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Rafael Dantas

Membro da Direção Nacional do PCO e diretor de redação do Jornal Causa Operária.

Ideologia pequeno-burguesa

Apontamentos sobre populismo e “identitarismo”

Continuação do artigo “O que o ‘identitarismo’ brasileiro e o populismo russo têm em comum?”, uma comparação entre as concepções do que é progresso histórico

Colocando-se aquém do pensamento iluminista burguês, de caráter revolucionário no século XVIII, na época da grande revolução francesa, do ápice do desenvolvimento da burguesia como classe e do capitalismo como sistema que permitiu um enorme progresso social, os populistas eram criticados por Lênin pela sua filosofia reacionária no sentido pleno do termo, na tentativa vã de fazer a roda da história girar para trás.

“O iluminista confia no atual desenvolvimento social, pois não percebe as contradições que lhe são inerentes. O populista teme este desenvolvimento por ter notado já estas contradições. O ‘discípulo’ [i.e., o marxista] confia no atual desenvolvimento social, pois vê a garantia de um futuro melhor unicamente no pleno desenvolvimento destas contradições. A primeira e a última correntes tendem por isso a apoiar, acelerar e facilitar o desenvolvimento pelo caminho atual, a eliminar todos os obstáculos que entravam e retardam este desenvolvimento. O populismo, pelo contrário, tende a deter e paralisar este desenvolvimento, teme a destruição de certos obstáculos que se opõem ao desenvolvimento do capitalismo. A primeira e a última correntes caracterizam-se pelo que se pode chamar optimismo histórico: quanto mais longe e mais depressa as coisas caminharem, como estão a caminhar, tanto melhor. O populismo, pelo contrário, conduz naturalmente ao pessimismo histórico: quanto mais longe as coisas caminharem assim, tanto pior. Os ‘iluministas’ nem sequer levantaram os problemas relativos ao caráter do desenvolvimento posterior à reforma [Lênin refere-se à abolição da servidão na Rússia em 1861, conhecida como a “reforma emancipadora” promovida na época do czar Alexandre II, a primeira e mais importante de uma série de reformas liberais que destravaram o caminho do desenvolvimento do capitalismo no país], limitando-se exclusivamente à guerra contra os vestígios do regime anterior à reforma, à tarefa negativa de abrir o caminho para um desenvolvimento europeu da Rússia. O populismo colocou o problema do capitalismo na Rússia, mas resolveu-o no sentido de que o capitalismo era reacionário, e por isso não pôde receber integralmente a herança dos iluministas: os populistas sempre combateram aqueles que aspiram à europeização da Rússia em geral partindo do ponto de vista da ‘unidade da civilização’; e faziam-no não só porque não podiam limitar-se aos ideais dessas pessoas (em tal caso a guerra seria justa), mas porque não queriam ir tão longe no desenvolvimento desta civilização, quer dizer, a civilização capitalista. Os ‘discípulos’ resolvem o problema do capitalismo na Rússia no sentido de que ele é progressivo, e por isso não só podem como devem aceitar plenamente a herança dos iluministas, completando-a com a análise das contradições do capitalismo do ponto de vista dos produtores que não são proprietários. Os iluministas não destacaram como objeto de atenção especial nenhuma classe da população, falavam não só do povo em geral como mesmo da nação em geral. Os populistas desejavam representar os interesses do trabalho, sem especificar, contudo, determinados grupos do sistema atual de economia; na prática, adotam sempre o ponto de vista do pequeno produtor, o qual o capitalismo converte em produtor de mercadorias. Os ‘discípulos’ não só tomam como critério os interesses do trabalho, como indicam além disso grupos econômicos totalmente definidos da economia capitalista, ou seja, os produtores que não são proprietários. A primeira e a última correntes correspondem, pelo conteúdo das suas aspirações, aos interesses das classes que são criadas e desenvolvidas pelo capitalismo [i.e.: à burguesia e ao proletariado]; o populismo corresponde, pelo seu conteúdo, aos interesses da classe dos pequenos produtores, da pequena burguesia, que ocupa uma posição intermédia entre as outras classes que compõem a sociedade atual. Por isso, a atitude contraditória do populismo para com a ‘herança’ não é de modo algum casualidade, mas o resultado necessário do próprio conteúdo das concepções populistas: nós vimos que um dos traços fundamentais das concepções dos iluministas era a sua ardente aspiração de europeizar a Rússia, enquanto os populistas não podem, sem deixar de ser populistas, compartilhar plenamente esta aspiração.

