O paralelismo quase perfeito do ambiente político da Argentina com o que ocorre no Brasil nos traz diversos elementos importantes para a compreensão da política nacional.
Na Argentina, como aqui, as mais populares e importantes lideranças de esquerda do último período são vítimas de clara perseguição política realizada sobretudo através do Poder Judiciário.
A farsesca luta contra a corrupção busca levantar, também na Argentina, uma verdadeira guilhotina sobre a cabeça destas lideranças: a afiada opinião pública conservadora de classe média e a contínua ameaça de prisão.
Da mesma forma como ocorreu com Lula, quanto mais em alta segue a popularidade de Cristina Kirchner, que já desponta como concorrente de peso contra o golpismo imperialista do governo Macri, mais intensa fica a pressão deste mecanismo de chantagem política sobre a representante mais popular do peronismo, setor político cuja marca distintiva fundamental é justamente o nacionalismo.
Logo após as últimas pesquisas de opinião indicarem que Cristina vence Macri em um segundo turno com algo entre 5 a 9 pontos de vantagem, temos o início do julgamento de um dos processos movidos contra a peronista, divulgado com todo o alarde possível pela imprensa burguesa.
Ocorre que, por maiores que sejam os poderes de fraude e de manipulação da burguesia, com o gravíssimo processo inflacionário e recessivo em que vive a Argentina a todo vapor, não resta dúvida que os golpistas terão pela frente um imenso desafio para derrotar, nas urnas, a esquerda peronista no próximo pleito,
Ainda assim, Cristina capitulou.
Ou seja, mesmo com todo este quadro favorável à peronista, Cristina Kirchner abriu mão de encabeçar uma chapa presidencial, colando-se como vice de um desconhecido Alberto Fernandes, que, entretanto, representa uma ala do peronismo que possui estreita ligação com setores empresariais poderosos, inclusive privatistas anteriormente ligados a Menem, e até mesmo ao Clarín, o representante maior da imprensa golpista portenha.
Fica claro que a América Latina está toda sob um regime de exceção, onde a burguesia não aceita mais sequer que os líderes da esquerda moderada e conciliadora de outrora assumam o poder.
A “jogada” de Cristina, por sua vez, demonstra que estas lideranças não estão interessadas em um embate direto com o golpismo imperialista, mas buscam ser aceitas pela burguesia, por meio de manobras cada vez mais surpreendentes.
Setores conservadores e direitistas – mesmo os disfarçados de algum verniz vermelho de esquerda – poderão dizer que este foi o pulo do gato que Lula não deu.
Mas a realidade é que este tipo de vergonhosa capitulação frente aos acontecimentos não tem outro efeito sobre as massas populares a não ser demonstrar fraqueza, indecisão e desmoralização, justo no momento em que o povo mais demanda por lideranças firmes e capazes de se colocar à altura da luta ferrenha que todos enfrentam hoje, até mesmo para sobreviver, tanto na Argentina como no Brasil.
Aqui também há todo um clima de tentar contornar o golpe sem brigar, sem mobilizar o povo, sem colocar as potentes forças populares, que se acumulam através da crescente insatisfação das massas, diretamente em rota de colisão contra os governos golpistas, não para melhorá-los ou mesmo para simplesmente impôr a eles um freio, mas sim para derrubá-los definitivamente pelas mãos do povo.
É uma tendência capituladora da esquerda latino-americana que se expressou, no Brasil, pela candidatura verde-amarela de Haddad, contrariando até mesmo a vontade de Lula, pela relutância em levantar a palavra de ordem mais popular do momento – o Fora Bolsonaro – e pela tentativa de refrear todo o ascenso popular manifestado no último dia 15, por meio da redução artificial daquelas amplas manifestações em pautas setoriais ou através do direitismo descarado da censura às bandeiras partidárias.
Resta saber se todo este jogo de cena espertinho de Cristina Kirchner vai conseguir convencer a burguesia golpista argentina e imperialista a ponto de aceitarem que um novo governo peronista assuma o poder.
Ainda que a mensagem passada por Cristina através de seu auto-imposto “plano B” já indique claramente que, se eleita, seu governo agora tenderá a ir muito mais à direita que os anteriores, levando a contraditória política de conciliação de classes ao último grau de sua resistência, salvo se a situação política na Argentina deteriore – ou evolua – a um ponto pré-revolucionário, tudo indica que a resposta da burguesia a esta manobra será nada mais nada menos que um portentoso “não” ao peronismo portenho.