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Esquerda carcerária

Defesa da mulher: promoção ou retirada de direitos?

Em entrevista recente ao portal The Intercept Brasil, a ex-juíza Maria Lucia Karam reafirmou que o sistema prisional não defende em nada a mulher.

No dia 18 de dezembro, o portal The Intercept Brasil publicou uma entrevista com a ex-juíza Maria Lucia Karam, que possui vasta experiência no direito penal. Na entrevista, Maria Lucia Karam, que é favor do fim do sistema penal, discutiu os direitos da mulher e as contradições vigentes entre setores do movimento de mulheres que reivindicam a punição como um fator de progresso social.

Logo no início da entrevista, a ex-juíza deixa claro que as leis criadas para punir as agressões às mulheres não são motivo de celebração para o movimento feminino:

São um retrocesso. Os direitos das mulheres se inserem nos direitos fundamentais, e qualquer criminalização é sempre uma ameaça a esses direitos. Me parece absolutamente contraditório, paradoxal mesmo, pretender avançar por meio de um instrumento como o sistema penal, que, na sua própria natureza, fere direitos.

De fato, há muito tempo que setores da esquerda nacional vêm defendendo o incremento de tipos penais como forma de defender a mulher. Por várias vezes, parlamentares da esquerda se juntaram aos representantes da burguesia para pedir penas mais duras para estupradores – em geral após alguma notícia de grande repercussão – ou até mesmo para casos de flagrante distúrbio mental, como no célebre acontecimento do ejaculador do ônibus.

Essa obsessão pela punição por parte da esquerda já havia sido cuidadosamente analisada por Maria Lucia Karam em seu texto A esquerda punitiva:

Na história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal, surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos populares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas, que, notadamente a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres, febre repressora que logo se estendendo aos movimentos ecológicos, igualmente reivindicantes da intervenção do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente, acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda.

Essa defesa da punição, por sua vez, viria de uma pretensão ingênua por parte da esquerda de que “os mesmos mecanismos repressores se dirigissem ao enfrentamento da chamada criminalidade dourada, mais especialmente aos abusos do poder político e do poder econômico”. Tal concepção seria absurda. Afinal, a burguesia, promotora de toda a sorte de crime – incluindo o abuso de poder econômico e de poder político, que são exclusivamente cometidos por ela -, é quem domina o próprio Poder Judiciário, e não iria voltá-lo contra si.

A defesa dessa tese – isto é, de que o Judiciário deveria ser utilizado para punir os elementos da sociedade capitalista que atacassem os setores mais oprimidos – se baseia em uma profunda incompreensão da forma como a burguesia se estabeleceu em todo o mundo. Conforme dito pela ex-juíza no mesmo texto,

Desejando e aplaudindo prisões e condenações a qualquer preço, estes setores da esquerda reclamam contra o fato de que réus integrantes das classes dominantes eventualmente submetidos à intervenção do sistema penal melhor se utilizam de mecanismos de defesa, freqüentemente propondo como solução a retirada de direitos e garantias penais e processuais, no mínimo esquecidos de que a desigualdade inerente à formação social capitalista que, lógica e naturalmente, proporciona àqueles réus melhor utilização dos mecanismos de defesa, certamente não se resolveria com a retirada de direitos e de garantias, cuja vulneracão repercute sim — e de maneira multo mais intensa — sobre as classes subalternizadas, que vivem o dia-a-dia da Justiça Criminal, constituindoa clientela para a qual esta prioritariamente se volta.

Nesse momento, a ex-juíza apresenta uma discussão fundamental – a de que a retirada de direitos, mesmo em nome de uma causa supostamente justa, mesmo em nome de um setor oprimido, faz com que esse direito seja negado a todos os indivíduos da sociedade. E, se os trabalhadores – e, sobretudo, as mulheres trabalhadoras são os setores mais esmagados da sociedade capitalista, a retirada de direitos, mesmo que supostamente em defesa da mulher, acarretará na perda de direitos da própria mulher.

Na entrevista concedida ao Intercept, a ex-juíza explica como o sistema penal se choca com a luta por mais direitos:

O centro do sistema penal é a prisão, então já começa por privar as pessoas da liberdade, que é um dos direitos fundamentais. Além disso, é profundamente estigmatizante, o que afeta a questão da igualdade. Você divide as pessoas entre o criminoso e o dito “cidadão de bem”.

