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Detalhes da Declaração de Battisti

  • Este artigo contém os detalhes sobre os fatos que foram apenas  enunciados e sugeridos no texto intitulado Battisti: Auto-delação Premiada e 41-bis, incluindo informação recente. Após fazer um rápido panorama da situação de terrorismo de Estado que viveu Battisti na Itália, e mencionar problemas éticos e sociológicos relacionados com detenções injustas e julgamentos fraudados, faço um exame detalhado das causas pelas quais Cesare fez sua “confissão”. Lembro um fato que todos sabem: uma pessoa prisioneira num país sem justiça é uma pessoa indefensa. Quero lembrar que casos análogos aconteceram no Brasil, entre eles, o do conhecido blogueiro e jornalista Celso Lungaretti.

“Eu sou de um país onde a palavra dada é sempre negociável em função das ofertas do mercado. […] Entre nós, a palavra dada serve para elevar o preço da traição. Somos um país mercador que faz comércio com tudo, desde o patrimônio artístico até os presos políticos.”

Enrico «Erri» De Luca, escritor italiano nascido em 1950, um dos mais brilhantes dos últimos anos. Foi ativista humanitário e militante de Luta Contínua.  

Traduzido do Francês do texto: “La parole donnée est-elle négociable?”, escrito em 2002, para o livro de Fred Vargas, La verdade sobre Cesare Battisti.

Na Segunda Feira 25 de março, o procurador adjunto distrital para o  “Antiterrorismo” de Milão (Itália), Alberto Nobili, ofereceu uma conferência de imprensa no setor da Procuradoria do Tribunal Ordinário de Milão. Nesse evento, respondeu perguntas e mencionou de maneira literal alguns poucos trechos dos dois depoimentos que Cesare prestou junto a ele na prisão de Massama (em Oristano, Sardenha), na presença de seus advogados, de um tabelião e de uma representante do DIGOS, uma divisão das forças de segurança.

Divulgada a “confissão”, que também contém uma discreta autocrítica, houve reações de perplexidade e de “indignação” de pessoas autopercebidas como esquerda no Brasil. Eu não tive muito contato com esses censores, mas alguns se comunicaram comigo por e-mail e Facebook, incluindo alguns/algumas jornalistas internacionais pelo(a)s quais tenho (perdão, tinha) grande apreço. Quero deixar claro que entre meus amigos pessoais e colegas de ativismo houve, sim, algumas surpresas, mas a conclusão de todos foi que (do ponto de vista de nossa campanha pela liberdade de Battisti) nada tinha mudado.

Passados dez dias e, portanto, com uma perspectiva mais calma e com maiores informações, vou esclarecer o que aconteceu.

Brevíssima Síntese da Época

Em meu livro Os Cenários Ocultos do Caso Battisti relatei com algum detalhe os fatos de violência que aconteceram na Itália entre finais dos anos 60 e começos dos anos 80. Agora quero resumir apenas os assuntos principais que podem jogar luz sobre a inesperada autocrítica de Battisti, bem como das coerções que (de maneira irrefutavelmente provada) estão por trás dela.

Uma descrição sistemática e enxuta (cujas provas se encontram em numerosas fontes citadas aqui e em outros textos) permitirá dar uma visão rápida do que aconteceu durante o terrorismo de Estado na Itália (1968-20??)

Façamos um mínimo necessário de História.

Acabada a Segunda Guerra Mundial, os aliados não tinham interesse em punir os fascistas tal como fizeram com os nazistas, pois a Itália não havia prejudicado os interesses das grandes potências e possuía numerosos aliados políticos e econômicos. Apenas havia exterminado populações de países africanos desarmados, o que não preocupava em absoluto aos líderes imperialistas, que haviam agido até essa data da mesma maneira. Por outro lado, ao colaborar na ocupação da Itália pelas forças americanas e canadenses, os mafiosos do Sul haviam ganhado um lugar no coração da Casa Branca, ao mesmo tempo que os fascistas viravam mais “democráticos”.

Os serviços de inteligência americanos criados durante a Guerra, como o OSS (que seria o germe da CIA) tinham interesse em apoiar a Itália, pois sabiam que os fascistas seriam úteis para combater a esquerda na Europa.

Na época, os EUA não tinham condições para diferenciar o stalinismo da verdadeira esquerda, mas todos eles foram considerados como inimigos pelas grandes forças vitoriosas em Ocidente. A exceção era o líder trabalhista inglês Clement Atlee, de claras tendências humanistas e pacifistas, mas que, a despeito de sua posição de primeiro ministro do UK, estava sempre na mira dos conspiradores americanos, e sob o risco de sabotagem do próprio serviço de inteligência britânico M16.

O Office de Serviços Estratégicos (OSS) tinha dois motivos diferentes para tentar destruir o stalinismo e à esquerda.

O stalinismo, firmemente consolidado na União Soviética e possível futuro detentor de armas nucleares era um desafio para o imperialismo americano. Impérios sempre exigem exclusividade e, embora Stalin parecesse resignado a cingir-se ao Leste Europeu, os EUA não ocultavam sua ambição de acabar com a URSS, uma tarefa que demoraria ainda 45 anos.

Já a esquerda preocupava os americanos por razões mais capitais. Anarquistas, Comunistas de esquerda, Trotskistas e outros lançavam desafios ao capitalismo, que podiam germinar nos países que, finalizada à Guerra, começavam a questionar os laços coloniais com o imperialismo Europeu. Aliás, a direita americana havia se empenhado a sangue e fogo para acabar com os movimentos sociais em seu território entre anos 1890 e 1940, e não desejava voltar atrás. O violento e desatinado macarthismo dos anos 1950 foi uma combinação de ambas as lutas, contra o nacionalismo stalinista e o esquerdismo da massa comunista, que ainda permanecia dividida.

A Itália, no coração do Mediterrâneo, sede da Igreja, do fascismo e da máfia (cujos laços com a cultura americana eram estreitos) seriam o aliado exemplar. De fato, isso aconteceu, mas foi preparado com bastante esforço. Nas eleições gerais posteriores à guerra, os EUA, com mais de 20% de católicos, e a Igreja italiana colaboraram com todo seu potencial para fazer fracassar a coalizão PSI-PCI, enviando milhões de cartas aos leitores com narrativas sobre a truculência do comunismo e fábulas tradicionais sobre o terror soviético.

