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Afonso Teixeira

Tradutor, formado em Letras pela USP e doutorado em Linguística com tese em tradução. Tem formação como músico, biólogo e cientista político.

O barco de Ulisses – Uma canoa furada

Ernesto Araújo caminha para o Itamaraty como Jesus caminhou para Jerusalém. Jesus montava um burro. Araújo caminha sozinho sem ter quem o monte.

Acabei de ler o artigo “O Brasil no barco de Ulisses”, de Ernesto Araújo, futuro Ministro das Relações Exteriores do Brasil. É obra de um louco. Das linhas do artigo, saltam arroubos da mais profunda ignorância, arremedos históricos e lógicos, estultícias, deslizes e cultura de almanaque.

O texto começa com uma “pergunta adormecida”: “o Brasil pertence ao Ocidente?” E arremata: “fazer parte do Ocidente significava, até algum tempo atrás, fazer parte de um bloco geopolítico comandado pelos Estados Unidos, numa posição um pouco clientelista que causava aversão a um país com vocação de política externa independente como o Brasil. Felizmente essa perspectiva foi superada gradativamente após o final da Guerra Fria.”

Entendemos, então, por que a pergunta tirava uma soneca. O país não queria pertencer, embora pertencesse, a um bloco comandado pelos Estados Unidos. Mas, com o fim da Guerra Fria, a pergunta pôde sair de baixo das cobertas e andar aquecida pelo quarto.

Todavia, “suspeitávamos que o Ocidente estivesse em inevitável decadência” e pensávamos que “o futuro pertenceria à Ásia, à China, à Índia, aos países francamente não-ocidentais”.

Mas tudo mudou, graças às “pretensões de Trump de reverter esse quadro, de contrapor-se ao poder da China e restaurar a centralidade de uma América great again”.

Por outro lado, a política externa brasileira quis sempre ser amiga de todo o mundo, do Ocidente e do “não-Ocidente” (sic). Além disso, o Brasil sempre se contentou em ser um “país em desenvolvimento”. Mas isso está mudando, pois, “felizmente”, pedimos, hoje, “adesão à OCDE, tradicional clube do Ocidente desenvolvido (o Ocidente em sua dimensão econômica, que inclui também alguns países asiáticos), uma grande e importante inovação da atual gestão da política externa brasileira. Mas pleitear adesão à OCDE não significa ainda assumir nossa alma ocidental”.

“Brasil também reluta em qualificar-se como ocidental pelo fato de que nunca quis associar-se à chamada ‘aliança atlântica’.”

Aqui, chegamos à metade do texto, de oito parágrafos, sem entendermos o que significa, para o autor, a palavra “Ocidente”.

É preciso defini-la. Se a definição fosse geográfica, o problema estaria resolvido. O Brasil pertence ao Ocidente e não há como mudá-lo dali. Se, por outro lado, assumirmos a definição aleijada de um incômodo bloco geopolítico liderado pelos Estados Unidos, teríamos que definir de que espécie de bloco se trata. Um bloco econômico? Militar? Cultural?

Politicamente, o Brasil juntou-se à Organização dos Estados Americanos (OEA) e submeteu-se, historicamente às decisões dessa entidade. Economicamente, o Brasil recusou-se a fazer parte da Aliança de Livre Comércio das Américas (ALCA). Ou seja, levou sempre um pé no barco e outro no barranco. Mas é isso o que fazem todos os países do mundo.

Pertencer ao Ocidente não significa outra coisa, para o autor do texto, que um alinhamento servil aos Estados Unidos. É o que vem fazendo o atual governo, depois de tomar o poder na mão-grande, e o que anuncia fazer o próximo. Pertencer ao Ocidente significa adotar os valores ocidentais de sempre: família, religião, capitalismo e escravidão. Significa bater continência para o mais reles funcionário norte-americano. Significa saudar a a bandeira dos Estados Unidos como se fosse a nossa. Significa dar adeus a uma indústria nacional em nome da prosperidade do Norte, Norte esse que é apenas uma parte restrita daquilo que o autor do ensaio chama de Ocidente.

No entanto, a sandice não se detém aí. Não tem freio nem arreio. Na segunda parte, somos obrigados, por dever de ofício, de ler o seguinte: “a dúvida existencial quanto a ser ou não ser Ocidente sempre foi uma questão espinhosa para os brasileiros.” Para que brasileiros? Será preciso perguntar a todos os psicanalistas do Brasil se alguma vez, durante ou depois da Guerra Fria, alguém se dirigiu a um consultório para resolver essa “dúvida existencial”.

Talvez fosse melhor dirigir-se a um botânico, já que a dúvida é espinhosa. Porém, mais espinhosa que a dúvida é a ideia de que o “pertencimento ao Ocidente deixou de ser óbvio para os ocidentais”, pois eles foram reprogramados pelo “marxismo cultural” da Escola de Frankfurt.

