Sem dúvida, Vladimir Vladimirovitch Maiakovski, está entre os maiores poetas do século XX. Nascido na cidade de Baghdati no Império Russo em 19 de julho de 1893 e morto há 90 anos, em Moscou, já capital da União Soviética, em 14 de abril de 1930. Além de poeta, Maiakovski possui uma grande obra de dramaturgia, sendo o principal nome do futurismo na literatura.
Sua obra está intimamente ligada ao desenvolvimento da revolução na Rússia, por isso ganhou a acunha de “poeta da revolução”. Foi militante bolchevique aos 15 anos de idade tendo sido preso pela polícia czarista por três vezes.
Sendo parte do grupo fundador do chamado cubo-futurismo russo, está entre os principais poetas das vanguardas literárias do início do século passado. Todos os futuristas aderiram à revolução de bolchevique vitoriosa em outubro.
Após a Revolução, trabalhou para o Estado Operário. Confeccionou cartazes de propaganda durante a Guerra Civil, participou de campanhas governamentais e criou a revista LEF (de Liévi Front, Frente de Esquerda), em 1923, que agrupou artistas de esquerda.
Maiakovski se suicidou com um tiro em 1930. Muito se especula sobre os motivos políticos de seu suicídio e até mesmo de ter sido forjado pela burocracia stalinista que procurava pressionar os antigos artistas militantes para que se adequassem aos modelos impostos pela oficiais do Estado dominado pelo stalinismo.
O grande revolucionário russo, Leon Trótski, dedicou a Maiakovski um belíssimo texto por ocasião de sua morte que reproduzimos na íntegra aqui. Leia também, após o artigo de Leon Trótski, o poema “Nuvem de Calças” que, embora não seja um poema notoriamente político, é considerado pelo próprio Trótski como o maior poema de Maiakovski.
“O Suicídio de Maiakovsky* (1930)
Blok (1) reconhecera enorme talento em Maiakovsky. Pode-se dizer, sem exagero, que havia em Maiakovsky reflexos de gênio. Não era, entretanto, um talento harmonioso. Onde se poderia, aliás, encontrar harmonia artística neste decênio de catástrofes, no limite não-cicatrizado de duas épocas? Na obra de Maiakovsky, os cumes despontam ao lado dos abismos, manifestações de gênio explodem ao lado de estrofes banais, às vezes mesmo de uma vulgaridade gritante.
Maiakovsky quis, sinceramente, ser revolucionário, antes mesmo de ser poeta. Na realidade, ele era acima de tudo um poeta, um artista, que se afastou do velho mundo sem romper com ele. Somente depois de Outubro, procurou e, em certa medida, encontrou um ponto de apoio na Revolução. Até o fim, porém, não se confundiu com ela, porque não se lhe achegou no duro período dos anos de preparação clandestina. Maiakovsky, geralmente, não era só o cantor, mas também a vítima de uma época de crise, que, preparando os elementos de nova cultura com uma força até então desconhecida, passa mais lentamente do que se precisaria para assegurar a evolução harmoniosa de um poeta, de uma geração de poetas, que se entregam à Revolução. Deve-se observar ai a ausência de harmonia interior, que se manifestava no estilo do poeta, a insuficiente disciplina do seu verbo e o excesso de suas imagens: a quente lava do patético e a incapacidade de ligar-se à época, à classe, o gracejo de mau gosto, pelo qual procura – ao que parece – proteger-se contra todo golpe do mundo exterior. Supunha-se, às vezes, que se tratava de hipocrisia artística e também psicológica. Não! As cartas escritas, antes de sua morte, repetem o mesmo som: que significa a fórmula lapidar “o incidente está encerrado” pela qual o poeta risca o último traço?
O lirismo e a ironia serviam ao romântico retardatário Henri Heine como o patético e a vulgaridade servem ao futurista retardatário Maiakovsky: a vulgaridade opõe-se ao patético, da mesma forma que o lirismo à ironia, para defendê-lo .