Pela razão simétrica, o líder stalinista Palmiro Togliatti também indultou os fascistas, pois Stalin (que ainda vivia nessa época) sabia que a base popular do Partido Comunista Italiano, que se havia batido bravamente contra os fascistas, não tinha muito em comum com os burocratas que bajulavam o Khremlin. Talvez tivesse uma intuição de que eles gerariam a verdadeira esquerda, pois Stalin já havia tido a experiência de Lev Trotskii que se havia recusado a submeter-se a seu despotismo, e havia criado um novo movimento. Em síntese, Stalin queria um convívio pacíficos com as potências imperialistas, e temia a possibilidade de que a Europa fosse agitada por movimentos progressistas e revolucionários.

Contudo, é um erro comum considerar só os fascistas como os causantes do terrorismo de estado e da repressão dos anos 70 na Itália. É verdade, claro, que as principais forças que agiram no terrorismo explícito (explosões) eram, em sua maioria, fascistas. Todavia, na repressão dos movimentos populares tiveram um papel destacado também os stalinistas (que seguiram a tradição de Togliatti após a morte dele), a máfia, a direita da democracia cristã, a maçonaria e terroristas independentes.

Os que queiram aprofundar podem ler os seguintes documentos. Os autores são grupos de pesquisadores conhecidos por sua seriedade que fornecem evidências de todos os fatos denunciados:

https://www.bibliotecapleyades.net/archivos_pdf/operation-gladio-documents-collection.pdf

www.themindrenewed.com/transcripts/792-int-70t

www.php.isn.ethz.ch/kms2.isn.ethz.ch/serviceengine/Files/PHP/18583/ipublicationdocument_singledocument/f4e652a3-cad7-4284-9aae-243b630f3440/en/Terrorism_Western_Europe.pdf

www.amazon.com/Italian-Neofascism-Strategy-Politics-Nonreconciliation/dp/085745174X

www.php.isn.ethz.ch/lory1.ethz.ch/collections/coll_gladio/chronology76c1.html?navinfo=15301

www.roughdiplomacy.com/operazione-gladio/

Os PAC, como outros movimentos da Esquerda Autônoma, se juntaram num grupo para resistir a perseguição policial, a tortura, as detenções arbitrárias, as ameaças contra os ativistas operários e suas famílias, e outras violações dos direitos humanos. Também apoiaram as greves, protegeram os grevistas, criaram programas culturais e de educação social, e distribuíram ajudas básicas entre as famílias do proletariado menos qualificado.

Fake Data frequentes:

  1. Os PAC não são o mesmo que as Brigadas Vermelhas, nem tinham relação com elas. Eles provinham da esquerda operária autônoma, eram pessoas simples das classes populares, e muitos deles haviam chegado à Lombardia desde lugares pobres da Itália, cujos habitantes eram desprezados pelos pelegos stalinistas. Já as Brigadas se inspiravam em movimentos de guerrilha urbana, e tinham em geral uma extração social mais alta, contando incluso com quadros de chamada “esquerda católica”.
  2. Aldo Moro não foi executado pelos PAC. Os executores foram das Brigadas. Por outro lado, o primeiro ministro Andreotti favoreceu a execução de Moro, que era seu rival político, dificultando as negociações sobre sua liberdade. Os PAC nem sequer estavam sabendo o que acontecia em Roma e souberam disso graças a imprensa.
  • Se vocês procuram no Google (olhando a origem da informação) encontrarão mais de 500 textos confiáveis sobre o assunto. É bom lembrar que centenas de notícias e comentários sobre o caso Battisti e assuntos conexos são distribuídos pelo governo italiano e utilizados sem escrúpulos por numerosos charlatães.

O terror de estado gerado pelos fascistas incluía grandes atos destrutivos com centenas de vítimas (explosão de bancos, trens, shoppings, ruas, praças e estações), realizados com dispositivos plásticos C4 de alta potência, fornecidos pelos serviços técnicos da Marinha, que os havia utilizado na guerra.

Em onze anos, houve, por causa deste terrorismo fascista, 350+ mortos e cerca de mil feridos e mutilados. A autoria dos atentados incluía fascistas, membros das forças armadas, policiais, mercenários e alguns “profissionais” da máfia. Esses atos de terrorismo estão enquadrados em dois tipos de projetos. Um é um projeto oficial, a Operação Gladio, que foi criada e alimentada pelos EUA e o Reino Unido, e se difundiu por quase toda a Europa, com diversos nomes.

Gladio foi a maior operação de sabotagem criada pelos EUA na Europa, seguida em importância pela operação equivalente na Bélgica. Ela não foi necessária na Espanha, que estava sobre a ditadura teocrática de Francisco Franco, e obedecia cegamente aos EUA. Mas essas operações tiveram alguma dificuldade em países democráticos, como Suécia e Finlândia, onde foram denunciadas.

O outro projeto, mais informal, foi chamado Estratégia da Tensão (ET). Embora auxiliado obliquamente pelos EUA, seus principais atores eram os italianos: fascistas, neofascistas, corpos policiais e militares, maçons e, sobretudo, grandes empresários. A ET é descrita pelas elites políticas italianas como “terrorismo contra o Estado”. Todavia, é notório que vários dos governos italianos da época não se sentiam realmente ameaçados por ela.

O que a ET queria fazer era minar a confiança da população da suposta democracia que havia no país e favorecer os golpes de Estado. Se algum desses golpes triunfava, poderia ser gerado um governo de ultradireita, autoritário, no estilo de Espanha, auxiliado pelos EUA. Nesse caso, a direita da Democracia Cristã (que não era nada inexpressiva, como as elites políticas italianas pretendem), poderia beneficiar-se atuando sob a tutela dos militares. Isto já havia sido experimentado nas ditaduras latino-americanas da mesma época, e na ditadura grega um pouco antes.

Mas, deixemos falar a quem sabe das coisas: é o único preso de direita que há atualmente na Itália, Vincenzo Vinciguerra. Ele não foi solto como todos os outros porque tinha muita informação e, quando foi preso, denunciou seus mandantes, que eram figuras muito poderosas da Democracia Cristã, dos partidos neofascistas, mas também funcionários militares e numerosos empresários.

Vinciguerra definiu a ET como um conjunto de ações terroristas dirigidas contra todos: mulheres, crianças, jovens e velhos, cidadãos comuns, que, desesperados por esse tipo de atentados, pediriam ao governo a instalação de uma ditadura eficiente para reprimir o crime, como na época de Mussolini. Isso aumentaria o poder dos políticos da época.

Já o principal autor do superataque a Piazza Fontana (em Milão em 1969, quando foi colocado um super-explosivo num banco) Delfo Sforzi, figura proeminente do neofascismo, virou um magnata em seu exílio em Japão, sem que a Itália fizesse o mínimo esforço para pedir sua extradição. Sobre Sforzi nunca ouvimos a voz crítica daqueles hipócritas denunciantes que acusavam Battisti de dar-se a grande vida em Copacabana.

