da história do Brasil pelos nossos próprios cineastas. 

Na abertura, temos dois atores ingleses interpretando, ao que parece, pai e filha. Em um cenário perto do mar, ele conta à garota a história de uma princesa do Brasil. Há algo de narrativa lúdica e fantástica em seu conto. A atriz Ludmila Dayer interpreta a menina, chamada Yolanda, e, ao mesmo tempo, Carlota aos 10 anos de idade. A sugestão é a de que o que vemos é a própria imaginação da garota ao ouvir a história relatada pelo pai.

A escolha de personagens ingleses para narrar o conto da rainha portuguesa, nascida na Espanha, já reflete o caráter satírico da abordagem, uma escolha política. Outros filmes com o mesmo tema normalmente apagam as disputas comerciais entre as nações europeias no período, em especial o impacto do imperialismo inglês, e elevam os personagens da família real. 

Outro ponto a considerar com esta escolha formal é justamente a representação do fato em si. A existência de um narrador em primeira pessoa tira da encenação a ideia de realismo ou de veracidade sobre o que está sendo contado. A cineasta não tem esta intenção e deixa isso claro no diálogo que encerra o filme.

A questão imperialista se impõe no idioma inglês que é falado pelos personagens narradores ao longo de todo o filme. De um lado, o narrador inglês faz a história ter algo de exótico. Ao colocar o conto como uma fala dos ingleses, Camurati, de certa forma, justifica esta leitura da história do Brasil como farsa, ou seja, associando-a ao invasor imperialista. De outro, o idioma inglês no filme é uma referência à submissão do nosso cinema ao produto importado dos grandes centros produtores.

Soma-se a isto os cenários e os figurinos barrocos e as atuações memoráveis de Severo e Nanini, e temos uma obra que diverte e até informa pelo inusitado da vida dos biografados, cujas ações afetaram o País. Carlota Joaquina e D. João VI são estereotipados. Ele é retratado como covarde, glutão e preguiçoso. Ela é atrevida, autoritária e safada, algo impensável no moralismo identitário de hoje. Em uma cena, fala de sapatos como se fosse Maria Antonieta. No filme, ele funda o Banco do Brasil por mero acaso.

O foco da cineasta é esculachar as cortes portuguesa e espanhola e as figuras da nobreza. É raro ver um filme brasileiro que faz uma representação de personagens históricos europeus. Na verdade, é muito raro termos filmes brasileiros que olham para fora do país e encenam estrangeiros em seus próprios países, como é o caso deste filme. Normalmente, nós apenas consumimos o que vem de fora.

Ao chegarem ao Rio de Janeiro, apropriam-se das melhores casas, desalojando os moradores, que precisam dar lugar a uma corte com mais de 15 mil pessoas, e que entregam suas riquezas como se fosse um tipo de privilégio. A cena é uma metáfora sobre o papel do estrangeiro em solo brasileiro desde o início da colonização e do pensamento da classe dominante brasileira. Na sua ironia, o filme tem um tom nacionalista que é, ao mesmo tempo, de resignação. D. Pedro I é poupado. Em uma cena, ele aparece ao lado do povo na luta pela libertação de Portugal.

Nesse ponto, o filme dialoga com o momento histórico de lançamento, em uma época em que o Brasil via a si mesmo como uma promessa de futuro que nunca se cumpria. O filme de Carla Camurati entrou para a história do cinema brasileiro por ter sido o primeiro, depois de um longo hiato, a levar os brasileiros novamente ao cinema para ver uma película nacional. O momento ficou conhecido como a retomada do cinema brasileiro e o sucesso de uma nova forma de financiamento, formulada pelo governo de Fernando Collor de Mello, e que deu origem à famosa Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, em substituição à Embrafilme, estatal que foi extinta nesse governo.

Trata-se de uma forma de financiamento na qual as empresas renunciam a até 3% do imposto de renda devido para patrocinar filmes e outras formas de manifestações culturais. Não deixa de ser uma questionável privatização, objetivo daquele governo em todas as suas ações.

Ao longo dos anos, no entanto, cineastas e produtores adaptaram-se à situação, principalmente aqueles com mais estrutura comercial. Muitos filmes foram feitos e a indústria audiovisual do Brasil ganhou algum fôlego, apesar das dificuldades relacionadas a esta forma de financiamento. Mas, como aconteceu em outros momentos, bastou um governo como o atual para o castelo se desfazer rapidamente de novo.

O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes afirmava que qualquer filme brasileiro, ruim ou não, é muito melhor do que qualquer filme estrangeiro. Em sua frase, ele atenta para a importância de termos histórias contadas a partir do nosso próprio ponto de vista e de nos vermos nas salas de cinema. Nessa reflexão sobre a nossa independência, precisamos lembrar sempre que nossa soberania se manifesta nos mais diferentes lugares e nas mais diferentes atividades. O cinema, com certeza, é uma delas.

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* As opiniões dos colunistas não expressam, necessariamente, as deste Diário.

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