No último domingo (10), o atacante Gabriel Barbosa, o Gabigol, marcou o terceiro gol do Flamengo na vitória sobre o Bahia e chegou ao seu 21º gol no Campeonato Brasileiro, igualando os números que Zico alcançou em 1980 e 1982, anos do primeiro e segundo títulos nacionais. Com a marca, o jovem atacante se tornou, ao lado do histórico camisa 10 do clube, o maior artilheiro do Flamengo em uma única edição do campeonato nacional.
Os números expressivos, como estes de Gabigol, bem como a campanha avassaladora do time na atual temporada, têm gerado um amplo debate nos vários órgãos da imprensa capitalista. Nas últimas semanas, não foi incomum se deparar com artigos, matérias e programas de rádio e TV que gastavam longas linhas ou horas discutindo e comparando o Flamengo atual com a histórica equipe de 1981, considerada por muitos (quase todo o mundo, na verdade) o maior Flamengo da história. Qual time era melhor? Quais jogadores seriam titulares, comparando-se o elenco dos dois times? Quem tinha o melhor treinador? Os times possuíam a mesma filosofia de jogo ou não?
Desde logo, é preciso dizer que tal comparação é absolutamente esdrúxula. Não é possível comparar times brasileiros que pertencem a épocas consideravelmente distintas. Ou melhor: a comparação é possível e terá sempre, salvo um ou outro caso, o mesmo resultado: vantagem para o time da época mais antiga. Quando falo em “times brasileiros”, estou me referindo, é claro, aos clubes com mais tradição, aos clubes que detêm uma história de várias décadas, aos clubes que se consolidaram no cenário nacional já na primeira metade do século passado, e não àqueles que nasceram “ontem” e cuja história ainda está por construir.
Não é difícil explicar a mencionada vantagem. A política agressiva do imperialismo iniciada em meados da década de 1970 — o neoliberalismo — também teve forte influência sobre o futebol, na medida em que estabeleceu as bases para o domínio esmagador do imperialismo europeu nessa área. A partir de então, os grandes clubes dos países imperialistas europeus assumiram o comando geral do mercado mundial do futebol e, como em qualquer outro ramo da atividade econômica, passaram a saquear as riquezas dos países atrasados. Em se tratando de futebol, isso significa, no fundamental, que passaram a comprar (sempre a preço de banana) uma quantidade cada vez maior de jogadores estrangeiros, especialmente brasileiros e sul-americanos. Esse processo atingiu níveis alarmantes depois dos anos 2000, quando os clubes europeus aumentaram sua voracidade e começaram a mirar em talentos cada vez mais jovens, muitos dos quais sendo levados para a Europa sem sequer terem estreado como profissionais em seus países de origem.
Para o Brasil, como para o resto do mundo, o resultado desse processo é bastante óbvio: hoje, os melhores jogadores do país são arrebatados pelos grandes clubes europeus, e os clubes nacionais são forçados a montar suas equipes com os jogadores que os europeus ou não quiseram levar ou, por ora, não quiseram levar. Só esse fato confere aos times do passado uma vantagem decisiva sobre os times atuais. Se os jogadores do Flamengo de 1981 tivessem nascido três ou quatro décadas mais tarde e jogassem nos dias de hoje, com toda certeza não seriam ídolos do Flamengo, mas sim do Real Madrid, do Barcelona, do Liverpool, da Juventus etc; talentos como Zico, Júnior, Leandro, Adílio, Mozer não teriam conseguido jogar tantos anos no cube carioca, e assim por diante.
É mais do que evidente que a comparação entre os dois times não faz o menor sentido. Ela, no entanto, tem uma outra função, menos evidente à primeira vista. Comparar o Flamengo atual com o histórico Flamengo do início dos anos 80, certamente o maior Flamengo da história, tem o claro objetivo de levantar a bola do técnico português, Jorge Jesus, e defender a sua pretensa superioridade ante os treinadores brasileiros. Para a imprensa burguesa, o principal responsável pela excelente campanha e pelo futebol envolvente do time rubro-negro é o treinador português e seus “métodos modernos”. O Flamengo é líder do Brasileiro e está na final da Libertadores porque o time joga com as “linhas altas”, com uma “intensidade que não se costuma ver no Brasil”, por conta da “intensa e dinâmica movimentação do sistema ofensivo”, e por aí vai.
A realidade é outra, porém. Antes de qualquer outra coisa, devemos dizer que não existe futebol sem “nomes próprios”. Antes de falar em linha alta, compactação, esquema tático, intensidade, é preciso saber e definir os jogadores que executarão as tarefas que uma partida de futebol exige. Quando se olha para o elenco do Flamengo, e o compara com o elenco dos seus concorrentes, percebemos de pronto que o nó da questão está aí — o Flamengo atual conta com um plantel de jogadores que não encontra paralelo nas demais equipes. Investindo cerca de R$230 milhões só em contratações este ano, o clube da Gávea trouxe os laterais Rafinha e Filipe Luís, dois jogadores de alto nível, este, inclusive, sendo figura carimbada nas listas de convocação para a seleção brasileira, e aquele também com passagens pelo escrete canarinho. Para o ataque, o Flamengo trouxe dois jogadores mais do que decisivos: Gabigol, o homem que igualou uma das marcas de Zico, e Bruno Henrique, talvez hoje o melhor jogador em atividade no Brasil. Outro contratação importantíssima foi a do jovem meio-campista Gérson, ex-Fluminense, que se encontrava, mal aproveitado, na Itália. O zagueiro Rodrigo Caio, campeão olímpico com a seleção brasileira, foi outro nome importante que chegou ao Flamengo em 2019. Arrascaeta, jogador uruguaio vindo do Cruzeiro, completa o time das grandes contratações deste ano. Isso sem falar que, para além dos reforços, o clube carioca já contava com o excelente Everton Ribeiro e com o pegador de pênaltis Diego Alves.
O que explica o Flamengo são os jogadores, quase todos brasileiros, e não o treinador europeu. O Flamengo atual é, de fato, o melhor time que se viu jogar por aqui nos anos recentes. Ainda que distante do Flamengo de 1981, um time que pertence a uma época em que o assédio europeu não estava plenamente consolidado e que, por isso mesmo, podia contar com a nata dos futebolistas brasileiros, o Flamengo atual, aportando muito dinheiro, conseguiu repatriar umas poucas joias brasileiras que o imperialismo europeu cedeu e formou, assim, uma equipe que vem triturando os adversários. No final das contas, o que o exemplo do Flamengo demonstra não é a superioridade dos técnicos europeus, mas a superioridade quantitativa e qualitativa do jogador brasileiro.