A situação dessa época foi muito complexa, mas vou fazer um esquema simplificado que talvez ofereça uma ideia aproximada.

PRIMEIRO:

Fascistas, mafiosos, membros das forças armadas e de segurança, junto com o apoio muito discreto da Embaixada dos EUA, planejaram superataques que foram chamados stragi (que significa, mais ou menos, o mesmo que em português: estragos e massacres).

(Observação: Em 2006, o Departamento de Estado dos EUA reconheceu que tinha ajudado na implantação da Operação Gladio, mas que seu objetivo era proteger a Itália de um ataque soviético. Como era de esperar, negou que tivesse auxiliado nos atentados com explosivos e que tivesse participado da ET que, de fato, era uma sub-operação dentro da Gladio. A participação americana era notória, mas nunca pôde adquirir estado oficial, porque o sistema reconhecidamente corrupto de juízes e promotores, que inocentavam e adiavam as penas dos autores, evitava que se soubesse do interesse dos EUA em destruir a esquerda Italiana, e também de provocar golpes de Estado).

Sobre os estragos, também há numerosas fontes:

www.lettera43.it/it/articoli/cronaca/2014/03/16/anni-di-piombo-le-vittime-dimenticate-dallo-stato/112316/

Este breve artigo traz uma seção esclarecedora sobre o papel antidemocrático do Partido Comunista Italiano a partir de 1976.

https://web.archive.org/web/20090713153915/http://www.storiaefuturo.com/it/numero_20/laboratorio/

http://www.storiaefuturo.com/it/numero_20/articoli/1_strage-loggia-usa~1245.html

Uma excelente cronologia da ET

http://www.wikiwand.com/it/Cronologia_degli_anni_di_piombo_e_della_strategia_della_tensione

Ao mesmo tempo que os ataques terroristas massivos grassavam no Norte, bandas armadas faziam múltiplos ataques individuais contra ativistas de esquerda, em especial, estudantes. Centenas de jovens pacíficos, que simplesmente se queixavam pela opressiva situação social, pela má qualidade do ensino nas Universidades, e pela brutalidade policial típica da Itália, foram feridos e às vezes mortos pela polícia, pelos serviços de Inteligência, e por bandas fascistas.

Os dados exatos são inacessíveis, mas mesmo os dados aproximados são difíceis de obter. Há uma poderosa entidade que faz um estudo sistemático das vítimas (Vittime del Terrorismo = AIVITER), mas é controlada e financiada por membros do establishment italiano. Portanto, omite colocar a origem dos ataques quando os agressores são membros do sistema repressivo do Estado. Quando os atacantes são fascistas conhecidos e não cabe dúvida da autoria, então costumam informar com algum detalhe, mas nunca reconhecem os massacres policiais, nem, muito menos, as torturas. Veja:

http://www.vittimeterrorismo.it/

O ex-ministro de defesa do último governo de Berlusconi, chamado Ignazio La Russa, foi um dos líderes dessas provocações em sua juventude. Vocês podem conferir isto e, ao mesmo tempo, se divertir com o excelente cinema da época. Assistam o filme Esmaguem o monstro na Primeira Página! Cuidado: a sequencia onde aparece La Russa não é parte da ficção do filme. Há um trecho documental dele na abertura, onde, ele próprio (e não um ator que o represente) está arengando à multidão para estimulá-la a atacar e destruir um local pertencente a comunistas. O resto, sim, é realidade romanceada por Marco Bellocchio.

https://www.youtube.com/watch?v=LWLqjVBmAfc&t=743s

Segundo:

A polícia e alguns juízes (nem todos, porque também havia juízes democráticos, pelo menos até 1974, quando a direita recobrou o poder total dos altos tribunais) acusavam falsamente anarquistas, comunistas de esquerda (pois o PC não estava ainda 100% à direita), e autonomistas, e colocavam a culpa neles. Um delegado chamado Calabresi torturou durante vários dias o anarquista Giuseppe Pinelli, que acabou (por “acaso”) caindo do quarto andar da central de polícia, localizada na rua Via Fatebenefratelli, 11.

O cadáver foi levado de imediato pela polícia, e ninguém pôde ver as possíveis marcas de tortura, mas um preso que estava numa cela vizinha na própria carceragem ouviu durante várias noites barulhos pareciam de pancadas e certos gritos sufocados. Os autores do strage de Piazza Fontana, todos eles fascistas, foram identificados, mas saíram livres com base em diversos pretextos. Durante o julgamento de Battisti no Brasil (09/set/2009), o relator do caso na Suprema Corte, Cezar Peluso, homem ao serviço da Itália, afirmou que não se sabia a identidade dos autores.

A despeito das diversas manobras do governo italiano, do judiciário e da própria polícia, não existe a mínima dúvida de que Pinelli foi morto pela polícia. Ainda pior, quando o jornalista de esquerda Adriano Sofri denunciou em seu jornal a autoria de Calabresi na tortura e morte de Pinelli foi perseguido pela justiça. Ele acabou tendo que cumprir 22 (vinte e dois) anos de prisão, acusado de ter comandado o homicídio de Calabresi, que foi executado por um grupo de esquerda, Os juízes determinaram que o jornalista que denunciava um crime de um agente do Estado era equivalente ao mandante do homicídio desse agente. Esta é uma medida do tipo (ou talvez pior) a aplicadas pelos nazistas em tempos de guerra.

Terceiro:

Os grupos da esquerda autônoma e muitos desertores do PC, cuja viragem à direita (em procura de votos) preocupava, formaram gruppi de autodefesa, um dos quais foi o dos PAC.

Quarto:

Após sua grande vitória eleitoral, em 1976, dada em especial pela classe média e setores do operariado industrial, o Partido Comunista (que controlava totalmente a tradicional Confederazione Generale del Lavoro) se aproximou da democracia cristã. O PCI continuou tendo setores de esquerda, agora muito pequenos, mas suas grandes figuras colaboraram na repressão policial com enorme entusiasmo. Eles trouxeram “novidades” ensinadas pelos soviéticos, como o uso de tortura química com alucinógenos e antipsicóticos. O grande pogrom contra a esquerda foi feito pelo PCI em abril de 1977.

Foi logo depois dessa época que floresceram os grupos de esquerda, pois o PCI estava mais interessado no alto operariado e estimulava o peleguismo, a discriminação contra meridionais, e o colaboracionismo com o Estado, incluída a alcaguetaria. Operários pobres e analfabetos, encontrados com panfletos simplesmente informativos de grupo de esquerda, eram detidos e julgados como verdadeiros criminosos de guerra

Usando bem as Palavras: TERRORISMO

No ambiente sociológico e historiográfico dos países civilizados, chama-se terrorista a quem participa de atos de agressão massiva, usando armas de poder coletivo, e fazendo vítimas que nada tem a ver com nenhuma causa, ou seja, não são inimigos ideológicos dos atacantes, mas apenas vítimas indiscriminadas cuja morte contribui a aumentar o terror.