O aviso oficial, colocado pelo Secretariado (**) numa linguagem de protocolo jurídico, apressa-se a informar que esse suicídio “não tem nenhuma relação com as atividades sociais e literárias do poeta”. O que vale dizer que a morte voluntária de Maiakovsky não se relaciona com a sua vida ou, ainda, que a sua vida nada tinha em comum com a sua criação revolucionária e poética. É transformar a sua morte num fato fortuito. Isso não é verdadeiro nem necessário nem… inteligente! “A barca do amor partiu-se na vida corrente”, escreveu Maiakovsky, nos seus últimos versos. Em outras palavras, “suas atividades sociais e literárias” cessaram de elevá-lo acima das confusões da vida quotidiana, para colocá-lo ao abrigo de golpes insuportáveis que o atingiam. Como escrever então “não tem nenhuma relação”?
A doutrina oficial, que hoje encontramos sobre literatura proletária, no campo literário, é a mesma que existe no terreno econômico: baseia-se numa total incompreensão dos ritmos e dos prazos da maturação cultural. A luta pela cultura proletária – alguma coisa como a coletivização total de todas as conquistas da humanidade no quadro do plano qüinqüenal – apresentava, nos primórdios da Revolução de Outubro, um caráter de idealismo utópico. E eis precisamente por que Lênin a ela se opôs, da mesma forma que o autor destas linhas. Ela, porém, se tornou nestes últimos anos simplesmente um sistema de comando burocrático – e de destruição da arte. Proclamaram-se clássicos da literatura pseudoproletária os fracassos da literatura burguesa do gênero de Serafimovitch, Gladkov (2) & Cia. Batizou-se uma flexível nulidade do tipo de Averbach (3) como o Belinsky (4)… da literatura proletária(!). A alta direção do beletrismo encontra-se nas mãos de Molotov, negação de todo espírito criador da natureza humana, que se fez artista (o adjunto de Molotov é Gussev (5) em vários campos, exceto na arte. Essa escolha dá toda a imagem da degenerescência burocrática das esferas oficiais da Revolução. Molotov e Gussev elevaram à categoria de beletrismo uma literatura desfigurada, pornográfica, de cortesãos revolucionários, obra de um coletivo anônimo.
Os melhores representantes da juventude proletária, cuja vocação é preparar as bases de nova literatura e de nova cultura, caíram sob as ordens de pessoas que converteram em critério da realidade a sua própria falta de cultura.
Sim, Maiakovsky é o mais viril e o mais corajoso de todos os que, pertencendo à última geração da velha literatura russa e ainda por ela não-reconhecidos, procuraram criar laços com a Revolução. Sim, ele desenvolveu laços infinitamente mais complexos que todos os outros escritores. Um dilaceramento profundo nele permanecia. Às contradições, que a Revolução comporta, sempre mais penosa para arte, na busca de formas acabadas, somou-se, nos últimos anos, o sentimento do declínio a que o conduziram esses burocratas. Maiakovsky, pronto para servir à sua época, pelos mais modestos trabalhos quotidianos, não podia aceitar uma rotina pseudo-revolucionária. Era incapaz de ter plena consciência disso, no plano teórico, e, por conseguinte, de encontrar o caminho para superá-la. Sobre si mesmo, disse que “não está à venda”. Por muito tempo e vigorosamente, ele se recusou a entrar no kolkhoz administrativo da pretensa literatura proletária de Averbach. Tentou fundar, sob a bandeira do LEF (6), a ordem dos ardentes cruzados da revolução proletária para servir à causa com toda a consciência e não sob ameaças. O LEF, naturalmente, não tinha força para impor o seu ritmo aos 150.000.000: a dinâmica dos fluxos e refluxos da Revolução era muito pesada, muito profunda. No mês de janeiro deste ano, Maiakovsky, vencido pela lógica da situação, fez grande esforço para aderir, finalmente, à Associação Soviética dos Poetas Operários (VAPP), dois ou três meses antes de matar-se. Essa adesão não lhe trouxe nada. Retirou-lhe, pelo contrário, alguma coisa. Quando êle liquidou suas contas, tanto no plano pessoal quanto no político, e movimentou seu barco, os representantes da literatura burocrática, aqueles que estão à venda, exclamaram: “inconcebível, incompreensível”. Demonstravam, assim, que não compreendiam tanto o grande poeta Maiakovsky como as contradições da época.
