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Guerra dos golpistas contra a cultura mostra que a burguesia “brasileira” não é brasileira

Em seu livro Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (trad. R. Corbisier e M. Pinto Coelho, Paz e Terra, 1967) o argelino Albert Memmi descreve como opera, no colonizado, “o amor pelo colonizador e o ódio de si”.

A primeira tentativa do colonizado é mudar de condição mudando de pele. Um modelo tentador muito próximo se oferece e se impõe a ele: precisamente o do colonizador. Este não sofre de nenhuma de suas carências, tem todos os direitos, desfruta de todos os bens, beneficia-se de todos os prestígios; dispõe das riquezas e das honras, da técnica e da autoridade. Ele é, enfim, o outro termo da comparação, que esmaga o colonizado e o mantém na servidão. A ambição primeira do colonizado será igualar esse modelo prestigioso, assemelhar-se a ele até nele desaparecer.

A definição poderia se aplicar perfeitamente aos setores mais francamente golpistas de nossa burguesia, que voltaram a dar mostras de seu ódio pelo país e por sua cultura quando do incêndio do Museu Nacional, na noite do último domingo (2).

O Museu que perdemos

O Museu Nacional do Rio de Janeiro tem um caráter múltiplo – misto de biblioteca, museu de ciências naturais, museu artístico e histórico. Situado na Quinta da Boa Vista, o Paço São Cristóvão foi presente do rico comerciante Elias Antônio Lopes à família real portuguesa, quando a Côrte lusa mudou-se para o Rio de Janeiro em 1808. Foi a residência dos monarcas luso-brasileiros império adentro, até 1889, tendo abrigado a primeira Assembleia Nacional Constituinte da República em 1891. Ao longo do século 19, o edifício recebeu diversas reformas e ampliações que o tornaram uma das jóias neoclássicas de nossa arquitetura.

Seu caráter de museu de ciências naturais remete ao ambiente intelectual do Rio de Janeiro final do século 18, quando um grupo em torno do Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos e Sousa no Brasil e ao Conde de Linhares em Portugal deram início a um movimento iluminista local – sobretudo Frei Mariano da Conceição Veloso – autor da Flora fluminensis e editor da Casa Literária do Arco do Cego em Lisboa: talvez em seu conjunto a iniciativa brasileira mais próxima do enciclopedismo francês. Como se sabe, com o casamento de Maria Leopoldina de Áustria com D. Pedro I em 1817, a princesa trouxe em seu séquito naturalistas como o botânico Carl von Martius e o zoólogo Johann Baptist von Spix – que realizaram uma extensa viagem de pesquisas pelo Brasil narrada no célebre Reise in Brasilien. À mesma época, no ano anterior, acorrera ao Rio o grupo de artistas que viriam ao Brasil convidados por Lebreton para compor a chamada Missão Francesa, com nomes como Debret, Grandjean de Montigny e Taunay, que fundariam a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios – a nossa Academia de Belas Artes. Nesse contexto foi criado o Museu Real em 1818 – ainda no Campo de Santana. Após a constituinte republicana, em 1892, o já Museu Nacional seria transferido para o palácio de São Cristóvão, passando à guarda da então Universidade do Brasil (hoje UFRJ) em 1946.

Desnecessário pontuar as jóias históricas, artísticas e científicas que compunham o acervo da instituição bicentenária: desde as coleções dos naturalistas brasileiros do século 18, passando por uma belíssima brasiliana (coleção de livros raros sobre o Brasil), passando pelo Meteorito de Bendegó (o maior achado em terras brasileiras), até o crânio de Luzia, uma mulher negróide que viveu há 13 mil em Minas Gerais: nada menos que o fóssil de homo sapiens) mais antigo das Américas, que desafiou diversas teorias evolutivas e migratórias no final do século 20.