Aliás, terrorista é quem, além de atacar, tem a motivação de semear o pânico na sociedade, para que as pessoas reajam e se tornem favoráveis ao grupo ao que pertence. Ainda, o terrorismo deve ser sistemático, frequente e abrangente. Um cara que briga com o vizinho e, como vingança, toca fogo em seu carro ou assassina um de seus familiares é um bárbaro, mas não um terrorista.

Pessoas que cometem crimes individuais, isolados, por causas patológicas ou de proveito pessoal, mesmo que sejam horríveis, não são terroristas. Na Itália, os terroristas foram os que realizaram os stragi, e também alguns que atuaram com armas manuais (por exemplo AK-47), mas com o objetivo de atingir, de maneira indiscriminada, várias pessoas, e também de criar pânico. Um matador serial pode não ser um terrorista, se ele não possui como finalidade criar o terror. Vincenzo Vinciguerra, que mencionei antes, é um exemplo de terrorista. Na vida real, Bin Laden era um terrorista. Os homens bomba que se explodem a si mesmo em lugares povoados são terroristas. Mas, don Corleone, sendo um mafioso, não era um terrorista.

Observe que, com muita maior razão, os que fazem massacres massivas usando armas de guerra são terroristas. Membros de exército matam centenas de pessoas em cada voô de um bombardeio, pessoas que eles não conhecem e que assassinam apenas para criar o pânico e enfraquecer o governo do país ao qual pertencem. Os militares que atualmente participam no governo brasileiro são megaterroristas responsáveis de crimes massivos no Haiti.

Também houve alguns terroristas que se autoconsideravam de esquerda. Acho que pode ser lícito usar o termo terrorista de esquerda, mas quem usa esse termo deve explicar, por que considera que esses terroristas são de esquerda, pois o simples ato terrorista não identifica a ideologia. Por exemplo, a parte mais violenta do Exército Revolucionário Irlandês fez atos de terrorismo, mas ela não pode ser considerada propriamente de esquerda. Tampouco é de esquerda uma parte de guerrilha da América Latina que usou o terrorismo. Em vários casos, esses movimentos são puramente nacionalistas, e seu objetivo é atingir de maneira abrangente um conjunto de pessoas com base em sua nacionalidade, raça ou forma de ação. Na Argentina, por exemplo, muitos militantes que lutavam contra os EUA (numa forma genérica, como se todos os americanos fossem imperialistas) provinham de grupos terroristas, como Taquara, que foi uma organização católica dos anos 50 especializada em atentados contra comunistas. Assim sendo, geralmente esse tipo de movimentos é de direita e não de esquerda.

Ao qualificar como terroristas todos os membros de grupos de autodefesa armada, a Itália confunde deliberadamente a opinião pública, e construí um pensamento paranoico que permite que o Estado cometa qualquer tipo de aberrações, obtendo os aplausos de um público alienado, covarde, revanchista e ignorante. Assim acontecem julgamentos sumários, prisões arbitrárias, tortura, represálias contra familiares e amigos dos perseguidos.

Nos atos específicos que mencionamos neste artigo, não há terrorismo em nenhum dos sentidos usados por especialistas e por organizações internacionais, nem no sentido sugerido pelo CS da ONU. Pode afirmar-se que houve atos terroristas em alguns grupos de identidade confusa, por exemplo, grupos que eram, ao mesmo tempo, pró-chineses e pró-fascistas. Esse tipo de ideologia, baseada numa rejeição por determinados países ou governos, é claramente de direita, chauvinista e de matriz fascista.

Os EUA são, como a Itália e alguns outros, os que mais utilizam as acusações de terrorista para referir-se a qualquer um que faz oposição a sua política. O leitor deve ficar ciente de que a acusação indiscriminada de terrorismo é um simples ardil para justificar abusos do Estado. No Brasil, em 2016, um político associado a um grupo do crime organizado, e que o golpe de Estado colocou na condição de Ministro, fez deter várias pessoas com acusações de comunismo totalmente absurdas. Uma delas morreu na prisão. A então ministra de direitos humanos renunciou ao cargo, apesar de ser uma pessoa que não teve escrúpulos em tornar-se ministra de um golpe.

O Caso Giorgina: Exemplo de como Funciona o Terror de Estado

É muito conhecido o caso da adolescente GIORGIANA MASI (assassinada em 12/05/1977, sendo o autor protegido pelo depois presidente Francesco Cossiga, que na época era o ministro dell’Interno), mas os casos de crimes cometidos contra jovens progressistas pacíficos foram muitos. Giorgina (ou Giorgiana) participava de uma passeata para celebrar a lei de divórcio, que estava sob a ameaça constante da Igreja, ávida de revogar a lei.  

(Veja a foto no começo deste artigo)

No site de AVITER, que é muito prolixo e circunstanciado quando a vítima foi alvo de algum militante de esquerda, a descrição da morte de Giorgiana Masi coloca, como única informação expressiva, esta:

  • A investigação não conseguiu individualizar o autor do homicídio; sucesso desfavorável tiveram também as ulteriores indagações realizadas sucessivamente.

O Partido Comunista Italiano, que já estava claramente na direita, acusou à esquerda de ter forjado essa morte para erigir-se em vítima e culpar o Estado. No entanto, minutos antes de sentir-se o disparo, foi visto esse policial de paisana, Giovanni Santone, não muito longe do lugar da morte.

O consenso de que Santone foi o matador foi unânime entre os membros da passeata. Apesar da opinião de fascistas e stalinistas, é óbvio que as pessoas que lutam por um direito tão básico (que até existe no Brasil !!!) como o divórcio não podem ser todas terroristas. Também o Partido Radical, o mais comprometido com os direitos humanos da Itália, atribuiu o crime ao Estado.

Como é comum na Itália, o crime foi coberto por uma nuvem de fumaça, e numerosas hipóteses dispersivas foram levantadas à medida os protestos aumentavam. A morte foi atribuída aleatoriamente a diversas pessoas para dispersar a atenção: a um colega de estudos de Giorgina, a um suposto infiltrado nas forças policiais, a dois fascistas, a criminosos comuns, a pequenos ladrões e assim em diante, mas o nome do policial Santone nunca foi oficialmente investigado. Em 2003, o ex-presidente Cossiga confessou que sabia quem era o assassino, mas não podia dizer.