A Associação dos Poetas Operários (VAPP), criada a partir dos progroms contra núcleos literários autenticamente revolucionários e vivos, e submetida à sujeição burocrática, caiu ideologicamente no abandono e aparentemente não conseguiu unidade moral: na partida do maior poeta da Rússia soviética, só houve como resposta o embaraço oficial: isso “não tem nenhuma relação. . . ” É pouco, realmente pouco, para quem quis edificar nova cultura dentro do mais curto prazo.
Maiakovsky não se tornou nem podia tornar,se o fundador da literatura proletária pela mesma razão que não se pode edificar o socialismo num só país (***). Nos combates do período de transição, ele era o mais corajoso combatente do verbo, e tornou-se um dos mais indiscutíveis precursores da literatura que se dará à nova sociedade.
Notas
1. Alexander Blok (Александр Александрович Блок), (16 de novembro de 1880 – 7 de agosto de 1921), foi provavelmente o mais talentoso poeta lírico que a Rússia produziu após Alexander Pushkin. Trotsky em sua obra “Literatura e Revolução” afirmou que: “Na verdade, Blok não é um dos nossos, mas ele caminhou em nossa direção. E, ao fazer isso, ele falhou. Mas, o resultado desse seu impulso produziu a obra mais significativa de nossa época. Seu poema “Os Doze” permanecerá para sempre.
* Tradução e notas do sítio marxists.org. Mantivemos algumas palavras com a grafia da fonte como Trotsky e Maiakovsky, com “y” ao invés de “i”
** Trata-se do Secretário-Geral do Partido, isto é, de Stalin.
*** Trotsky, opondo-se a Stalin, sustentava que, sendo o socialismo uma ordem econômica internacional, o destino da República Soviética dependeria do curso da revolução na Europa, nos países mais adiantados. Essa idéia dominava os bolcheviques até o início da década de 20, a enfermidade e a morte de Lênin. O próprio Lênin (A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky) acentuava que a Rússia não podia fazer mais do que fez: o seu desenvolvimento ulterior dependeria do curso da revolução mundial. Trotsky apresentaria a degenerescência burocrática da União Soviética – que se exprimia no stalinismo – com a comprovação do seu argumento. A revolução, na Rússia, apenas plantava os alicerces para a construção do socialismo. O stalinismo resulta, precisamente, do cerco imperialista, que isolava o primeiro Estado operário, num país atrasado.
2. Gladkov, Feodor Vasilyevich (1883 1958): autor russo.
3. Leopold Averbach (1903-193?): crítico literário, foi uma figura destacada da Associação Russa de Escritores Proletários (AREP) até 1932, quando se denunciou o averbachismo e a AREP foi substituída pela União de Escritores Soviéticos. Ironicamente, foi vítima dos expurgos acusado de “trotskista.
4. Belinsky, Vissarion (1811-1848): Crítico literário russo.
5. Gussev, S.I. (1874-1933): Militante a partir de 1899, bolchevique e revolucionário profissional. Secretário do Comitê Militar Revolucionário de Petrogrado e com responsabilidades políticas no Exército Vermelho.
6. LEF: abreviatura de Levy Front Iskustv (Frente Esquerdista das Artes), título de uma revista futurista que apareceu em Petrogrado em 1923 e da tendência artística que se reuniu em torno dela. Foi dirigida de 1923 a 1925 por Maiakovsky.
“A NUVEM DE CALÇAS
A mente vossa,
Em momento miolo divagando
Como médio lacaio em poltrona sebosa
Vou atiçar com o coração sangrando:
Rirei até fartar, mordaz e desfaçado.