Não se trata portanto de um museu trivial: foi a residência da única família real europeia que habitou nas Américas, foi o berço institucional que assistiu ao nascimento de nossas artes e ciências. É parte constituinte ativa da cultura e da capacidade de emancipação brasileiras desde o tempo colonial.

Na noite de domingo, 2 de setembro de 2018, queimou-se todo esse precioso patrimônio, num voraz incêndio iniciado no terceiro andar e que se espalhou incontrolavelmente por todo o edifício de mais de 13 mil metros quadrados. A população atônita perguntava-se pelas causas de tal tragédia. Como podia um edifício e um acervo importante como esse ser tão suscetível às chamas, numa época de rigorosíssimas normas de prevenção e combate a incêndios? A resposta evidentemente não é simples, mas leva a uma causa comum: após o golpe de 2016, as verbas para a universidade e para a manutenção do próprio museu haviam sido drasticamente cortadas pelos golpistas. Nesse sentido, foi um crime praticado por Temer, o ministro da Educação Mendonça Filho et caterva. O orçamento anual do museu caiu de quase R$ 2 milhões 2010 para pouco mais de R$ 200 mil em 2017. Em 2015, antes do golpe, ainda era de cerca R$ 800 mil. Cabe lembrar ainda que na famosa reforma administrativa que fez com uma canetada no dia em que tomou posse como interino, Temer extinguiu o octogenário Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – decisão revertida após mobilização dos trabalhadores do órgão.

Uma tradição de autoimolação

Foi justamente Carl von Martius, presente na criação do Museu, o vencedor promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro logo após sua fundação em 1838: Como se deve escrever a história do Brasil com a tese do chamado “mito das três raças” (publicado em 1845), em que portugueses, africanos e índios se uniriam para formar uma cultura própria e única: a cultura brasileira. Foi o plano metodológico seguido por Varnhagen em sua seminal História geral do Brasil no final do século 19, e desenvolvida como teoria sociológica acabada por Gilberto Freire em Casa-grande & senzala, publicado em 1933.

Foi contra o tom nacionalista de Gilberto Freire que Sérgio Buarque de Hollanda escreveria seu virulento ensaio Raízes do Brasil em 1936, adotando o “mito das três raças” não como algo positivo, mas justamente como uma fusão do que supostamente haveria de pior na espécie humana. Os portugueses seriam desleixados semeadores de cidades caóticas, os africanos seriam músculos descerebrados, e os indígenas rebeldes insolentes. É evidente que se tratava de uma sublevação de Hollanda contra o nacionalismo do Estado Novo de Vargas, que se fundara sobre os escombros da revolução Constitucionalista que continha elementos separatistas de São Paulo. Tornou-se porém, em sua interpretação do Brasil, o livro de cabeceira de nossa elite intelectual uspiana: a detração nacional se tornaria o esporte acadêmico favorito de várias gerações de humanistas locais, mais empenhados em papaguear o último filósofo francês da moda que em construir uma cultura nacional independente do imperialismo. É um fenômeno bem descrito por Jessé Souza em seu já clássico A tolice da inteligência brasileira (Leya, 2015).

É o mesmo ethos colonizado que motiva não apenas a direita chucra golpista, mas grande parte da intelligentsia da esquerda pequeno-burguesa. Entretanto, enquanto a esquerda pequeno-burguesa pratica a autoflagelação ao lamentar a alienação e falta de capacidade de mobilização da classe trabalhadora (da qual evidentemente mantêm distância segura), a burguesia golpista busca não apenas detratar, mas também de destruir o Brasil ao máximo, como que numa punição por não sermos mais próximos do que eles acreditam ser uma nação civilizada. A ação de ambos é uma profecia auto-realizável: a esquerda pequeno burguesa pouco faz para mobilizar de fato a classe trabalhadora – que na verdade ou bem romantiza ou bem odeia –, e a nossa burguesia garante os meios para que nos tornemos o pior país do mundo – compatível com a imagem que eles têm.