Os Homicídios do PAC

Como disse em meu texto anterior (A Autodelação), os PAC decidiram executar quatro membros da direita. Dois foram acusados de aplicar torturas. Sobre um deles (o motorista Andrea Campagna) não há, na minha opinião, provas suficientes de sua participação sistemática nas torturas. O outro era o chefe de carcereiros de Udine, conhecido por seu sadismo. Há numerosos relatos sobre ele em diversos livros da época como A pequena tenda de azul, e também nos Anais dos Anos de Chumbo, colecionados por antigas vítimas dos torturadores. Podem procurar na Internet por “Anni di Piombo” e “Torture”.

Os dois civis, Sabbadin e Torregiani, eram conhecidos por pertencer à associação Maioria Silenciosa, um grupo de extermínio de pequenos ladrões, mendigos, favelados e moradores de rua. Eles provocavam situações de conflito para poder usar suas armas. Torregiani era o mais conhecido e ganhou fama por levar seus filhos em suas aventuras por Milão, e várias vezes os expôs a situações de perigo. Por sinal, segundo a polícia, quando ele foi morto, estava protegido por um colete, mas seu filho, Alberto, não estava.

Notícia Fake:

É falsa a afirmação de que Battisti teria sido responsável pelo tiro que deixou paraplégico o jovem Alberto. Mesmo se a recente confissão de Battisti, de que ele estava perto do lugar das mortes, fosse verdadeira, a bala que a polícia encontrou na espinha de Alberto era do revólver de seu pai.

Uma narrativa do jornalista Marco Imarisio no Corriere della Sera (5/3/2004, pág. 21) descreve com muito detalhe os incidentes do homicídio de Pierluigi Torregiani. A referência a seu filho Alberto está na alínea 74.

https://web.archive.org/web/20131224083730/http://archiviostorico.corriere.it/2004/marzo/05/Battisti_uccise_paghi_Francia_divide_co_9_040305052.shtml

A Relevância da “Confissão” de Battisti

Qual é a relevância das “confissões” dos dias 23 e 24 de março, nas que Battisti assume a autoria que rejeitou durante 41 anos?

Por que nunca Battisti foi acusado pelos outros membros do PAC, salvo Pietro Mutti e Sante Fatone? Os outros são os irmãos Marco e Sebastiano Massala, Giuseppe Memeo, Luigi Lavazza, Enrica Migliorati, Gabriele Grimaldi, Diego Giacomini, e outros que estão exilados. Por que alguns, que foram abertamente torturados na presença do famigerado procurador Armando Spataro (como o enfermeiro Sisinnio Bitti), tampouco o mencionaram, mesmo que fosse para fugir do tormento?

Qual é, enfim, a relevância desta suposta “confissão”?

Bom, para Cesare, a confissão tem a máxima relevância, porque lhe servirá para não ser internado, pelo resto de sua vida, numa câmara de tortura instituída pelo artigo 41-bis do Código Penal. Falarei logo deste tipo de tortura.

Para as pessoas que são de esquerda a relevância desta confissão é NULA.

  • Com efeito, há pessoas que dizem estar na esquerda (ou ainda na centro-esquerda) e consideram criminosa uma pessoa que executa algum de seus algozes. Essas pessoas deveriam perguntar-se se realmente a esquerda é o tipo de ideologia que satisfaz seus princípios!

Pessoalmente, nunca tentei indagar o envolvimento ou não de Battisti nesses fatos. Desculpem, mas não sou juiz, nem X9, nem padre. Em 2008, alguns meses antes de conhecer Battisti na prisão da Papuda, tive acesso aos poucos dossiês sobre Cesare que a Itália liberou. Após lê-los algumas vezes, comparei as datas: 1978 e 1979. TRINTA ANOS! Uma perseguição de 30 anos só poderia ser uma vingança. Aliás, uma vingança por defender seus direitos, porque são pouquíssimos os países do mundo onde os trabalhadores conseguem que o Estado defenda seus direitos. E a Itália não é um desses!

Conflito de Consciência: Autodefesa

A execução de um torturador não é equivalente a aplicar a pena de morte. Na vida jurídica comum, a pena de morte consiste em executar cruelmente uma pessoa que já está rendida, e cuja morte não fornecerá nenhuma proteção à sociedade. Aliás, é um ato de sadismo, que se alastra durante meses ou anos com um ritual de tortura psicológica e contínuos atos de provocação e confusão para aumentar a angústia. Ao mesmo tempo, transforma seres humanos no pior tipo de criminais covardes, porque os carrascos não matam por convicção, mas por dinheiro ou por delírios místicos e premiações. Esse foi o caso da policial que, no dia da mãe de 2018, matou um jovem marginal com três tiros dados propositadamente desde uma situação de segurança, mesmo depois que o rapaz estava caído, ferido e imobilizado. Ela recebeu uma homenagem do governador canalha de São Paulo.

É verdade que matar um torturador pode ser uma vingança, e toda vingança é um ato doentio e, sobretudo, um ato irracional carregado de ódios obscuros e, em especial, de religiosidade, porque pessoas crentes só sabem diferenciar o bem do mal. Não há termo médio. Bem é o que traz benefícios a seu seita e mau tudo aquilo que é neutro ou racional.

Porém, nem sempre a execução de um sujeito sádico e truculento é uma vingança. Quando se executa alguém que está numa posição de poder, se está salvando as vidas das pessoas que ele torturaria e mataria se continuasse em suas funções. Mesmo assim, pessoalmente creio que a luta armada é errada. Eu realmente não sei se seria capaz de matar um opressor mesmo em minha própria defesa. Não obstante, é obvio que não podemos exigir-se de ninguém que abdique de sua defesa e se deixe arrebentar por seus algozes. A capacidade de morrer antes que defender-se pode ser um padrão moral pessoal, mas é cínico e arbitrário exigi-lo de outros.

Os que duvidam da justeza deste raciocínio são convidados a assistir o magnífico filme O Senhor das Armas, no qual Nicholas Cage encarna um frio e poderoso traficante de armas.

Entre outros momentos maravilhosos do filme, há um em que o traficante zomba de um funcionário internacional que o quer deter por crime contra a humanidade. Ele responde com uma calma arrogante, porém suave:

“Não vai adiantar você me prender, pois vou sair livre de imediato, porque os governos mais fortes do mundo são meus clientes”.

Então, o funcionário o algema e responde:

“Sim, isso é verdade, mas eu tenho direito de mantê-lo detido por 24 horas. Nesse prazo, dúzias de pessoas que seriam alvo de seus clientes salvarão suas vidas”.

Esta frase foi muito iluminativa para mim, e penso que também se poderia dizer: “Se você matar esse traficante de amas, milhares de pessoas que são vítimas de seus clientes, salvarão suas vidas”. Aliás, isso pode valer para um torturador, embora o vendedor de armas seja socialmente muito mais truculento e nocivo, seja a venda legal ou ilegal.

