O relatório da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) – 2018 (a mais recente) traz alguns dados interessantes, que, no entanto, chegam ao leitor mediados (ou enviesados) pelo frenesi identitário.
No texto, comemora-se o fato de estar o perfil dos estudantes de graduação das universidades federais brasileiras, “a cada edição, mais próximo do perfil sociodemográfico do Brasil”, ou seja, “as universidades expressam a diversidade cultural, racial e de sexo da população brasileira, assim como a desigualdade de renda”.
Segundo o relatório, o número de cotistas, em 2018, já atingia 48,3% dos estudantes das universidades federais e o número de mulheres representava 54,6% do total. O número de cotistas, aparentemente, cruza dados de estudantes negros, egressos de escola pública e de baixa renda (renda familiar per capita de um salário mínimo e meio).
O eufemismo “desigualdade de renda”, que quer dizer “baixa renda”, já vem sendo marotamente arrolado entre os atributos de “diversidade” e, de certa forma, comemora-se como um grande sucesso das políticas de cotas a ascensão de pobres à universidade: “A renda mensal familiar nominal média per capita no país, publicada pelo IBGE em 2018, era de R$1.373,00, enquanto a renda mensal familiar nominal média per capita dos estudantes da graduação é de R$1.328,00”. Finalmente, conclui o relatório que “as universidades refletem o Brasil”.
Tudo isso pode parecer boa notícia, pois as cotas estariam promovendo um deslocamento social dos pobres, que, há não muito tempo, mal podiam sonhar com um diploma universitário. Até aí, tudo bem, mas, sem querer jogar água na fervura, como sabemos das lições de física, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as universidades não ampliaram seu número de vagas. Em outras palavras, se os pobres adentraram as universidades federais, os ricos foram para outro lugar – ao que tudo indica, “melhor”.
Quem tiver um pouco de memória lembrará que, no início, a burguesia se insurgiu bravamente contra as políticas de cotas, alegando que seriam injustas, pois, sendo uma reserva de vagas para uns, reduziriam o número de vagas para outros. Com o tempo, a grita foi diminuindo e, de alguns anos para cá, a situação se acomodou. Seria ingenuidade, porém, achar que os ricos tomaram consciência de que é bom dividir os bancos escolares com os pobres nas universidades públicas.
Hoje a burguesia, ela própria empenhada nas campanhas identitárias, como se vê nas pesquisas empreendidas por suas organizações e na divulgação que a sua imprensa dá ao tema, matricula seus filhos em universidades estrangeiras. Têm aumentado o número de escolas bilíngues desde a infância, que preparam desde cedo os bem-nascidos para estudar fora do Brasil.
O destino dos jovens da burguesia é estudar fora e voltar com seus diplomas estrangeiros, que serão o diferencial para ocupar os melhores postos nas empresas daqui e tudo o que se segue. Dessa forma, o diploma a que têm acesso os cotistas vai perdendo o valor. O de graduação já vale muito pouco, tanto que os identitários agora querem cotas na pós-graduação. O próximo passo seria pedirem cotas em Harvard.
O que aqui se pretende mostrar é que as esmolas da burguesia não são conquistas. O que a burguesia dá com uma das mãos ela mesma tira com a outra. As políticas de “diversidade” abraçadas pelo banco Itaú, pelos grandes empresários e pela imprensa hegemônica não passam de camuflagem. É próprio do sistema capitalista excluir. Enquanto a burguesia der as cartas, nada vai mudar efetivamente, ainda que os beneficiários de cotas tenham a impressão de que mudou alguma coisa.
Essa impressão vem, naturalmente, da insistência no discurso meramente racial, de negros versus brancos, que substituiu a percepção da luta de classes pela percepção do “racismo estrutural”. O dado encoberto nas relações sociais, responsável pela desigualdade e pela opressão, deixaria de ser a luta de classes para ser um aspecto da psicologia social, disperso em toda a sociedade, embutido nas palavras, algo que não seria da responsabilidade de ninguém em particular, mas, sim, de todos, sendo, portanto “estrutural”.
Ora, enquanto isentam a burguesia de seu papel opressor, as políticas identitárias oferecem às estatísticas dados de “avanço” sobre os “brancos”, deixando de dizer, é claro, que apenas brancos pobres ou mesmo os de classe média, que não tenham condições de estudar fora ou de pagar uma das faculdades caras que são reduto dos filhos da burguesia (FAAP, FGV, Insper etc.), é que pagarão a conta, como se o problema fosse resolvido na base do “revanchismo histórico”. A burguesia nunca paga a conta, exceto quando o povo se levanta e vira a mesa.