A chegada de uma figura grotesca como Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto em 2018 tem provocado uma série de indagações sobre a natureza da crise política brasileira e quais os motivos que levaram a um elemento da extrema direita à Presidência da República.
As interpretações correntes, tanto à esquerda quanto à direita tem gerado mais confusão do que efetivamente elucidado o panorama político. A confusão reinante não é fruto do acaso, mas decorre do fato que as interpretações são elas próprias parte da luta política vigente. O livro DEMOCRACIA EM RISCO? 22 ENSAIOS SOBRE O BRASIL HOJE, é constituído de diversas visões sobre a ascensão do bolsonarismo, mas na quase totalidade dos artigos não conseguem apresentar uma avaliação coerente sobre os problemas candentes da conjuntura política do “ Brasil hoje”.
O primeiro ensaio é intitulado Polarização radicalizada e ruptura eleitoral do cientista político Sergio Abranches, apresenta uma análise a partir da noção “ presidencialismo de coalizão”.
“ eleição geral de 2018 foi disruptiva. Encerrou o ciclo politico que organizou o presidencialismo de coalização brasileiro nos últimos 25 anos e acelerou o processo de realinhamento partidário que já estava em curso, pelo menos desde 2006. Rompeu o eixo político-partidário que organizou governo e oposição nas últimas seis eleições gerais e que era movida pela disputa polarizada entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia brasileira (PSDB) pela Presidência da República, enquanto os demais partidos se limitavam a disputar posições no Congresso para garantir assento na coalização de governo” ( Democracia em Risco, 2019.p.11).
O tema presente tanto no texto do Sergio Abranches, quanto em praticamente em todo livro, é a lamuria pelo aumento da “ violência nascida da polarização ”, que levaria ao “prenuncio do colapso democrático.”.
Para Abranches “No caso brasileiro, esse tipo de polarização já era observado no comportamento mais agressivo de militantes e de certas lideranças do PT, buscando demarcar um território de confronto, definido pelo “nos” cá, “ eles” lá e pelo uso indiscriminado de rótulos pintados com carga negativa, como “ fascista”, “ direitista” ou “ neoliberal”(..) “ o discurso agressivo do PT, especialmente nas redes, gerou revolta e um desejo de revanche que foram, em parte, ingredientes do crescimento das redes de ataque da direito, que terminaram por aderir à candidatura de Bolsonaro. ( Democracia em Risco, 2019.p.25)
O “ esquerdista” Ruy Fausto no seu artigo Depois do temporal, indica que a “ revolução conservadora” bolsonarista representa um descontinuidade no processo política democrático, relacionado com um movimento de caráter internacional, que no Brasil relaciona-se com três pontos centrais : a emergência das denuncias sobre Corrupção, o aumento da violência e questões de costumes, que alimentam um fundamentalismo religioso. Entretanto, na mesma linha de Abranches, e por sinal da própria imprensa capitalista, a culpa é do PT “ E houve os erros da esquerda, em particular do PT. A necessidade seria de uma auto critica”. (..) A indicação que Haddad deveria ser o candidato ,com discurso autocritico e de verdade ( “ só que verdade e autocritica nunca foram o forte das direções do PT).(…) “ a campanha de Haddad foi marcada pelas cascas de banana que as grandes figuras do seu partido jogavam em seu caminho. ( idem,p.154
Na verdade, a polarização não é apreciada a partir do acirramento da luta de classes, mas tão somente como uma expressão de uma mera disputa eleitoral ou por posições divergentes. Notem que nestas “ análises” Abranches e Ruy Fausto, a polarização política e mais que isso o próprio bolsonarismo é apresentado como o outro lado dos erros do PT, por isso a exigência da “ auto-critica”.
Outros artigos, apresentam uma posição mais mediada ou melhor mais centrista, defendendo que o remédio para evitar o colapso da democracia, que poderia ter evitado a vitória de Bolsonaro, e que precisa ser implementada como solução é a aliança entre os “ democratas”, ou seja entre o PSDB e o PT. Essa é posição predominante nos artigos que compõem o livro, e relaciona-se com uma tentativa do PSDB ( e outros setores burgueses) em escamotear que foram eles os artificies do golpe de Estado de 2016, e são os principais articuladores da vitória de Bolsonaro em 2018.