Veja um dos melhores fragmentos do filme.

https://www.youtube.com/watch?v=tj4WiCDgAj8

O Brasil é um dos lugares onde a tortura fez estragos enormes. Há apenas uns dias uma multidão de pessoas manifestou em diversas cidades para lembrar aqueles monstros dos anos 60 e 70, das ditaduras brasileira e argentina.

Se você se horroriza pensando que Battisti poderia ter matado Santoro, eu lhe aconselho, amigavelmente:

  • Fale com os que foram torturados pela ditadura, com os parentes dos torturados, com os que perderam pessoas queridas (inclusive crianças), nas mãos desses sádicos insanos.

Eles não têm a culpa de ser degenerados e pervertidos. Eles são doentes, e precisariam de cura. Mas, às vezes, a única cura para uma doença é a eutanásia. Nenhuma das vítimas da esquerda nos Anos de Chumbo foi torturada, apesar de várias terem sido mortas. As vítimas dos atentados dos PAC morreram de imediato, sem aparente sofrimento. Nem o PAC nem outros movimentos de esquerda, pelo menos entre os mais conhecidos, aplicou nunca tortura, nem planejou que a morte de suas vítimas fosse sádica.

A justiça popular quando não há justiça do Estado não é terrorismo. Não falou da falsa justiça massiva, tipo paredão. Falo da neutralização específica de agentes cuja vida consiste em matar e torturar opositores.

O terrorismo é matar de maneira indiscriminada gente comum. Alguns grupos que se dizem de esquerda fizeram isso e merecem repúdio. A esquerda não deve admitir “baixas colaterais”. Mas, os PAC cuidaram muito de não fazer vítimas colaterais. Como disse antes, o jovem Alberto Torregiani foi atingido por uma bala de seu próprio pai, e isso está no laudo da polícia na data da execução.

A execução seletiva, embora indesejável, não significa o ódio do inimigo, mas apenas sua neutralização. A ideia de que o inimigo deve ser “amado” é um sem sentido inventado pelos patriarcas para garantir a submissão das pessoas as quais dominavam. Isto está em Mateus, 5:44. Por algo os membros do partido de Bolsonaro, o PSL, pertencem a essas seitas que estimulam a venda de armas, nutrem ódio racial e misoginia, odeiam a educação, e citam sempre aqueles livros que eles consideram “sagrados”. Se você ama seu inimigo, seja coerente. Torne-se amigo dele e pronto. Não precisa toda essa hipocrisia. Agora você amará um amigo.

No livro do jornalista italiano Nicola Rao, aparecido há cinco anos, se relatam os métodos brutais usados pelo Estado para obter confissões dos prisioneiros.

Talvez os “companheiros” moralistas de esquerda do Brasil se fariam um favor a si próprios abandonando suas posições de esquerda e se unindo aos bolsominions, como, de fato, muitos parecem próximos a fazer, pois inclusive apoiam o Supremo Tribunal Federal. Aliás, unir-se aos bolsominions permitirá estar perto de pessoas que são muito mais truculentas que os três torturadores cuja morte de atribui a Battisti (não me refiro ao quarto, porque realmente não tenho nenhuma prova de que tenha sido torturador).

Com efeito, três dos vários militares que puxam dos fios do capitão-marionete (que chegou a governo pelos WhatsApp fake) foram comandantes da MINUSTAH. Nessa missão, que deixou em pânico o povo haitiano, foram torturados, estuprados e mortos milhares de favelados, que defendiam o único governo democrático que o país teve: o do padre Aristide, um sacerdote salesiano expulso pelos americanos.

Este recorte é de Brasil de Fato, uma das mais sérias publicações progressistas do Brasil.

Podem ler o artigo completo em:

www.brasildefato.com.br/2017/09/01/estupros-colera-e-30-mil-mortos-conheca-o-legado-da-minustah-no-haiti/?utm_source=bdf&utm_medium=referral&utm_campaign=facebook_share&fbclid=IwAR0CgC9glc_WUgYrRjG3iqY3JYGnn3lZVcs51DTKAG1VqC6EakaOuPekZu0

Consciência e Legalidade

Recentemente, e à despeito de minha obsessiva (e desenganada) vocação pela racionalidade e a análise inteligente dos fatos, fui confrontado por intelectuais de “esquerda” que me acusavam de defender os que vulneram a lei. A pessoa, uma conhecida jornalista internacional, se indignou por minha atitude e fez um reproche dizendo “eu acreditava que você era um humanista”.

Eu entenderia um cidadão sueco que tivesse uma relativa subserviência à lei, porque seu país é uma das dez únicas democracias realmente humanistas do planeta. Mesmo assim, mesmo entendendo essa submissão da própria consciência às imposições do Estado, não o justificaria. Mas, de fato, os humanistas suecos costumam desconfiar de suas leis. Há um fato emocionante, que no Brasil não foi lido sequer pelos jornalistas especializados.

Uma jovem de 21 anos, Elin Ersson, agindo sozinha, impediu a deportação de um peticionário de refúgio afegão, que viajava no mesmo avião que ela. A corajosa jovem esperou que os motores fossem ligados, se levantou de seu assento, e ficou em pé no corredor, minutos antes do momento em que deveria ser dada a sinal de partida. Um comissário deu ordem de que se sentasse, mas ela recusou e disse:

“Vocês não me podem obrigar a sentar pela força, e não podem partir com uma pessoa em pé. Eu me sentarei quando o governo sueco outorgue refúgio a esse perseguido político afegão”.

Os passageiros se dividiram, mas, em quanto a classe média conservadora se indignava, uma maioria de pessoas progressistas aplaudiram. Nada surpreendente: os brasileiros que viajavam no avião estavam contra a menina.

Furioso, o comissário sabia que não podia fazer nada e apelou:

“Você está indo contra as leis de seu país”

A menina respondeu calmamente, em inglês, para que todos entendessem:

“Eu repudio essa lei de meu pais, mas salvarei a vida e liberdade desse homem”. E, para desespero dos comissários, filmou todo o processo.

Finalmente, o refugiado foi desembarcado.

Assim é como atua um cidadão digno de uma sociedade mais ou menos saudável. É claro que nenhum Estado é perfeito, nem sequer a Suécia, porque o poder político é, por natureza, inimigo da liberdade humana, por democrático que seja.

https://www.independent.co.uk/news/world/europe/swedish-student-plane-deport-flight-afghan-asylum-seeker-prosecuted-elin-errson-a8592906.html

Como Battisti entrou na História?