O vício da análise desses masoquistas é evidente: sobrepõem o ideal de país – que julgam existir nas potências imperialistas – à realidade concreta do Brasil: rica, múltipla, plena de potenciais de desenvolvimento. Esquecem-se dos vícios e problemas de outros povos e endeusam-nos como se fossem raças e culturas superiores, sem perceber que eles próprios em sua alienação em relação à realidade material em que vivem é uma das causas do atraso nacional que tanto execram.

Há exemplos clássicos do famoso complexo de vira-lata – para usar o termo de Nelson Rodrigues tão caro a Lula. Quem não se lembra das fotos de crianças nos ombros de seus pais em atos coxinhas de 2015, empunhando cartazes em que exigiam a derrubada de Dilma para que pudessem voltar a ir à Disney? Numa linha complementar, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Temer, o general Sérgio Etchegoyen afirmaria em março desse ano: “nenhum de nós se incomoda de ser fotografado para passar na imigração dos Estados unidos para ir comprar enxoval do neto ou dos filhos, ou para levar os filhos ou netos para a Disney” – ao justificar as revistas que o exército vinha impondo às comunidades do Rio de Janeiro, sob intervenção militar. Interessante saber pelo que Jair Bolsonaro (PSL) passou nos aeroportos estrangeiros quando foi aos Estados Unidos bater continência para a bandeira daquele país.

A relação dos direitistas brasileiros com a Flórida já se tornou um clássico do provincianismo brega. Como se sabe, o estado norte-americano com ampla colonização latina é um dos destinos favoritos dos direitistas não apenas para temporadas de férias, mas também para imigração. Joaquim Barbosa, por exemplo, ministro do Supremo Tribunal Federal responsável pela condensação sem provas de José Dirceu, possui um apartamento em Miami.

Com tantos patrícios na Flórida, os coxinhas não precisam se dar ao trabalho sequer de aprender a língua inglesa. É o que atesta a pronúncia balbuciante de Sérgio Moro – o Mazzaropi da Odebrecht – que teria cursado em Harvard seu doutorado em apenas dois anos, mas que não consegue falar Massachussetts até hoje. Talvez tenha passado uma temporada em Orlando, e não no norte do país.

O pastor evangélico Deltan Dallagnol – o procurador golpista, autor do Powerpoint mais ridículo dos anos recentes afirmou categoricamente em 2016: “Quem veio de Portugal para o Brasil foram degredados, criminosos. Quem foi para os Estados Unidos foram pessoas religiosas, cristãs, que buscavam realizar seus sonhos, era um outro perfil de colono”.

Na mesma linha “antropológica”, o general Hamilton Mourão Filho – que afirmou se se estava organizando um golpe militar no Brasil há um ano – declarou em agosto que temos uma “herança do privilégio” ibérica, a “malandragem” do africano, e a “indolência” da cultura indígena. Para o militar, os problemas do país seriam decorrentes do “DNA do brasileiro”, já que não somos nenhuma “raça pura”. Percebe-se aqui que o “mito das três raças”, para o general, é pretexto para uma política eugenista – similar à praticada pelos nazistas contra negros, judeus e comunistas na 2ª Guerra.

Há ainda a intensa campanha promovida pela burguesia contra o futebol nacional nos campeonatos de 2014 e 2018. No primeiro, criou-se a ideia de que o time da Alemanha havia merecido a vitória de 7 a 1 por ter se preparado com afinco, por jogarem bom futebol e… por ser alemão. Em 2018, a mesma equipe com igual preparo confirmou o que já se sabia desde 2014: o futebol da seleção alemã era sofrível. Em 2018, a imprensa burguesa em geral já atacava de antemão Neymar e os demais jogadores. Até o cabelo do rapaz foi criticado. Tudo isso para camuflar o fato de que o futebol brasileiro é o melhor do mundo há décadas, e para oprimir e desestimular a estima que a população de nosso país tem pelo esporte bretão: é não apenas uma importante atividade de massas, mas também um alento de ascensão para milhões de jovens pobres que sonham em se tornar jogadores.