Na alma não tenho uma só cã
Ou ternura senil.
Aturdo o mundo com o poder da minha voz,
E avanço – sedutor,
Nos meus vinte e dois anos.
Ternos amantes!
Vós competis com o violino
E com timbales competem os boçais.
Mas como eu não podeis fazer?
Ser todo lábios, sem pesado corpo?
Das vossas salas de fausto,
Do clube angelical membros preclaros,
Vinde escutar, vinde saber.
Vinde, vós, que lábios folheais
Como a cozinheira um livro de receitas.
Se quiserem,
Serei apenas carne louca
E, como o céu, mudarei de tom,
Se quiserem,
Serei impecavelmente delicado,
Não serei homem, mas uma nuvem de calças!
Não acredito que haja uma Nice florida!
Hoje de novo canto a gloria
Dos homens que o pecado fez malignos
E das mulheres gastas como um lugar comum.
I
Acham que é um delírio da matéria?
Mas isto aconteceu:
Aconteceu em Odessa.
Disse Maria: “Virei às quatro”.
Mas deram as oito.
E deram as nove.
E deram as dez.
E a tarde da janela fugiu para o noturno horror
Umbroso e dezembrino.
Nas suas costas caducas riem e galhofam candelabros.
Ninguém me poderia agora reconhecer:
Este gigante musculoso, que geme e se contorce.
Que pode querer tal colosso?
Mas o colosso que bem quer!
Que importância tem ser de bronze
Com o coração de ferro frio!
De noite quero ocultar o meu metal
Em algo suave e feminil.
E eis que desmarcado me debruço à janela,
Fundindo o vidro com a testa.
O amor virá ou não virá?
Será grande ou pequeno?
Como pode ser grande num brutamente destes?
Terá de ser pequeno, um amorzito dócil,
Que se assusta com as buzinas dos carros
E adora as campainhas dos elétricos.
Cada vez mais o rosto afundo
No semblante bexigoso da chuva,
E aguardo, salpicado pelo fragor da rua.
A meia-noite, com uma faca, chegou
O dia apunhalou – e pronto!
E caíram as dozes badaladas
Como do cepo cabeças degoladas.
Nos vidros se juntavam cinzeas gotas de chuva,
Formando uma careta deformada,
Uivando quais quimeras do Notre Dame de Paris.
Maldito! Não te chega?
Prestes a boca soltará um grito!
Escuto: silencioso, como um doente de cama,
Ergueu-se um nervo.
Depois caminhou lentamente,
A seguir correu, convulsivamente, cauteloso.
Agora, com mais dois,
Dança um fandango insano.
Cai no andar de baixo um bocado de estuque.
Os nervos – grandes, pequenos – muitos! –
Saltam como loucos,
E já estão de pernas cansadas.
E a noite penetra-me no quarto:
Não posso abrir os olhos de lodo pesados.
Rangem as portas de repente
Como se o hotel estivesse a bater o dente.
Tu entraste, brusca como um desafio,
Torturando as luvas de camurça,
E disseste: “Sabes? Vou-me casar”.
Está bem, casa.
Que queres que faça?
Hei-de me recompor.
Não vês como estou calmo?
Como o meu pulso parece dum defunto?
Lembras-te como costumava dizer:
“Jacj London, dinheiro, amor, paixão” –
E eu só te via a ti – Gioconda pra roubar!
E roubaram por fim.
De novo entrarei no jogo apaixonado,
Iluminando a curva do meu cenho.
Então? Nunca casa queimada
Às vezes vivem vagabundos sem casa!
Ris-te? “Tens menos esmeraldas de loucura
Do que há copecas no bolso dum mendigo”.
O destino de Pompeia não olvides
Depois de irritarem o Vesúvio!
Eh! Senhores! Amantes de sacrilégios,
Crimes e massacres, – vistes o mais cruel
Dos meus rostos quando estou absolutamente calmo?