Foi entre 1983 e 1985 que a Procuradoria de Milão encontrou um dos mais eficientes atores dos homicídios dos PAC: Pietro Mutti. Antes dele, já havia caído preso Sante Fatone, uma pessoa tímida, indecisa, sujeita a crises de pânico. É bem claro, inclusive nos autos do processo, que Fatone se limitou a “concordar” com as confissões de Mutti.

Segundo o mesmo Battisti declarou na entrevista com ele que publiquei no apêndice de meu livro, Mutti sempre tinha sido um bom amigo e tinha mostrado muita lealdade. Eu não precisava dessa informação, pois, como qualquer pessoa com 64 ou 128 neurônios, eu sabia que as confissões obtidas nas prisões se baseiam em tortura, coação, e, como aconteceu no Brasil e em outros lugares, também na tortura de familiares, incluindo crianças.

Após ter lido vários depoimentos cruzados de torturas que a Itália não pôde ocultar, como a de Marco Massala e até de simpatizantes que sequer eram membros dos PAC, como Sisinnio Bitti deduzi facilmente que Mutti deveria ter sido barbaramente torturado.

Algumas pessoas de esquerda que se consideram heróis pensam que resistir a tortura é questão de “moral revolucionária”. Eles nunca foram torturados, mas, mesmo os que nos salvamos da fúria sádica de milicos e tiras, podemos imaginar facilmente o que significa a tortura. Se você duvida, faça este experimento: tente pegar um cabo com voltagem média, porém com baixa amperagem, para assegurar que não ficará ferido. Quanto tempo você resistiria? Casos como o de Dilma Rousseff são raros, e exigem não apenas nível moral (que ela tem em grande proporção) mas também resistência neurológica à dor, que é uma condição natural e não é voluntária.

Por sinal, acho indigno, de maneira general, a atitude dos membros da esquerda que condenam colegas que não puderam aguentar a tortura. Isso é totalmente contrário as convicções científicas e materialistas, que nos ensinam que nossas células nervosas enviam sinais de dor sem que a vontade do paciente possa impedi-lo. Termos como covarde ou traidor, embora possam ser usados em alguns contextos, são na maioria dos casos termos usados por militares e profissionais da violência, os mesmos que mandam outros morrer por eles.

A teoria da tortura é muito complexa, mas a forma mais eficiente de aplica-la é alternar o castigo com o acolhimento. Num dos depoimentos de Mutti, o juiz se refere a ele chamando-o de “Pierino”, um nome carinhoso para Pietro. A coação por meio da tortura nem precisa ser explícita e violenta. Pode ser apenas uma insinuação, uma simples amostra do que acontecerá com os teimosos (por exemplo, uma visita ao calabouço onde uma pessoa torturada parece apenas um monte de ossos e pele ensanguentada).

Quando ficou completada a delação de Mutti, possivelmente em 1987, (os interrogatórios reais estão em partes do processo que só são acessíveis aos mercenários do regime), os juízes já tinham um novo nome, Cesare Battisti, para completar o quadro de supostos autores dos homicídios.

  • Battisti foi julgado em 1988 em ausência. Sua condenação foi confirmada em 1991 e, finalmente, em 1993. A Itália permite a condenação em ausência, desde que o reu esteja ciente de que estava sendo julgado, e de que possua advogados de confiança por ele designados. Mas isto não aconteceu. Cesare estava no México, sem qualquer comunicação com a Europa, e seus advogados foram escolhidos a dedo pelos mesmos magistrados que o condenaram. As procurações mostradas eram evidentemente falsas.

Observe como foi a falsificação dessas procurações:

Veja os detalhes da construção da falsificação no Powerpoint seguinte:

https://sites.google.com/site/lungarbattisti/

O QUE GANHOU BATTISTI?

A “confissão” de Battisti cria várias dúvidas. A primeira, sobre a verdade ou falsidade do depoimento, carece, para mim e para muitas outras pessoas, de total importância.

A outra é: O que ganha Battisti?

Há numerosos indícios que Cesare não foi fisicamente torturado na prisão de Oristano. Ele recebe visitas familiares e de seus advogados com muita frequência. Ele nunca teria ficado calado. Aliás, todos teriam percebido. Mais difícil ainda seria ter sofrido tortura química. O uso de Haropelidol em doses gigantescas, feito popular pelos soviéticos, deve ser aplicado com muito cuidado num laboratório adequado, e Battisti nunca deixou até o momento atual, a cela onde está recluído. Aliás, esse e outros fármacos deixam a vítima num estado progressivo de destruição mental. Tanto essa droga, como a insulina, e os antipsicóticos aplicados em doses enormes não teriam passado despercebidos, pois afetam toda a personalidade.

É natural a suspeita de muitos militantes que acreditam que Battisti foi torturado, pois é conhecida a brutalidade dos agentes penitenciários e policiais no trato com prisioneiros em mais de 80% dos países. Porém, ele não sofreu torturas por ação de agentes físicos (golpes, eletricidade, afogamento, fogo, etc.) nem químicos. Aliás, a tortura foi psíquica, apenas uma sugestão de tortura futura. Os procuradores possivelmente disseram algo como isto:

“Você é acusado de terrorismo. Terroristas são enviados ao 41-bis, e não têm direito a redução de pena. Se você reconhecesse seus crimes, poderíamos pensar em não piorar sua situação”.

Observem que, em 31/12/2010, o Presidente Lula deu como argumento para recusar a extradição a possibilidade de que a situação de Battisti fosse piorada. Muitos idiotas (de qualquer ideologia) disseram que isso era um pretexto.

Battisti primeiro pensou em rejeitar. Ele aceitaria morrer no 41-bis, e muito antes do esperado. Ele não queria ser considerado um delator, e deixou isso muito claro no seu depoimento. Mas, os procuradores não queriam sua delação. Todos os verdadeiros autores eram conhecidos havia mais de 30 anos. Os procuradores queriam apenas sua humilhação.

É importante destacar que não tenho provas de que a iniciativa viesse de Alberto Nobili, o procurador adjunto. Há boatos muito críveis de que a maior ênfase proveio dos políticos, em especial dos partidos do governo, que querem extremar ao máximo seu sadismo. Também não sabemos qual é a posição dos juízes do Tribunal de Milão que julga o caso.

Devemos ter apenas isto presente: Em Tangentopolis tudo é possível. Tangentopolis é o nome irônico dado à Italia nos anos 90 e significa cidade da corrupção. O sisudo New York Times usou várias vezes o nome Bribing Paradise (paraíso das propinas).

Os membros de família de Cesare, que são muitos, e seus amigos mais íntimos, que formam também um grupo grande, o convenceram. Se ele aceitasse o acordo e assumisse as culpas alheias, salvaria e vida, e talvez pudesse sair num futuro. O contrário seria ser mergulhado no sistema 41-bis, onde as celas são buracos onde um condenado fica até enlouquecer, morrer de doenças e desnutrição ou se suicidar.