Dessa forma, os ocidentais reprogramados deixaram de lado os mitos e voltaram-se para “valores abstratos”, como a democracia. Fica claro que o autor do texto acredita que o mito seja algo concreto. Estaria ele se referindo ao Bolsomito? Mito um pouco pastoso, mas concreto.

Mas mito e história começam com os gregos, os pais do Ocidente. Os marxistas, por outro lado, pregam o fim do mito e o fim da história, como um grande projeto de aniquilação ou superação do Ocidente, chamado globalismo.

É insano. Mas o curioso é que Francis Fukuyama tenha invocado o fim da história para dar cabo justamente do marxismo.

No entanto, o autor é obrigado a abrir parêntesis para dizer que o Ocidente também tem raízes na Bíblia. Malgrado seja o fato de que as raízes bíblicas brotaram de terras orientais. Mas a Bíblia é também um relato histórico escrito no tempo, tempo esse criado por Deus. Assim, Deus é tão histórico quanto o Ocidente. O grande problema é que Deus é eterno e o Ocidente é apenas um fragmento do tempo. Mas o autor conduz o seu raciocínio na tentativa de convencer o leitor de que propor o fim da história é o mesmo que propor o fim de Deus.

E Deus não seria um valor abstrato, é bom lembrar.

Mas acontece que o tempo não tinha, como crê o autor do terrível e messiânico ensaio, tanta importância para os gregos quanto tem para o mundo moderno, o mundo capitalista. Nesse mundo o tempo deixou de ter valor divino e passou a ter valor material. Tempo é dinheiro. Assim como o tempo, Deus também é dinheiro. Que me desmintam as igrejas evangélicas.

De acordo com o texto de Araújo, os gregos teriam identificado o sagrado em direção ao ocidente. E isso teria continuidade com o Cristianismo. Há, pois, o fato de o culto à virgem Maria ser identificado com a estrela vespertina, Vênus. O futuro chanceler se esquece ou ignora que a estrela vespertina é, também, Lúcifer, como o quer a Vulgata.

Mas, com insistência redobrada no mito, Araújo ainda pretende justificar o Ocidente como uma onda divina onde o barco de Ulisses tem de tocar. Para isso, vai firmar-se na história de ter sido Ulisses o fundador de Lisboa, fundando-se numa etimologia bastante duvidosa. E, do nada, vai invocar o nome de Donald Trump, como o Ulisses moderno, aquele que conduzirá o Ocidente de volta para o Ocidente.

E meditará: terá Donald Trump lido Homero? “Imagino que sim”, diz Araújo, pois o “Ocidente que ele concebe tem lugar para Homero, ao contrário do Ocidente derivado da crítica cultural e do marxismo da escola de Frankfurt”.

Não sabemos, de fato, se Donald Trump leu Homero alguma vez. O que sabemos é que Donald Trump e família fazem parte de uma raça de seres superficiais e com sérias limitações cognitivas. Se leu, não entendeu. E, muito menos ter-se-ia apoiado em Homero para elaborar algum projeto de país.

Afinal, que projeto de país Ulisses tinha para Ítaca. Ao arribar em suas praias, depois de vinte anos, entre os tempos da guerra e os enganos do mar, Ulisses põe-se a tramar uma sangrenta vingança contra aqueles que tomaram conta de sua casa e pretendiam tomar-lhe a esposa. Que houve, nós sabemos. Um verdadeiro banho de sangue perpetrado por Ulisses e Telêmaco, aquele que ficou longe da guerra.

Esse é o projeto do Ocidente para o Ocidente. É o projeto de Trump para o Ocidente. É aquele que procura impedir a chegada dos famintos; é aquele que não dá passo aos que têm fome. E que promete tratá-los como invasores. É aquele que, também, trama, da maneira mais sórdida possível, contra as democracias do mundo, contra a prosperidade daqueles que estarão sempre “em desenvolvimento”. Pois desenvolvidos nunca serão. Pelo menos em um Ocidente que não abre suas portas para seus irmãos.

O projeto de Ocidente proposto por Araújo, que por alguma razão pensa ser o mesmo de Donald Trump, é, de fato, um mito. Pois, se realizado, acarretará numa grande prosperidade para o Norte e numa grande miséria para o Sul. E isso não é mito; é realidade concreta e visível. Há sinais e marcas dessa realidade por toda parte.

Se é verdade que o Ocidente é produto do mito, é hora de darmos as costas ao mito.

O marxismo da Escola de Frankfurt, tão mal interpretado por Araújo, pode não ser a solução para os problemas do Brasil. Mas certamente não o será o mito tampouco.

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