(…)

Por pior que sejam as condutas cometidas, as pessoas mantêm sua dignidade, pelo simples fato de serem pessoas. Nesse sentido, todas as pessoas são iguais. E o sistema penal é profundamente desigual. É um sistema de poder que recai preferencialmente sobre as pessoas mais vulneráveis e que não serve para promover direitos. E os direitos das mulheres se baseiam fundamentalmente na promoção de direitos, não na retirada de direitos de terceiros.

Além de o sistema penal ser uma máquina que sempre se volta contra os setores mais explorados da sociedade capitalista, Maria Lucia Karam também explica, na entrevista, que a punição não ampara a vítima de maneira alguma:

A reação punitiva, especialmente por sua visibilidade, força e rigor, tem sempre uma tendência monopolizadora. Ela projeta a falsa ideia de que, com a punição, o problema estaria resolvido, o que joga para um plano secundário outras formas mais eficazes, mas menos imediatistas e visíveis de enfrentar esse problema.

(…)

É uma grande fantasia achar que o sistema penal se preocupa com as vítimas. Ele focaliza no agressor e coloca todas as suas energias para puni-lo. A vítima fica para lá, não recebe assistência nenhuma. O estado acha que, punindo o agressor, já deu uma satisfação. Ela também é desprezada pelo sistema penal. Sem o sistema penal, talvez ela receba assistência. Esse é um discurso muito manipulador. Não tem essa preocupação real com a vítima.

De fato, a partir do momento em que o sistema penal é acionado para intervir em alguma agressão à mulher, o seu agressor passa de agressor à vítima. Afinal, ele será julgado pelo Estado burguês, uma máquina de moer a população negra e pobre, sustentada pela mais imunda corja que parasita sobre o planeta. O acionamento do sistema penal cria, portanto, duas vítimas – a primeira, mulher, que fora agredida, e a segunda, o réu, que é um elemento frágil perante o Estado, mas dissolve qualquer possibilidade de superação dos acontecimentos. Maria Lucia Karam expõe isso de maneira clara na entrevista citada acima:

Quando é proposta a ação penal, a alegada vítima do estupro deixa de figurar como protagonista, já que o protagonismo se transfere para o estado – o Ministério Público. Digo que o réu e o investigado são a parte frágil, pois, do outro lado, figura o todo poderoso estado. A alegada vítima é uma depoente.

Trancafiar o agressor em uma cadeia, além de fortalecer a grande máquina de repressão que é o Estado burguês, é um método inútil para coibir a recorrência de crimes. Na entrevista concedida ao Intercept, a ex-juíza demonstra a falência dos argumentos punitivistas:

Primeiro, [a justificativa era] de que a pena iria dissuadir outras pessoas de praticarem crimes, o que a história do sistema penal, aplicado há mais de 200 anos, mostra que não funcionou. As pessoas não deixaram de cometer crimes. Pelo contrário, a criminalidade se tornou mais ampla.

(…)

A outra justificativa era a de transformar o autor do crime. Também foi demonstrado que não funciona. A prisão, em geral, torna as pessoas mais desadaptadas ao convívio social. Até porque é uma ideia absurda você ensinar alguém a viver em sociedade tirando essa pessoa da sociedade.

(…)

Verificado o fracasso dessas justificativas, se criou essa coisa da função simbólica. Pena é sofrimento. Você impor sofrimento a alguém da veiculação de uma determinada mensagem não me parece muito coerente com a luta por direitos fundamentais.

No texto A esquerda punitiva, Maria Lucia Karam ainda explica que o sistema penal, além de favorecer a burguesia, na medida em que tritura os setores mais explorados, é bastante eficiente em esconder as mazelas da sociedade capitalista. Nesse sentido, os setores da esquerda nacional que se colocam a favor do sistema penal estariam cometendo um erro duplo: além de enviar o povo pobre para o matadouro, estaria também deixando de denunciar os ataques dos capitalistas contra toda a população:

Aí se encontra um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimentam.

Chega a ser, assim, espantoso que forças políticas que se dizem (ou, pelo menos, originariamente, se diziam) voltadas para a luta por transformações sociais prontamente forneçam sua adesão a um mecanismo tão eficaz de proteção dos interesses e valores dominantes de sociedades que supostamente deveriam ser transformadas.

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