E sinto que eu próprio me sou pouco.
E de mim alguém se tenta rir.
Está? Quem é? Mamã? Mamã!
Teu filho está belamente enfermo!
Mamã! Tem fogo no coração.
Diga às manas, Liúda e Ólia,
Que não tenho para onde ir.
Cada palavra, mesmo uma graça,
Que jorra da boca ardente,
Salta como uma rameira nua
Dum bordel incendiado.
As pessoas fungam: cheira a queimado.
Chamaram a brigada cintilante.
De capacete!
Não se pode entrar de botas!
Digam aos bombeiros:
Só com caricias se pode apagar um coração a arder.
Eu próprio deitarei dos olhos catadupas de lágrimas.
Deixem-me descansar.
Salto? Não salto? Salto?
As lágrimas caíram.
Não se pode escapar ao coração!
No rosto ardente, dos lábios gretados
Um beijo carbonizado quer erguer-se.
Em chamas, figuras de cifras e palavras
Saltam do crânio como crianças
Duma casa a arder, com o mesmo terror
Com que se ergueram ao céu
Braços acesos no convés do Lusitânia.
Ante a mente tremendo no silêncio do lar,
Um brilho de cem olhos explode do refugio.
O meu último grito – pelo menos tu
Brada que estou a arder pelos séculos afora.
II
Glorificai-me! Que são a meu lado os grandes homens?
Em tudo o que até agora foi criado ponho o meu nihil.
Nunca mais quero ler nada.
Livros? Mas livros para quê?
Dantes pensava que os livros eram feitos assim:
O poeta chegava, entreabria ligeiramente a boca,
E começava a cantar, inspirado simplório –
E já estava! Mas acontece que antes de começar a cantar,
Se põe a caminhar, incitado com a agitação,
E revolve-se no lodo do coração o néscio peixe da imaginação.
Entretanto fervem e saltam as rimas
De amor aos rouxinóis e outras bagatelas,
E a rua se contrai em pantomina –
Não tem com quem cantar e discorrer.
Erguem de novo altivas cidades-torres de Babel,
Para que Deus a escombros a reduza,
Os termos baralhando.
A rua aguentava silenciosa o suplício,
A ponto de à boca lhe assomar um grito.
Com seu brado sublevado
Se apressavam inchados táxis e ossudas caleças
E peões lhe pisam o peito mais do que a tísica.
A cidade fechou seus caminhos com a sombra.
E quando, porém, vomitou sua estreitez na praça,
Empurrando os que chegam à porta da igreja-garganta,
Pensava: os coros dos arcanjos Deus, pilhado, vai castigar!
Mas a rua sentou-se e disse: “Vamos morfar?”
Os Krupps fazem as cidades com o cenho franzido
E a boca cheia de palavras como mortos:
Só duas vivem, engordando: “sacana”
E ainda outra qualquer parece que – “sopa”.
Os poetas amolentados com soluços e choros,
Abandonaram as ruas de melena ao ar:
“Como se pode cantar com tais palavras a mulher,
o amor, e as florinhas orvalhadas?”
Atrás dos poetas, a nação toda: estudantes, prostitutas, capazes.
Senhores! Parem! Não sois mendigos,
Nada de pedir esmola!
Nós, os fortes, de passos largos,
Não devemos ouvi-los. Esmagai-os – a esses,
Que, como suplemento gratuito, se agarram
A todas as camas de casal.
Haverá que rogar-lhes com humildade:
“Ajudai-me!” ou pedir-lhes hinos, ou oratórios?
Nós próprios criamos abrasados hinos
No fragor das fábricas e dos laboratórios.
Que me importa Fausto, deslizando com Mefistófeles
Em que foguetões feéricos no sonho célico encerado!
Eu sei que um prego no meu sapato
É mais terrível que a imaginação de Goethe!
Eu, o de lábios dourados, cujas palavras
Renovam o espírito e festejam o corpo, vos digo:
A mais insignificante partícula de vida
Tem mais valor que tudo o que escrevi.
