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Rafael Dantas

Membro da Direção Nacional do PCO e diretor de redação do Jornal Causa Operária.

Parte 1

O populismo russo e a esquerda “identitária” brasileira

O que o “identitarismo” brasileiro e o populismo russo têm em comum? Um paralelo entre as concepções do que é progresso histórico da esquerda pequeno-burguesa de hoje e de ontem

As ideias da esquerda pequeno-burguesa “identitária” dos dias de hoje, subjetivas, anti-históricas e, no fundo, reacionárias, muito se assemelham às do movimento pequeno-burguês e semianarquista russo do final dos anos 1890 – o populismo – criticadas exaustivamente por Lênin e pelos marxistas russos. Na obra A que herança renunciamos? (1898), o grande dirigente do partido bolchevique e da Revolução Russa analisa em profundidade as concepções dos que acusavam os marxistas (chamados de “discípulos”, como era usual entre os marxistas russos nos anos 90 do século XIX para eludir a censura czarista) de romper com as tradições revolucionárias russas, a “herança das décadas de 60 e 70”, isto é, as ideias da corrente pequeno-burguesa no movimento revolucionário russo surgida nos anos 60-70 do século XIX.

Em suma, tal como fazem os esquerdistas pequeno-burgueses “identitários” dos dias de hoje, os populistas de então acusavam os marxistas (que tanto à época como hoje constroem um partido operário para a revolução proletária e o socialismo) de serem defensores e apologistas da classe opressora, a burguesia (ainda que, de modo peculiar, os populistas se recusassem a acreditar e admitir que o capitalismo já estava em pleno desenvolvimento na Rússia, liquidando as antigas relações feudais, de servidão, existentes entre a maioria camponesa e a nobreza feudal em torno da autocracia). 

É oportuno e prático, para maior brevidade, reproduzir aqui a definição desta corrente dada em uma nota às Obras Escolhidas de Lênin (publicada pelas Edições Progresso na URSS – vol. 1, do qual extraímos esta e outras citações abaixo): “Os populistas lutavam pela liquidação da autocracia, pela entrega das terras dos latifundiários aos camponeses. Consideravam-se socialistas, mas o seu socialismo era utópico. Negavam o caráter necessário do desenvolvimento das relações capitalistas na Rússia, viam na comunidade agrária o embrião do socialismo e pensavam, em conformidade com isso, que era o campesinato e não o proletariado a principal força revolucionária. Procurando erguer os camponeses para a luta contra a autocracia, os populistas iam ao campo, ‘ao povo’ (daí o seu nome) mas não encontravam apoio. O populismo atravessou várias etapas, evoluindo da democracia revolucionária para o liberalismo. Nos anos 80-90 [quando lênin escreve A que herança renunciamos?], os populistas entraram na via da reconciliação com o czarismo, exprimiam os interesses dos camponeses ricos e lutavam contra o marxismo”.

Os críticos do marxismo de ontem e de hoje

Em seu artigo de 1898, Lênin polemizava com um dos adversários do marxismo de então, Nikolai Konstantinovitch Mikhailovski, um dos principais teóricos do chamado partido dos populistas, a Narodnaia Vólia (Partido da Libertação do Povo). Intelectual e terrorista, Mikhailovski é considerado um dos fundadores do partido dos socialistas-revolucionários, expressão da pequena burguesia agrária cujo desenvolvimento na história da revolução o levou a a, primeiramente, apoiar o governo burguês resultado da Revolução de Fevereiro de 1917 e, em seguida, a assumir diretamente, juntamente com os mencheviques, a responsabilidade pelo governo burguês e a defender a continuidade da participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Após a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro, os herdeiros do populismo do final do século XIX passaram-se integralmente à contrarrevolução, correndo em auxílio da burguesia e da nobreza russas, pegando em armas, juntamente com os militares contrarrevolucionários (os exércitos “brancos”) e o imperialismo mundial contra o poder dos sovietes.

