No dia 24 de setembro, passeando pelas redes sociais, encontro, nas postagens do companheiro Pablo Carranza, uma triste nota lamentando o falecimento do cartunista e quadrinista Ota, o Otacílio Costa D’Assunção Barros, aos 67 anos de idade. O Pablo é uma pessoa bem-humorada e isso aparece nos seus quadrinhos; quem já leu Smegma, acompanhando as aventuras do Rivalino e do Chupa-Cabra, ou seu último trabalho, Podrão aniquilação, reconhece o riso, embora sarcástico. Naquele dia, porém, ele estava profundamente triste e fez várias postagens nas quais elogia publicamente o amigo Ota, lamentando a falta que faria seu mestre. Eu não conheci o Ota pessoalmente e nem conheço em detalhes seus trabalhos artísticos, por isso mesmo, deixo para seus companheiros de vida mais próximos, como foi o Carranza, a sinceridade do luto. Entretanto, quando percebi, entre suas atividades de editor, a revista Spectro, senti necessidade de escrever.
A maioria dos leitores de HQ se lembra, evidentemente, da revista Mad e de seu criador, Harvey Kurtzman, publicada no Brasil pela editora Vecchi, cuja versão era da responsabilidade do Ota. Também da mesma editora, embora menos conhecida, era a revista de terror Spectro, outra publicação organizada pelo Ota. Não vou me perder, porém, em listar seus trabalhos enquanto editor de HQs; detenho-me apenas na Spectro e quando vi, pela primeira vez na vida, com então meus anos 14 de idade, a ditadura militar brasileira de 1964 e suas práticas hediondas de tortura tematizadas em uma HQ. A história se chama O Ogro, de Julio Shimamoto, e foi publicada na Spectro nº8, de novembro de 1978. Na aventura de terror, o Ogro, um monstro execrável, aterroriza a cidade de São Paulo, desafiando o Conde Drácula, exterminadores de monstros e policiais militares, chefiados por torturadores. Não se trata de um conto, vale lembrar, trata-se de uma HQ, cujas cenas de tortura não são imaginadas, por meio de descrições com palavras, mas vistas em imagens contundentes, nas quais os prisioneiros, dependurados em paus-de-arara, agonizam em meio a cacetadas, eletrochoques e queimaduras de cigarros, cercados por torturadores.
É necessário ter coragem para denunciar tudo isso? Hoje, quando aqueles criminosos da ditadura militar estão mortos, talvez nem tanto; na década de 70, contudo, por muito menos, pessoas perderam a vida, o próprio Shimamoto foi preso em 1969, testemunhando as cenas de horror nos porões da ditadura, desenhadas em suas histórias. Assim como eu, creio que muitos adolescentes também foram levados à consciência política não pelo Ogro, nem pelo conde Drácula, mas pelos verdadeiros monstros da história, aqueles torturadores.
Por isso mesmo, quando li a nota do Carranza, senti-me comovido pela compaixão com o amigo, de quem admiro o trabalho, entretanto, à medida que ia tomando conhecimento das atividades do Ota, quer pelo próprio Carranza, quer por outros cartunistas e quadrinistas, e li as menções sobre a Spectro, de quem fora leitor assíduo, minha comoção ganharia outros contornos e a figura do Ota, outros desenhos (aqueles da coragem e da consciência política). Que a terra lhe seja leve…