Oiçam! Predica convulso e gemebundo
O retorcido Zaratustra de hoje!
Nós com o rosto como um lençol amarrotado,
Lábios caídos de ansiedade como lustres,
Nós, prisioneiros da cidade-gafaria,
Chegada pelo oiro e pelo lixo, –
Somos pulcros que todo o resplendor veneziano
Banhado pelo sol e o oceano.
Não me ralo que Homero e Ovidio
Não sejam, como nós, marcados das bexigas.
Eu sei que o sol se eclipsaria ao ver
O oiro que há nas nossas almas!
Melhor que orações são artérias e músculos.
Não pediremos esmolas ao tempo!
Nós, cada um de nós, temos na mão
As rédeas de todos os mundos!
Foi isso que trouxe ao Gólgota auditórios de Kiev,
Odessa, Moscovo e Petrogrado,
E não houve um só que não gritasse:
“Crucificai-o, crucificai-o!”
Mas para mim, o povo, mesmo os que me insultaram, –
É quem mais amo.
Viram como o cão lambe a mão que lhe bate?
Eu, escarnecido pela gente de hoje,
Como uma anedota obscena e sem fim
Vejo como caminha pelas montanhas do tempo
Alguém que nada vê.
Onde o olhar humano se detém hesitante,
À cabeça das hordas famulentas,
Coroará de espinhas de revolta o ano dezasseis.
Eu sou aqui seu precursor; eu estou com os que sofrem;
Crucifico-me em cada lágrima derramada.
Já não se pode perdoar nada.
Consumi a alma, onde a ternura crescia
E isso é mais difícil que tomar bastilhas ao milhar!
E quando anunciarem a chegada da revolução e saírem
Ao encontro do salvador, eu arrancarei a alma para vós,
Abri-la-ei para que seja maior! –
E hei-de levá-la ensanguentada como um pendão.
III
Ai, para que é isto? Donde vem isto?
Na alegria clara os punhos sujos e cerrados.
Chegou e cobriu a cabeça em desespero
Com a ideia duma casa de loucos.
E como no naufrágio de um couraçado
Com espasmos de afogado
Os homens se lançam nas escotilhas abertas –
Através do seu olho apavorado e aberto
Saltou Burliúk de cabeça perdida,
Quase sangrando e choroso, saiu, ergueu-se,
Aproximou-se e com uma ternura inesperada num obeso,
Pegou e disse: “Belo!”
Belo, se na blusa amarela a alma se oculta dos olhares!
Belo, se ante a dentuça do patíbulo se grita:
“Bebam cacau Van Guten!”
E esse segundo estrondoso de fogos de Bengala,
Eu não o trocaria por nada, nem por… não…
E de entre o fumo do cigarro,
E do vinho e do rum,
Severiánin ergueu seu ébrio rosto.
Como se atreve a dizer-se poeta
E, estupidamente, gorjear como um pardal?
Hoje é preciso com manopla
Quebrar o crânio ao mundo!
Vós que só tendes uma ideia – “estética” –
Vejam como eu me divirto,
Rufia de rua e batoteiro!
De vós, amolecidos de amor,
Que vertestes lágrimas durante séculos,
Fujo com o sol por monóculo no olho bem aberto.
Ataviado de maneira incrível, irei pelo mundo
Para agradar e encantar, e à frente
Levarei Napoleão em trela de rafeiro.
Todo mundo cairá como uma mulher,
Agitando as carnes para se entregar:
As coisas animam-se – e os lábios das coisas
Hão de murmurar: “Lindo, lindo, lindo!”
De súbito, nuvens negras e demais neblinas
Ergueram ao céu um boliço sem fim,
Como se os operários de todo o mundo se erguessem
E declarassem ao céu uma greve furiosa.
Da nuvem saiu feroz trovão,
As enormes narinas em fúria assoou,
E o rosto celeste um instante se torceu
Com a careta severa do férreo Bismarck.
