Berenice Bento, autora do livro “Estrangeira: uma paraíba em Nova Iorque”, publicou um artigo no portal Outras Palavras em que reflete acerca do preconceito contra os nordestinos, de maneira geral, principalmente nas eleições.
O “ódio aos nordestinos” seria, segundo ela, uma expressão particular dos habitantes do Sul e do Sudeste do Brasil e tem raízes séculos atrás, por exemplo, com relação à abolição da escravidão no País.
Deveria ficar claro, em primeiro lugar, que é real o preconceito contra as pessoas nascidas na região nordeste do País por parte do Sul e do Sudeste. Logicamente que esse preconceito não pode ser generalizado, mas tem um caráter de classe. Os nordestinos de diversos estados, após a pulverização da economia da cana do açúcar, viram-se desfavorecidos economicamente com relação a novos eixos econômicos mais dinâmicos que brotaram: Minas Gerais com o ouro e depois São Paulo com o café. Esse processo de migração econômica do norte para o sul foi finalizado com a industrialização do sudeste no século XX. A migração do eixo econômico gerou a migração populacional, com os trabalhadores nordestinos, sem emprego e na miséria, tendo de procurar uma nova vida no sul e no sudeste.
Esse processo, que está umbilicalmente atrelado ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo atrasado brasileiro, gerou tamanhos preconceitos contra os migrantes nordestinos. Algo parecido com o que ocorre com o preconceito contra imigrantes dos países pobres que buscam oportunidades nos países desenvolvidos.
Por serem oriundos de uma região ─ geralmente o interior do nordeste ─ onde a falta de desenvolvimento econômico levou à completa ausência de políticas públicas como a educação, e por não terem emprego em sua terra natal, os imigrantes vendem sua mão de obra por um preço baixíssimo, submetendo-se aos piores empregos. A opressão que sofrem, portanto, é principalmente devido à sua condição econômica, logo uma opressão de classe. O preconceito surge fundamentalmente dos setores que fornecem esses empregos com salários baixos, e nem tanto dos trabalhadores que convivem com os nordestinos, que moram junto com eles nas favelas e periferias, que estão em uma situação semelhante.
Se os patrões chamam os nordestinos, em São Paulo, de “baianos”, ou no Rio de Janeiro de “paraíba”, de forma depreciativa, por outro lado os trabalhadores sudestinos os chamam assim de forma geralmente não depreciativa, mas sim amistosa. Tal como um negro na periferia tem o apelido de “negão” ou um gordo de “gordão”.
A autora indica que o nordeste também não pode ser considerado como um todo homogêneo no sentido de classe, porque a classe dominante nordestina, a oligarquia, também oprime o povo pobre da região. Isso está correto, na medida em que, pela primeira vez em sua análise, busca diferenciar o conteúdo de classe com relação ao preconceito aos nordestinos. Mas mantém uma análise superficial a respeito dessa questão.
Por que o sul e o sudeste deram vitória a Bolsonaro no primeiro turno e o nordeste a Lula? Não se trata de um preconceito “elitista” por parte dos habitantes do sudeste, tampouco por uma consciência política evoluída por parte dos nordestinos. A razão é que o sul e o sudeste são as regiões onde a burguesia brasileira é mais forte e mantém um domínio rígido sobre os trabalhadores, mesmo que eles também sejam muito mais organizados do que os do nordeste ─ e exatamente por isso. Já no nordeste, a burguesia é mais fraca e as necessidades materiais urgentes do povo daquela região (mais pobre do que o do sul e sudeste) são o motivo principal do voto em Lula, cujas políticas sociais de seu governo favoreceram mais aquele povo do que qualquer outro governo na história.
Portanto, o “ódio” não vem do sul e do sudeste, mas sim de uma classe social, a burguesia, e de uma parte de outra, a pequena burguesia reacionária. Ao contrário do que pensa a autora, não é um ódio geográfico, mas sim, novamente, de classe. A direita, representante da burguesia, odeia Lula não por este ser nordestino ─ embora o preconceito de classe contra os nordestinos seja um fator, menor ─ mas sim por ter nascido pobre e crescido e forjado como político liderando as lutas operários, ou seja, a luta de seus inimigos de classe. Mais do que isso: Lula representa, em uma situação polarizada e radicalizada, a revolta da classe operária contra a burguesia. A burguesia e a pequena burguesia reacionária, portanto, têm medo dessa revolta, e por isso combatem Lula.
De um certo modo, como reconhece a própria autora, o seu ponto de vista é identitário. É um ponto de vista claramente insuficiente para entender a raiz do preconceito contra as pessoas dos diferentes estados do nordeste do País. Esse preconceito só pode ser entendido indo além do raciocínio superficial, embora, no caso da autora, haja uma tentativa de compreender esse preconceito com um pensamento relativamente coerente. É principalmente o problema social de classe que leva a esse preconceito e é através da análise da luta das diferentes classes sociais e de seu desenvolvimento que se pode compreender o caráter dos preconceitos que vigoram ainda no século XXI.