A imprensa noticiou caso de um motorista preso após ter conduzido três criminosos, sem saber que estavam em fuga. A polícia seguiu o carro e o alvejou, os criminosos fugiram e o motorista foi atingido na perna e preso.
O Ministério Público, na audiência de custódia, pediu prisão preventiva, mas a defensoria considerou o fato de ser um réu primário e trabalhador, o que motivou a juíza do caso a colocá-lo em prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica.
Depois de 530 dias, quase 18 meses, foi julgado inocente.
Esse é um caso que, incrivelmente, acabou relativamente rápido (em relação ao padrão da justiça) e em favor do cidadão injustamente preso. Isso porque ser preso injusta e violentamente é algo muito comum no Brasil e em quase todo mundo, indicando que o sistema de justiça, no qual se inclui a polícia, é reflexo do punitivismo que impera no capitalismo – que visa a controlar os pobres mais que qualquer outra coisa.
O último registro, em julho de 2019, no Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indica que a população carcerária no Brasil alcança o número absurdo de 812 mil presos. Esse número só é menor do que o dos Estados Unidos (2,1 milhões de presos) e o da China (1,6 milhão de encarcerados), mantendo o País na vergonhosa 3º posição dos que mais prendem no mundo[1], sendo que possui uma população inferior aos dois primeiros colocados.
Mas o número mais significativo nesse levantamento é o que diz respeito aos que estão presos sem julgamento. Ainda de acordo com o CNJ, 337 mil pessoas, ou seja 41,5% da população carcerária do país, é composta de presos sem julgamento. O problema é que o tempo de prisão para os chamados presos provisórios[2] tem alcançado médias de 90 dias sem julgamento, mas os casos, como o do motorista acima, levou 18 meses para ser definido[3]. Há milhares de “presos provisórios” que estão há anos atrás das grades.
Com uma das polícias mais violentas[4] do mundo e sendo o País mais desigual do planeta[5], esses números do sistema prisional mostram que há uma verdadeira guerra contra os mais pobres, em particular contra os jovens[6].
Com dados de 2017, temos também que, entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos[7], contra 37, 22% de brancos[8]. Cerca de 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, que é um indicador de baixa renda.
Então, o público alvo do nosso sistema penal é bem definido: 55% são jovens de até 29 anos; mais de 60% são negros e têm baixa escolaridade. Quanto aos homens, mais de 70% são acusados por tráfico ou crimes patrimoniais. Já em relação às mulheres[9], mais de 60% delas são acusadas por tráfico.
A situação se repete por todo os países capitalistas. Os Estados Unidos têm hoje, percentualmente, a maior população carcerária do mundo, basicamente composta de pobres, entre negros e migrantes latinos em sua maioria. O direito penal/criminal serve como instrumento de controle social, com impacto inclusive nas eleições.
Lá, como em todos os lugares em que o neoliberalismo ganhou força, há um crescente e forte deslocamento de recursos públicos de áreas sociais para a área de “segurança pública”. Não se deve investir em saúde pública, em ensino público, em assistência social, mas pode e deve o estado capitalista investir na implementação de políticas repressivas e punitivas. Eis o motivo pelo qual os orçamentos para o setor penitenciário, judiciário e policial são tão altos e jamais sofrem reveses. Esse é o caminho que o Brasil tem seguido.
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NOTAS:
[1] Segundo o World Prison Brief (cf. https://www.prisonstudies.org/), que provê uma base de dados de livre acesso a informações sobre os sistemas prisionais ao redor do mundo, o Brasil teria um nível de ocupação de sua capacidade (oficial) de aprisionamento ultrapassada em 67,6%, sendo o 43º no mundo. Além disso, o número de presos x população, alcançaria a marca de 336 presos por cada 100 mil habitantes, deixando o país na 26ª posição no mundo.
[2] A prisão provisória também é uma das chamadas prisões cautelares, que ocorre durante a fase de investigação do inquérito policial. A lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, estabelece que o prazo da prisão temporária, seria de 5 (cinco) dias, prorrogável por mais 5 dias, e que o detento seria solto depois desses 5 dias caso não houver sido decretada sua prisão ‘preventiva’. A prisão preventiva, outra das cautelares. Esta não tem prazo pré-definido e pode ser decretada em qualquer fase da investigação policial ou da ação penal, teoricamente quando houver indícios que liguem o suspeito ao delito. De modo geral, a desculpa para seu pedido e decretação seria a de “proteção do inquérito ou processo, a ordem pública ou econômica ou a aplicação da lei”.
Na prática, é uma forma de manter alguém preso sem julgamento e ganhar tempo para investigações que, muitas vezes, não serão realizadas.
A explicação mais comum para justifica-la seria a de que, havendo ‘indício’ de um crime, a prisão preventiva evitaria que o réu continuasse a atuar fora da lei, ou atrapalhar o andamento do processo (geralmente por meio de ameaças a testemunhas ou destruição de provas), impossibilitar a fuga do acusado, para garantir que a pena imposta pela sentença seja cumprida. Só não conseguem explicar, a quantidade de pobres aguardando julgamento, por crimes sem violência, por tempo superior a qualquer pena que se pudesse imaginar.
[3] Em junho de 2019, o STJ mandou soltar um homem após mais de 4 anos sem julgamento. Cf.: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Concedida-liberdade-a-homem-preso-sem-julgamento-ha-mais-de-quatro-anos.aspx
[4] Na edição de 2019, do Atlas da Violência (Ipea), temos a seguinte informação: “Segundo os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes. Trata-se do maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país”
[5] Segundo o Relatório da Desigualdade Global (cf. https://wid.world/country/brazil/), da Escola de Economia de Paris, o Brasil é hoje o país democrático que mais concentra renda no 1% do topo da pirâmide.
[6] Segundo o mesmo Atlas da Violência (2019), em 2017, a taxa média nacional de homicídio de jovens era de 69,9 por 100 mil habitantes. cf: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf
[7] Enquanto 53,63% da população brasileira teria essa característica (IBGE).
[8] Enquanto são 45,48% na população em geral.