“Em resumo, chegamos à conclusão que já foi indicada por nós acima por mais de uma vez, por motivos particulares: os discípulos são muito mais consequentes e muito mais fiéis depositários da herança do que os populistas. Não só não renegam a herança, como, pelo contrário, consideram que uma das suas tarefas mais importantes é refutar os preconceitos românticos e pequeno-burgueses que obrigam os populistas a renunciar aos ideais europeus dos iluministas em muitos e muito importantes pontos. É evidente que os ‘discípulos’ não conservam a herança como os arquivistas conservam papéis velhos. Ser depositário da herança não significa de modo algum limitar-se à herança; e à defesa dos ideais gerais do europeísmo os ‘discípulos’ acrescentam a análise das contradições inerentes ao nosso desenvolvimento capitalista, e a apreciação deste desenvolvimento do ponto de vista específico citado acima.” (A que herança renunciamos?, Lênin, 1898)

A questão do progresso colocada hoje

Lênin opôs às concepções reacionárias do populismo russo de 150 anos atrás a compreensão materialista, dialética, do desenvolvimento econômico do capitalismo na Rússia. É confusa e enviesada a maneira como a questão foi colocada por setores da esquerda pequeno-burguesa dos dias de hoje. A noção de que é nocivo e prejudicial aos oprimidos o desenvolvimento econômico capitalista brasileiro, do qual os bandeirantes (recentemente atacados na figura da estátua de Borba Gato incendiada em julho passado) foram tomados como símbolos, aparece de modo subjacente à questão levantada tanto pelos que promoveram o gesto quanto pelos que o defenderam: os conceitos de “reparação histórica”, “disputa pelos lugares da memória e da identidade”, “ressignificação dos símbolos da opressão”, a “construção de uma identidade”, ou mais precisamente, a ideia de que a identidade brasileira é uma construção histórica, no sentido de que tenha sido elaborada artificialmente ou imposta pelos “opressores” aos “oprimidos”.

Um dos apologistas do incêndio da estátua de Borba Gato como atitude “contestadora” e relevante por ter “colocado a questão: queremos uma estátua de um caçador de índios, genocida”, a historiadora Deborah Neves, disse em entrevista à agência Publica: “Estamos questionando em que bases a nossa sociedade moderna, se a gente fosse desde o mercantilismo e as navegações, em que bases o próprio capitalismo foi fundado, que foi na escravização de pessoas, do tráfico de pessoas entre continentes para exploração de mão de obra. Isso tudo leva a um questionamento não só do nosso país, mas da própria [realidade?] do mundo ocidental.” (Publica, “‘Apego aos bandeirantes tem fator xenófobo’, diz historiadora sobre estátua de Borba Gato”, 29/7/2021)

Para ela – apenas uma dentre dezenas que procuraram explicar o feito de um pequeno grupo identificado como Revolução Periférica – a justificativa para a investida da esquerda pequeno-burguesa de hoje contra símbolos do passado é o questionamento das bases da sociedade moderna, ou seja, o capitalismo fundado no “mercantilismo das grandes navegações”. A luta contra o que ela (e outros) consideram símbolo da escravização e do tráfico de pessoas no passado se dirige a criticar o Brasil (e toda sociedade ocidental) atual. A crítica da sociedade capitalista atual é substituída (ou, talvez, melhor seria dizer “diluída”) pela (na) crítica do caminho, do passado distante.

Em um patamar superior de elaboração (superior no que diz respeito ao nível de confusão política e ideológica) o professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle (PSOL) escreveu: “Uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: ‘assim foi e assim deveria ter sido’. (…) Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um ‘desenvolvimento’ que, necessariamente, realiza-se em um país composto por uma nata de rentistas encastelados em condomínios fechados e uma grande massa que ainda hoje é caçada, que desaparece sem rasto nem traço.” (El País, “Do direito inalienável de derrubar estátuas”, 26/6/2021)

O desenvolvimento foi colocado entre aspas pelo “filósofo” para denotar algo que se diz, mas que não é de fato. O desenvolvimento histórico do Brasil se deu, segundo ele, de tal maneira que resultou em um país de “rentistas encastelados” e uma “grande massa cassada”. O futuro causado pela ação dos “predadores” do passado é, portanto, para o autor, defensor do “direito inalienável de derrubar estátuas”, um valor negativo, assim por ele criticado: “Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia. Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá. (…) Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.

O país pretendido por Safatle e outros depende da “ressignificação” (em português corrente, e não em linguagem filosófica, querem dizer: descaracterização, anulação, obliteração, apagamento) dos símbolos do passado. Apagar esses símbolos “interrompe” a evolução dos acontecimentos no sentido da opressão nos dias atuais. A luta contra o passado é essencial, segundo ele, para definir o futuro. “O passado é o que se repete, o que se transfigura de múltiplas formas, o que retorna de maneira reiterada. O passado é o que faz CEOs falarem, em 2021, como senhores de escravos do século XIX, que faz transgêneros atualmente em luta falarem como pessoas escravizadas em luta séculos passados. (…) Quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.” (idem)

Os ideólogos brasileiros do identitarismo criticam, portanto, a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil teria sido um progresso porque resultou em uma sociedade… capitalista! Apontam suas armas contra o passado mirando os dias de hoje e erram o alvo completamente como não poderia deixar de ser.

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