E alguém enredado nos nuviosos caminhos
Estendeu as mãos para o café – parecia feminino,
E tão terno, como uma carreta de canhão.
Acham que foi o sol carinhosamente
Que acariciou o rosto do café?
É de novo o general Galifet a fuzilar sublevados.
Tirai, transeuntes, as mãos dos bolsos –
Pegai em pedras, bombas e facas,
E quem não tiver mãos venha dar cabeçadas!
Venham, famintos, suados, submissos,
Sujos e mordidos das pulgas!
Venham! Que segunda-feira e terça sejam pintadas
Festivamente de sangue!
Que a terra espezinhada recorde quem a quis ultrajar!
A terra, gorda como as amantes que Rotschild largava!
Para que as bandeiras ondeiem na febre do tiroteio,
Como em todas as festas normais –
Mais alto ergueu, candeeiros, os corpos pendentes dos mercadores.
Blasfemei, implorei, insultei, subi atrás de alguém
Para lhe deitar o dente.
No céu rubro como a Marselhesa,
O ocaso estremecia ao morrer. Que loucura!
Não vai acontecer nada. A noite virá, morderá e devorará tudo.
Vejam – o céu de novo suborna
Com um punhado de estrelas salpicadas de traição.
Vem e, como Mamai, celebra a vitória,
Refastelado sobre a cidade.
Não rasgaremos com a vista esta noite negra como Azef!
Anda pelos recantos das tabernas
Regando com vinho a alma e a toalha e vejo:
A um canto uns olhos redondos
Com a ternura dos olhos da Virgem Maria.
Para quê fazer dádiva dessa aureola vulgar
A esta gentalha que grita na taberna?
Não vês que de novo ao escarnecido do Gólgota
Preferem Barrabás!
Talvez assim tenha sido ordenado –
Nesta pocilga humana o meu rosto não tem nada de novo.
Eu sou, talvez, o mais belo de todos os teus filhos.
Faz aos amolecidos pelo prazer,
Que a hora da morte chegue prestes,
E que os filhos, os que devem nascer, os rapazes
– sejam pais, e as raparigas – fiquem grávidas.
E que os recém-nascidos cresçam com cabelos brancos
Dos magos e a visão – e seus filhos batizarão com nomes dos meus versos.
Eu, que glorifico Inglaterra e as máquinas, é provável
Que num evangelho mais useiro
Seja o apóstolo décimo terceiro.
E quando a minha voz soar obscena –
Hora após hora, o dia inteiro
Talvez Jesus Cristo venha cheirar
Os nã0-me-esqueças da minha alma.
IV
Maria! Maria! Maria! Abre, Maria!
Não me deixes na rua! Não queres?
Esperas que fique de face bichosa,
Provado por todas as mulheres,
Insípido, e venha e diga, sem dentes,
Que hoje “sou duma castidade espantosa”?
Maria, vês? Já começo a andar curvado.
Pelas ruas a gente sacode a banha de quatro papadas,
Esbugalha os olhos, gastos por quarenta anos de uso, –
E troca sorrisos, porque eu levo nos dentes
– outra vez! – os restos das caricias de ontem.
A chuva aborrecia os passeios,
Dos charcos compacto ladrão,
Molhado, lambendo o cadáver lapidado da rua,
E nas pestanas brancas – sim! –
Nas pestanas de gelados carambanos,
Lágrimas dos olhos – sim! –
Dos olhos baixos dos algerozes.
A chuva encharcando o rosto dos passantes,
Enquanto nas carruagens brilhavam nédios atletas:
A gente rebentava de comer por todos os lados,
E a banha saía-lhes dos poros,
Em túrbidos riachos escorria da carruagem
Junto com os restos das almôndegas dos velhos tempos.
Maria! Como havemos de fazer entrar nessa orelha sebosa
Uma palavra meiga?
A ave vive de canções, canta, faminta e sonora,
Mas eu sou homem, Maria, simples,
Na suja mão de Présnaia cuspido uma noite tísica.