A foto seguinte é da prisão de Asti, uma comuna no Piemonte, norte de Itália. A cela é do tipo exigido pelo artigo 41-bis do código penal. Este exemplo não é o pior possível. Escolhi esta foto para dar uma ideia intermédia do que significa esse estilo de câmara de tortura, mas suspeito que, se Battisti não tivesse assumido as culpas alheias, a cela reservada a ele seria ainda pior.

Neste buraco nojento a pessoa fica a vida toda. Ela não recebe visitas, nem cartas, nem ligações telefónicas, não pode ler nem escrever, não têm luz natural nem meios de comunicação. A comida chegará a ele por uma mão sem rosto. Se for detectado que ele está doente, poderá ser atendido por um médico apenas para que seu sofrimento possa continuar mais algum tempo. Como se vê na foto, a cela é suja. Loucura, doenças, infeções, atrofias sensoriais, paralisias, destruição orgânica por falta de sol, são coisas frequentes. Quem sobrevive mais de um ano, vira uma espécie de cadáver semi-vivente. Contudo, ele é alimentado para que a tortura seja prolongada.

Este brutal sistema foi inventado em 1986 e destinado especialmente a presos políticos que o sistema chama terroristas. É falsa a informação difundida por alguns chefões da comunidade ítalo brasileira de que a alinha 41-bis foi acrescentada ao Código Penal pensando na máfia. Em realidade, só foram colocados aí membros da máfia após 1992, mas só os mais perigosos, aqueles “dons” que comandam muito capiregime. Aliás, há algo que nunca se destaca: os mafiosos que mataram os procuradores anti-máfia não foram presos por seus crimes contra pessoas comuns, mas porque atacaram agentes do sistema. Eles quebraram a regra de lialtà e a omertà que permite os mafiosos agir sobre proteção policial e judicial.

UM ESCLARECIMENTO:

Na declaração assinada por Cesare se explicita de que não há nenhuma promessa dos procuradores de beneficiar sua situação a curto prazo. Isso significa que permanecerá durante esse curto prazo (que pode ser de alguns anos), na mesma situação atual. Há uma diferença entre estar numa prisão com luz, banho quente, direito a escrever e comunicação limitado com o exterior, e também um teatro onde os detentos podem atuar, e estar no 41-bis.

Todavia, isto não pode impedir que, no futuro, ações coordenadas dos muitos apoiadores de Battisti, possam fazer que a condenação seja revisadas. Enfatizo que isso não faz parte da promessa de procuradoria, mas é algo que deve ser tentado no futuro.

  • Com toda humildade, quero deixar uma moral da história. Não é necessário sofrer uma desgraça qualquer para entender como essa desgraça pode ser terrível. Por tanto, nossos companheiros brasileiros devem entender que não precisam ter sido torturados para imaginar que alguém faça uma negociação digna, que não prejudica ninguém, para evitar essa barbárie. Isso aconteceu com nossos resistentes contra a dura, com os quais ainda temos dívidas.

QUE GANHARAM O GOVERNO E O JUDICIÁRIO?

A família e os amigos de Cesare insistiram em seu desejo de que ele preservasse sua vida e sua saúde. Ele devia assumir tudo o que os juízes tinham escrito no processo, mas ele esclareceu que não delataria ninguém, não envolveria outras pessoas, e não se declararia tecnicamente arrependido, Simplesmente reconheceria que aquele uso da violência havia sido um erro histórico, apenas isso. Não era nenhuma traição a seu passado, a seus amigos, nem a sua causa. Essa posição de não colaboração fica clara na penúltima página de seu processo verbal.

A última pergunta é:

O que ganhavam os procuradores com aquele ato de “humanidade”?

Os que ganhavam não eram apenas os procuradores, mas algumas figuras ainda mais sórdidas: os membros do governo.

 

  • O primeiro lucro para o governo foi transformar Cesare num troféu, um objeto para mostrar na praça pública, como se fazia com os hereges ou os escravos fugitivos em outros tempos: uma espécie de pelourinho. O fato aconteceu em Roma, no dia 13 de janeiro, logo após a chegada dos captores e sua presa desde a Bolívia. O fato produziu uma reação negativa nos setores saudáveis da sociedade, o que significa uma mudança, ainda muito leve, na alienada cultura italiana. Os sindicatos de advogados (algo como a OAB brasileira) apresentaram uma denúncia por abuso de autoridade e crime contra os direitos humanos contra os ministros Salvini e Buonafede. Foi arquivada, como se esperava, mas o fato da denúncia teve um efeito positivo na parte mais esclarecida da população.

 

Essa foi uma das razões pelas quais o governo exigiu a confissão de Battisti, e a procuradoria obedeceu servilmente. Os algozes do governo não queriam que Battisti ficasse com uma boa imagem junto à população. Queriam evitar que sua não participação nos homicídios fosse desmentida. Sobre tudo, queriam evitar que a evidência da fraude continuasse a se estender.

 

  1. O lucro dos promotores foi fingir provar que eles e seus antecessores estavam certos ao condenar Battisti. Não importa para eles se é verdadeiro ou falso. Os inimigos de Battisti e a ralé linchadora, vingativa e ignorante, fará de conta que é verdade. Os amigos dele na Europa não poderão, por enquanto, modificar a situação e deverão esperar.

Outro aspecto, talvez secundário, pode ter sido o interesse dos procuradores de amortecer a imagem de crueldade, arbítrio e punitivismo da procuradoria de Milão. Esta unidade do MP foi a que começou a operação Mani Pulite, uma caçada de bruxas para destruir os partidos que continham ainda algum vestígio de esquerda, e colocar no cume o poder judiciário, usando o pretexto da corrupção. O verdadeiro objeto da operação ficou patente de imediato. Logo em seguida subiu ao poder Berlusconi, e os fascistas que pareciam algo enfraquecidos recobraram o vigor. Hoje há em Itália quatro partidos fascistas, Lega, Força, Casa Pound e os Fratelli.

Embora sem atingir o grau de sadismo, barbárie e corrupção da brasileira Lava Jato, a operação Mani Pulite (Mãos Limpas) foi uma inspiração para esta. Algo mais civilizados que nossos linchadores togados, os procuradores italianos talvez sintam necessidade de apagar a má imagem daquela época de terrorismo jurídico. A “vitória” de capturar uma pessoa indefesa perdida no fim do mundo é para eles uma compensação.

Na figura seguinte, artistas progressistas de Roma mostram Salvini e Bonafede à frente da ralé linchadora, exibindo Battisti no pelourinho.

 

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