Na verdade, uma questão chave para uma compreensão do bolsonarismo no Brasil é o entendimento do significado do golpe de Estado, e do desenvolvimento posterior do regime golpista, que levou a prisão do ex-presidente Lula, através de uma farsa judicial, como elemento central para a manipulação das eleições de 2018, que teve como resultado a “ vitória” de Bolsonaro. Ao contrário das visões abstratas sobre o bolsonarismo, o fenômeno da ascensão da extrema direita tem um caráter internacional, relacionando-se com a maneira com setores fundamentais da burguesia busca reconfigurar o regime politico diante do agravamento da crise econômica. É preciso deixar os sistemas políticos cada vez mais impermeáveis a participação política popular, uma vez que o eixo geral é retirar os direitos sociais dos trabalhadores.
Dessa forma, ao evitar relacionar a ascensão de Bolsonaro com o golpe, os artigos acabam por discorrem sobre as características e aspectos do bolsonarismo, como a “ cultura do ódio”, a pauta “ de costumes”, a importância da violência, a utilização de fake News, entre outras questões, mas não abordam o ponto nevrálgico.
Assim, Angela Alonso no texto A Comunidade moral bolsonarista apresenta os ataques do tipo fascista dos bolsonaristas como uma questão abstrata fruto do “ desejo de eliminar o adversário”, quase como uma questão moral de comportamento “ inadequado” em uma democracia, citando o uso das chamadas fake News.
“O recurso à força física completa o combate simbólico. Desejo de eliminar o adversário . a politica como guerra é enraizada no Brasil. A candidatura Bolsonaro apenas tocou fundo uma corda da alma nacional. “
Em relação a questão política, a autora também advoga a “ frente ampla” como solução dos democratas diante do bolsonarismo, para isso cita um trecho de Steven Levitsky publicado na época das eleições de 2018 no jornal Folha de São Paulo “ os tucanos e os petistas têm bons motivos para não gostarem uns dos outros. Mas é preciso ser claro. O PSDB não é golpista. E o PT não é chavista. O PSDB e o PT são pilares da democracia brasileira. Devem se dispor a unir forças para defende-la, se necessária.” ( idem, p.78)
Já no artigo A politica brasileira em tempos de cólera de Ângela de Castro Gomes é ressaltado que “ A eleição de Bolsonaro produziu uma “ inflexão nos valores e práticas da chamada Nova República, ao atingir ao menos dois pilares fundamentais: a convivência com a pluralidade politica e o respeito à diversidade social.” ( idem, P. 176).
A autora ainda afirma que a oposição não se pode questionar o resultado eleitoral, devendo os “ democratas” aceitarem de maneira resignada a vitória de Bolsonaro e o “ desmanche” das instituições democráticas e dos direitos sociais, em argumento no estilo Guilherme Boulos, “Questionamentos aos resultados eleitorais é algo conhecido da politica brasileira , sendo sua maior fragilização de nossas experiências democráticas, no passado e no presente.”
Os artigos do livro Democracia em risco? , ilustram como uma parcela importante da intelectualidade não consegue compreender os paramentos da situação política e do real significado do bolsonarismo.
O elemento crucial para a confusão generalizada é o fato de que a grande maioria da intelectualidade , seja ela da esquerda moderada ( sendo que autores como Boris Fausto, José Arthur Giannotti nem isso) e mesmo da esquerda pequeno burguesa “ radical” está completamente adaptada ao regime político burguês vigente, e tributária de fantasias analíticas como a noção de “ consolidação democrática”.
Dessa forma, quando as classes dominantes partem para uma política contra as “ regras do jogo” da “ democracia” e utilizam do expediente do bolsonarismo, os intelectuais tributários das ilusões fomentadas por eles próprios ficam completamente à deriva, simplesmente repetindo lugares comuns, que servem como justificativas “ criticas” do próprio bolsonarismo, por isso nenhum dos textos apresenta um questionamento efetivo e recusam as conclusões fundamentais que levaram ao fracasso o regime politico democratizante no Brasil e no mundo.