Interessa-nos a comparação das ideias dos “identitários” de hoje com uma das concepções centrais do populismo, a consideração de que o capitalismo na Rússia era uma decadência, uma regressão. Daí, como escreveu Lênin, “o desejo de ‘deter’, de ‘paralisar’, de ‘cessar a destruição’ dos pilares pelo capitalismo e outros lamentos reacionários semelhantes”. Eles não consideravam “necessário aplicar às relações econômicas russas os conceitos elaborados pela ciência moderna sobre as diferentes classes sociais e os seus conflitos. O campesinato da comunidade [agrária russa, originária do passado feudal do país] é considerado como algo superior e melhor em comparação com o capitalismo” (…) “Negam e dissimulam as contradições que existem entre os camponeses, que são inerentes a qualquer economia mercantil e capitalista, negam a relação destas contradições com a sua forma mais desenvolvida na indústria e na agricultura capitalistas”. 

Eis a semelhança com os intelectuais e “terroristas” identitários dos dias de hoje: a negação do caráter histórico progressista do desenvolvimento capitalista à história do Brasil – colocada em questão por suas declarações, teorias, projetos de lei e tentativas de atear fogo a monumentos históricos dedicados a Pedro Álvares Cabral, que descobriu o Brasil, e aos bandeirantes, grandes responsáveis pelo alargamento do território colonizado pelos portugueses e que nos deram como herança as dimensões continentais e todas as riquezas contidas no território nacional. Notemos, de passagem, uma importante diferença, uma curiosa confirmação da máxima de Marx de que a história se repete, a primeira vez como tragédia e, na segunda, como farsa: os terroristas (populistas) russos do século XIX chegaram a derrubar um governo assassinando o czar Alexandre II, depois de inúmeros atentados promovidos ao longo de décadas de atividade; já os “terroristas” identitários do Brasil contemporâneo não fizeram mais do que chamuscar representações petrificadas de figuras históricas de cerca de 500 anos atrás.

Uma comparação injusta

Ao apreciar o conteúdo das ideias expostas pelos populistas, Lênin jamais negou a valorosa contribuição dada pelos revolucionários pequeno-burgueses à Revolução Russa. Assinalou precisamente, no entanto, que suas ideias e métodos, apoiados na idealização do camponês russo e sua primitiva economia semifeudal, foram superados pela classe operária e sua vanguarda revolucionária, apoiadas na concepção materialista, científica, da história, o marxismo.

“Em primeiro lugar, o populismo deu um grande passo em frente em relação à herança ao colocar ao pensamento social problemas que os depositários da herança em parte ainda não tinham podido (na sua época) colocar e em parte não colocaram nem colocam devido à estreiteza de vistas que lhes é própria. A colocação destes problemas é um grande mérito histórico do populismo, e é completamente natural e compreensível que o populismo, ao dar uma solução (qualquer que fosse) a estes problemas, ocupasse por isso mesmo um lugar de vanguarda entre as correntes progressistas do pensamento social russo.

“Mas a solução que os populistas deram a estes problemas revelou-se totalmente inadequada, pois se baseava em teorias antiquadas, há muito postas de lado na Europa ocidental, na crítica romântica e pequeno-burguesa do capitalismo, na ignorância dos principais fatos da história e da realidade russas. Enquanto o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e as contradições que lhe são inerentes eram ainda muito fracos, esta crítica primitiva do capitalismo podia manter-se de pé. Mas o populismo não corresponde indubitavelmente ao atual desenvolvimento do capitalismo na Rússia, ao atual estado dos nossos conhecimentos sobre a história e a realidade econômica russas, às atuais exigências colocadas à teoria sociológica. Progressista no seu tempo por ter sido o primeiro a colocar o problema do capitalismo, o populismo é agora uma teoria reacionária e nociva, que desorienta o pensamento social, contribui para a estagnação e para toda a espécie de asiatismos. O caráter reacionário da sua crítica do capitalismo imprime no momento atual ao populismo traços tais que o colocam abaixo da concepção do mundo que se limita a ser a fiel depositária da herança.”

