Cinismo é um adjetivo que ganha nova dimensão após Merval Pereira ter a cara de pau de publicar sua coluna, defendendo que “anular uma eleição onde o candidato foi eleito com 60 milhões de votos é uma decisão muito dura.” Considerando o fervor com que “a voz de deus” se dedicou ao golpe que derrubou Dilma Rousseff, a declaração é no mínimo digna de riso.
Dilma, devemos lembrar, foi reeleita em meio a uma das campanhas presidenciais mais sujas já ocorridas, onde o conjunto da burguesia voltou sua artilharia contra a reeleição da petista e em favor do tucano Aécio Neves. Uma verdadeira operação de guerra se operou, com agressores fascistas nas ruas, o uso intensivo da máquina de propaganda burguesa (exemplo memorável da capa de Veja a três dias do segundo turno) e também a burocracia judicial (que criou a famigerada conspiração “Lava Jato”). Ainda assim, o pleito de 2014 deu vitória à petista, com mais de 54 milhões de votos.
Impossibilitados de tirar o PT de maneira indolor, pela via eleitoral e com anuência da maioria da população, a burguesia (muito mais preocupada com seus interesses do que com miudezas ritualísticas) tratou de mobilizar todo o seu arsenal para derrubar a ex-presidenta, o que acabariam conseguindo dois anos depois da vitória, conseguida em condições extremamente adversas. Aqui o cinismo de Merval Pereira ganha especial conotação.
É de se questionar que tipo de métrica o golpista usou para classificar a decisão de anular uma eleição como “muito dura”. Vamos considerar o arredondamento feito pelo colunista de O Globo para cima (oficialmente, foram cerca 57,7 milhões mas isso é mero detalhe para esta discussão), assim temos que 4 milhões de eleitores (a diferença entre os votos recebidos por Dilma e os 60 milhões atribuídos a Bolsonaro) diferenciam “impeachment inevitável” de “decisão muito dura”. Menos de 3% do eleitorado brasileiro separam a anulação de um resultado eleitoral entre “muito dura”, “dura” e “inevitável”, com escala regressiva a cada ponto percentual?
Claro que é ridículo, tampouco poderia ser diferente. O cerne da questão é a necessidade urgente de se defender o indefensável. Frisando que não se trata apenas de defender Bolsonaro mas da urgência que esta defesa assume diante do crescimento das manifestações contrárias ao fascista. Em meio a uma situação de crise tão intensa quanto a que vive o Brasil, qualquer fagulha mínima pode, com muita facilidade, se tornar uma rebelião de características imprevisíveis, o que torna a defesa do mandato presidencial uma necessidade que supera divergências menores.
Nesse sentido, o malabarismo retórico mal formulado por Merval Pereira deve, acima de tudo, ser compreendido pelos militantes e ativistas da luta pelo fim do regime golpista de Bolsonaro como um lembrete de que a burguesia usa expedientes como a frente ampla por mero distracionismo. Não vão mudar uma vírgula que seja no regime político, apesar irão tentar domar o presidente fascista, nem têm a menor intenção de tirar Bolsonaro, o que só pode ser conseguido com as mobilizações populares nas ruas, sem acordo de nenhuma natureza com a burguesia.