No universo dos quadrinhos, alguns artistas se arriscam na adaptação de contos ou romances para a linguagem da HQ. Nesse tópico – um tópico bastante próximo dos quadrinhos comerciais –, cabe indagar qual seria a utilidade pedagógica das adaptações dos clássicos da literatura, sejam eles nacionais ou estrangeiros, para o ensino dessa mesma literatura. A esse respeito, há, pelo menos, duas posturas levadas adiante: (1) as adaptações são o resultado de demandas do artista, lançado ao desafio de traduzir a linguagem verbal da literatura para a linguagem verbo-visual dos quadrinhos, preservando sua liberdade criativa, inclusive a de interferir nas narrativas de origem; (2) as adaptações são malandragens endossadas pelas editoras, buscando, em supostas facilitações pedagógicas da literatura via HQs, apenas vender inescrupulosamente quadrinhos de má qualidade. No último caso, a liberdade criativa é nula; a adaptação deve ser “realista” e a mais próxima possível da narrativa de origem.
Vulgarmente, a prosa literária é identificada apenas a seus significados. Segundo quem acredita nisso, a manifestação da prosa nas línguas humanas teria importância menor ou, até mesmo, nenhuma importância, pois toda prosa, desse ponto de vista, seria limitada às tramas inventadas. Ora, isso é estupidez! O valor da literatura está, justamente, na utilização das línguas enquanto arte, seja na poesia, seja na prosa. Machado de Assis ou Guimarães Rosa não se resumem às tramas concebidas em seus contos e romances; o que faz deles grandes nomes da literatura é o trabalho com a língua portuguesa. Isso é óbvio, menos para os editores comerciantes e para alunos e professores preguiçosos, que não gostam de ler.
Há excelentes adaptações da literatura para os quadrinhos: (1) Bill Sienkiewicz adaptou, com maestria, o clássico da literatura Moby Dick, de Herman Melville; (2) Guido Crepax transformou em quadrinhos os romances Drácula, de Bram Stoker, O Médico e o Monstro, de Robert L. Stevenson, Justine – os Infortúnios da Virtude, de Sade, A Vênus das Peles, de Sacher-Masoch, História de O, de Pauline Reage, e vários contos de Edgar Allan Poe; (3) Marcatti fez uma adaptação excelente da Relíquia, de Eça de Queiroz, e está adaptando Os Miseráveis, de Victor Hugo.
Em todas essas adaptações, os artistas interferiram nas tramas, valendo-se dos textos originais como pontos de partida para a criação artística. Em termos pedagógicos, aqueles exemplos servem para discutir os desdobramentos da arte e da criatividade e não para diluir, desonestamente, o ensino das línguas e de suas literaturas. O que as editoras comerciais promovem não é o diálogo semiótico entre as linguagens literárias e a linguagem das histórias em quadrinhos; seus objetivos resumem-se a facilitar a vida dos maus alunos. Com tais procedimentos, não é ensinada literatura e nem história em quadrinhos; ler HQs, para esses preguiçosos, seria supostamente mais fácil do que ler livros… trata-se de se eximir de ensinar e de aprender.