Naturalmente que cometemos uma injustiça e um exagero ao comparar correntes de pensamento tão díspares e desproporcionais na sua importância histórica e na sua relevância para o movimento revolucionário, dado que a profundidade e transcendência do pensamento “identitário” não guardam relação – como guardavam as dos populistas – com um movimento histórico revolucionário de toda uma época em um determinado país. A esquerda pequeno-burguesa brasileira dos dias de hoje se limita a reproduzir com paixão as ideias que lhe dão de bandeja “pensadores” que não se apoiam em nenhuma tentativa de compreender o sentido social e fundamentar ideologicamente todo um movimento revolucionário. São apenas tagarelas a repetir o que lhes é transmitido pelos ideólogos dos países imperialistas “democráticos”, reacionários de ponta a ponta, justificadores da ordem social imposta pela burguesia da época da total decadência do capitalismo encobertos por um revolucionarismo verborreico e vazio.

O capitalismo é um retrocesso?

Lênin analisava desta maneira um dos traços fundamentais da concepção de mundo dos populistas, a ideia de que o capitalismo na Rússia era uma decadência, um retrocesso: 

“Quando se colocou o problema do capitalismo na Rússia, logo se tornou evidente que o nosso desenvolvimento econômico era capitalista e os populistas consideraram este desenvolvimento como um retrocesso, um erro, um desvio do caminho que seria determinado por toda a história da vida da nação, do caminho que teria sido consagrado pelos pilares seculares, etc, etc. No lugar da fé ardente dos iluministas nesse desenvolvimento social, apareceu a desconfiança nele; no lugar do optimismo histórico e do ânimo elevado, o pessimismo e o desalento baseados na certeza de que quanto mais as coisas avançassem, como avançavam, tanto pior, tanto mais difícil seria a solução dos problemas colocados pelo novo desenvolvimento; aparecem então as propostas de ‘deter’ e ‘paralisar’ esse desenvolvimento; aparece a teoria de que o atraso é a felicidade da Rússia, etc. 

“(…) Considerar o capitalismo russo como um ‘desvio do caminho’, uma decadência, etc., leva à desnaturação de toda a evolução económica da Rússia, à desnaturação da ‘substituição’ [do feudalismo pelo capitalismo] que se efetua diante dos nossos olhos. Animado pelo desejo de deter e cessar a destruição dos pilares seculares pelo capitalismo, o populista incorre numa espantosa falta de tato histórico, esquece que para trás deste capitalismo nada há senão uma exploração idêntica associada a infinitas formas de sujeição e de dependência pessoal, que agravam a situação do trabalhador; nada há senão a rotina e a estagnação na produção social, e, por conseguinte, em todas as esferas da vida social. Ao lutar contra o capitalismo do seu ponto de vista romântico e pequeno-burguês, o populista abandona todo o realismo histórico, comparando sempre a realidade do capitalismo com a ficção da ordem pré-capitalista.”

No paralelo que estamos procurando traçar, ressalta-se que os “identitários” também consideram o rumo dos acontecimentos na história do Brasil – do seu descobrimento, colonização, desenvolvimento, etc. – como “um retrocesso, um erro, um desvio” do caminho ideal que a história deveria ter seguido e que, eles o ignoram, favorece objetivamente a estagnação do desenvolvimento humano e social no território do que hoje é o Brasil, ocupado à época do seu descobrimento pelos indígenas nem bem saídos do estágio de barbárie, da organização social e econômica pouco superiores à da vida animal “natural”. Eis a base ideológica de sua oposição a que a conquista e expansão do território no período colonial tenha representado um progresso, uma superação da barbárie pelo desenvolvimento econômico e social que resultariam, por meio das inúmeras contradições do seu desenvolvimento, na moderna sociedade capitalista brasileira.

(continua na próxima semana)

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