Maria, queres-me assim? Abre, Maria!
Com os dedos crispados apertarei a garganta de ferro
Da campainha! Maria!
Enfurecem-se os currais das ruas.
No colo ferido os dedos cintos.
Abre! Dói! Vês?
Tenho os olhos cheios de alfinetes de chapéus de mulher!
Abriu. Querida! Não te assustes
Que no meu costado de louco
Haja sentadas mulheres de saias molhadas, –
É uma carga que levo comigo pela vida afora:
Milhões de amores puros e enormes
E milhões de milhões de pequenos amores sujos.
Não temas que de novo caia na infidelidade habitual,
Me atire a milhares de caras bonitas, –
As amantes de Mayakovsky são uma dinastia
De rainhas entronizadas no coração dum louco.
Maria, anda cá! Nua e sem pudor,
Ou com um tímido tremor,
Mas dá-me o encanto dos teus lábios que nunca murcharão:
O meu coração nunca chegou a Maio na vida vivida
Nunca passou de Abril.
Maria! O poeta canta sonetos a Tiana e eu –
Todo de carne, todo humano –
Só peço o teu corpo como os cristão pedem
“o pão nosso de cada dia nos daí hoje”.
Maira – dá! Maria!
Tenho medo de o teu nome esquecer,
Como teme olvida o poeta a palavra
Nascida no martírio noturno grande só como Deus.
Teu corpo cuidarei e amarei, como o soldado
Mutilado da guerra, inútil e sem dono,
Cuida da única perna.
Maria – não queres? Não queres?
Ah! Quer dizer que de novo sombria e tristemente
Pegarei no coração, salpicado de lágrimas,
E o levarei como um cão que para a casota arrasta
A pata atropelada.
Com sangue do meu coração ficará manchado o caminho
Como com flores de fogo lançada à poeira.
Mil vezes bailará o sol à volta da terra
Como a filha de Herodes à volta da cabeça do Baptista.
E quando os meus anos bailem até ao fim-
Cobrir-se-á com milhões de gotas de sangue
O caminho até à morada do meu pai.
Sairei então sujo (de dormir nas sarjetas),
E ponho-me a seu lado, inclino-me e digo-lhe ao ouvido:
– Escuta, senhor Deis! Como é que não te aborreces
Nessa gelatina das nuvens deitando água todos os dias
Dos teus olhos bondosos?
Sabes uma coisa? Vamos construir um carrossel
Na árvore da sabedoria do Bem e do Mal.
Onipresente, estarás em todos os armários,
E pomos à mesa uns vinhos tais que incitem bailar
O taciturno apóstolo S. Pedro.
E de Evas encheremos de novo o paraíso:
Uma palavra tua, – e esta mesma noite
Pelas ruas juntarei as mais belas raparigas.
Queres? Ou não queres?
Abanas a cabeça, cabeludo?
Achas que esse aí com asas, atrás de ti, sabe o que é o amor?
Eu também sou um anjo, fui como um cordeiro inocente,
Mas fartei-me de dar às éguas vasos feitos de sofrimento de Sévres.
Todo-poderoso, tu, que inventaste estas mãos, que deste
Uma cabeça a cada um de nós, porque não decidiste
Que sem sofrer se pudesse beijar, beijar e abraçar?!
Julgava que eras um deusão onipotente
Mas não passas de um Deusito um pouco desajeitado.
Vês? Curvo-me e da bota tiro um punhal!
Patifes alados! Agachai-vos no paraíso!
Eriçai as plumas e tremei de medo!
A ti, que cheiras a incenso, cortarei daqui até ao Alaska!
Deixem-me! Não me detenham!
Certo ou errado não posso ficar calmo.
Olhem – decapitaram mais estrelas
E ensanguentaram o céu como um matadouro!
Eh, tu! O céu! Tira o chapéu! Que vou passar eu!
Silêncio!
O universo dorme com a enorme orelha
Cheia de estrelas sobre a pata.