Direito Burguês!

Homem negro é liberado após 16 anos de prisão sem processo

Cícero, um homem negro e nordestino, ficou 16 anos preso sem nem mesmo ter processo instaurado contra si.

“Eu estava conversando com um cidadão quando uma viatura me abordou e falou que eu tinha cometido um crime. Nesse momento fiquei sem saber o que fazer. Não pediram nem identificação. Me colocaram dentro da viatura, me fizeram passar vergonha. As pessoas olhando para mim como se eu tivesse cometido crime mesmo. Eu falando que era inocente e eles rindo de mim, rindo da minha cara”.

Parece uma situação absurda, irreal, saída dos anais do livro de Franz Kafka “O Processo”. Nele um funcionário público de nome Josef K. é preso e sujeito a um longo processo judicial sem nem ao mesmo ser informado o que fez, nem o porquê está ali e quem o acusa. Kafka trabalha bem os absurdos existenciais em situação críveis, mas que, claramente, são pautadas em um mundo onde as regras não são exatamente iguais às nossas.

Cícero José de Melo, um homem negro de 47 anos de idade, foi solto na última semana após ficar de 16 anos preso sem processo algum instaurado contra si. Entrou com 32 anos de idade e saiu com 47 do sistema carcerário. Tendo em vista que a média da expectativa de vida do brasileiro, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), é de 76,6 anos, Cícero foi injustamente privado de viver, de forma plena e digna, mais de 20% de sua vida. Foram quase 5.500 (cinco mil e quinhentos) dias preso que Cícero passou privado de sua liberdade graças ao Direito Burguês e o Tribunal de Justiça do Ceará.

Kafka tem, sim, sua importância literária e “O Processo” continua sendo um livro, infelizmente, atual. Entretanto, na vida real, na vida do trabalhador, do pobre e daqueles que lutam diariamente pela própria sobrevivência, os livros de Kafka parecem rascunhos tímidos que falham em abarcar a crueldade do Direito Burguês. No livro, ao menos, é perguntado – antes da execução sem motivos da personagem principal, se ela seria inocente do que, supostamente, teria feito. Josef então responde seus algozes com a única reposta possível: “Inocente de quê?”. Franz Kafka falhou, assim, ao não prever a realidade cruel onde um homem brasileiro sofreria tudo – ou mais – que sua desafortunada personagem, visto que Cícero José nem mesmo a um processo judicial teve direito.

Poderíamos aqui discorrer sobre todos os institutos legais que poderiam ter sido utilizados à favor de Cícero. O artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988 e seus incisos garantistas, as partes do Código de Processo Penal que lidam com o tema, bem como mais uma seara de institutos da legislação brasileira. Acontece que, o Direito como instituto, é parte do processo de regulação e controle da sociedade de classes e não importa em que contexto o analisemos: historicamente, a lei está, esteve e sempre estará a serviço da classe dominante. E o interesse da classe dominante foi objetivado com a prisão de Cícero. Para eles os 16 anos que o homem passou na cadeia não representam nada além de uma melhora nas estatísticas de “combate à criminalidade” do governo Cearense, responsável pela prisão.

Desde 2005, Cícero José, até então um pedreiro, foi encarcerado junto aos outros quase 760.000 (setecentos e sessenta mil) presos do Brasil. “Fui transferido para Pirc no dia 1º de janeiro de 2009. Nunca tive visita. Eu vivi no abandono. Quem me confortava era Deus e meus parceiros de cela”, disse o homem em uma entrevista recente após sua soltura. Para ele, na realidade, o que aconteceu foi que o Estado, sem justificativa alguma – se é que exista alguma em si, o sequestrou por um crime que ele não cometeu. Não fosse um companheiro de cela com o qual Cícero confidenciou sua situação, ele não estaria solto até hoje. Não foi o Estado, não foi a Justiça, não foi ninguém além de um cidadão comum – um preso, que ao falar com seu próprio advogado sobre o ocorrido, acabou desencadeando e desmascarando essa cadeia de acontecimentos implausíveis da vida de Cícero e o colocando em liberdade.

Ao pesquisar sobre os possíveis processos abertos nas comarcas do estado, o advogado Roberto Duarte não encontrou nada com o nome de seu mais novo cliente. Desta forma requereu junto à direção da Penitenciária Industrial Regional do Cariri (Pirc) informações sobre a situação do detento. Para sua surpresa, foi respondido já com o alvará de soltura de Cícero. Para o Direito Burguês e sua burocracia, bastou um papel, uma análise que durou, provavelmente, quinze minutos ao estagiário da juíza corregedora responsável pela prisão para que um homem fosse absolvido de uma sentença inexistente que lhe manteve 16 anos preso.

Sabendo das condições dos depósitos humanos – que teimamos em chamar de prisões – estatais, é um milagre que o homem tenha sobrevivido para contar a história.  “Torna-se imprescindível o relaxamento da prisão do custodiado a fim de sanar a evidente ilegalidade da sua prisão, vez que não há informações, motivos que fundamentem sua manutenção em cárcere”, decidiu a juíza. A questão é: que prisão? Neste caso, conceitualmente, Cícero realmente está certo: não foi preso, foi sequestrado. Sequestrado pois alguns policiais tiraram do fundo de suas cabeças preconceituosas que o homem negro teria tentado matar alguém. Sequestrado pois os diretores prisionais e juízes corregedores tratam seus presos como números e ignoram a realidade individual dos casos que estão sob sua tutela.

Descaradamente o Tribunal de Justiça do Ceará publicou uma nota esquivando-se da própria responsabilidade. Disse que “o Judiciário pode ser acionado a qualquer momento pela defesa dos custodiados, seja por meio de advogado particular ou defensor público, ou pelas próprias unidades prisionais, para análise e deliberação de cada processo”. Que defesa? A defesa só é instaurada se houver processo judicial em andamento. Ao ser preso sem processo, além de tudo, Cícero foi privado de todas as outras garantias que o Direito, supostamente, o asseguraria. “No caso de Cícero José de Melo, essa comunicação ao Poder Judiciário só foi realizada nos dias atuais e, após retorno do Órgão Ministerial, foi determinada imediatamente a soltura dele”, continuou o TJCE. Sim, a soltura de Cícero foi determinada “imediatamente”, mas depois de 16 anos. O que resta é nos perguntar agora: Quantos Cíceros compõem a massa carcerária do estado penal brasileiro? Quantos Cíceros são vítimas do Direito Burguês e sua análise positivista e mecanicista do Direito? A resposta muito provavelmente é: mais do que podemos imaginar.

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