Evidentemente, os empertigados analistas colonizados de nossa civilização omitem que estão a serviço justamente do causador de nossa miséria: o imperialismo. São as relações de exploração, é a luta de classes e as relações de produção estabelecidas entre as grandes potências globais e a América Latina as causas do analfabetismo, da fome, das más condições de vida. É a resistência de nossa burguesia à realização de ampla reforma agrária e de reformas urbanas que achata o nosso mercado e precariza as relações de trabalho. Os efeitos do golpe de estado não serão outros senão o arrasamento de nossa população e o achatamento de nossa cultura.

A chama do obscurantismo

O incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista ofereceu um novo espetáculo aterrador do ódio que a direita em geral e a nossa burguesia em particular nutrem pelo Brasil e por sua cultura. Preferem o obscurantismo a reconhecer a perda que sofremos.

Começou pelas redes sociais e nas caixas de comentários dos sites de notícia, com os muares de sempre zurrando o que lhes vinha à mente: Um certo Leandro, certamente preocupado com nosso crescente déficit habitacional, desabafou: “Eu tô cagando pra museu, eu quero uma casa pra morar, poder dar uma vida digna pra minha família, o governo não tem que gastar meu imposto com museu nenhum”. Thiago queixou-se: “O país na merda e o povo pensando em museu. Vamos pensa [sic] em um Brasil melhor porque quem vive de passado é museu”. Já um tal de Max expressou o alívio geral: “Um gasto a menos nos cofres públicos”.

Não tardaria até que se ouvissem relinchos também na alta estrebaria da Côrte. O Ministro-Chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, o deputado golpista Carlos Marun, chamou aqueles que lamentavam o calamitoso incêndio de “viúvas”. Estas na verdade “não amavam tanto assim o Museu”, já que ele não vira “ninguém destacando a história do Museu” antes de sua destruição. É evidente: Marun deve se informar exclusivamente pela imprensa golpista.

O nazista Jair Bolsonaro, por sua vez, aproveitou a oportunidade não para expor sua política cultural, mas justamente para reiterar a ausência dela: “Já tá feito, já pegou fogo, quer que eu faça o quê?”. Na verdade, dos 13 programas de governo apresentados por aqueles que concorrem nas eleições presidenciais promovidas pelos golpistas, quatro não trazem nenhuma proposta para cultura os de Cabo Daciolo (Patriota), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL) e Vera Lucia (PSTU). Aparentemente, a chama do obscurantismo já vem destruindo nosso patrimônio há tempos.

Como se vê, nossa classe dominante e seus representantes políticos é completamente colonizada. Nossa burguesia tem verdadeiro asco do Brasil e alavanca todos aqueles que se dediquem a detratá-lo. Essa lógica alienada, apartada da realidade, é a que os leva a preferir antes associar-se ao imperialismo que a elementos da esquerda que investem na conciliação de classes. À primeira vista, pode parecer que essa elite preferiria que vivêssemos num país só de brancos falando inglês.

Porém, o mais provável é que seu comportamento seja aquele descrito por Michal Kalecki em 1942, em Aspectos políticos do pleno emprego. Segundo esse economista, mesmo em detrimento do próprio desenvolvimento social e econômico de seu país, os “capitães da indústria” não aceitam a interferência do governo no problema do emprego como tal, agem contra o investimento público e o consumo subsidiado, não gostam das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego. Enfim: as classes dominantes de países atrasados são as responsáveis por mantê-los no atraso, de modo a permanecerem no comando enquanto eles próprios sonham em pertencer à elite dos países centrais. Qual seria a sua desilusão ao constatarem que naqueles círculos são tratados como novos-ricos, ou “burgueses fidalgos”…

 

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