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Rússia

A visão de um desenvolvedor russo sobre TI em seu país

A política de Estado, a busca por soberania e a interferência imperialista.

George Lyakhov

Por Emmanuel Ferro – do ColTec (Coletivo de Tecnologia do PCO)

Através da rede matrix conheci George Lyakhov, um desenvolvedor russo independente formado pela Universidade Nacional de Pesquisa Nuclear, MEPhI (Instituto de Física de Engenharia de Moscou). Lyakhov tem 13 anos de experiência como desenvolvedor e compartilhou seu conhecimento sobre a realidade russa no que diz respeito à tecnologia da informação. Abaixo, reproduzo trechos de nossas conversas.

A política de Estado russa para tecnologia da informação.

Sobre a política do Estado, de fato, esse programa foi lançado na Rússia em 2010. É verdade que não saiu como planejado, naquela época, o Estado já havia acumulado um legado que não poderia ser abandonado tão facilmente. E não importa o quão estranho possa parecer, até mesmo a introdução do software livre custa dinheiro. E, naqueles anos, o país tinha muitos problemas mais importantes. Além disso, aparentemente também houve lobby de empresas estrangeiras como a Microsoft. Mesmo agora, quando a Microsoft anunciou que não venderia mais o Windows na Rússia, depois de um tempo observou discretamente seu uso para além de empresas que não estão sob sanções, como escolas e hospitais (leia), acontece que, de fato, os produtos Microsoft ainda estão sendo vendidos. Por quê? Sim, porque a Rússia é um mercado enorme e deixá-lo prejudicaria suas carteiras (como disse Thomas Dunning, “não existe tal crime que o capital não cometa por causa de 300% de lucro”. E, na Rússia, muito é comprado pelo Estado. Ao mesmo tempo, as versões piratas são rigorosamente monitoradas e punidas. Então, tudo é licenciado, um mercado saborosamente conveniente.

A busca russa por autonomia e como o imperialismo age para frustrá-la.

Tudo em geral está em um plano diferente do que parece. Vou dar um exemplo. Você provavelmente conhece sistemas ERP1 como o SAP Alemão? Bem, na Rússia, há 30 anos, seus sistemas ERP começaram a aparecer. Eles foram desenvolvidos para a realidade russa, geralmente em cidades acadêmicas (estas são cidades soviéticas com cientistas), ou seja, software do mais alto nível. Alguns acabaram sendo usados em grandes empresas como a Lukoil 2. Eles [os ERPs russos] são lindos, a implantação em grandes empresas levou de 3 a 5 meses (contra muitos anos de utilização do mesmo SAP [alemão]), além disso, trouxeram muitas funcionalidades [novas]. Mas em algum ponto eles começaram a ser abandonados, mesmo a Lukoil regressou ao SAP [alemão] em 2006, ela [Lukoil] o utilizou até recentemente, gastando dezenas de milhões de dólares e, para 2018, especificamente, o SAP era pior do que os análogos russos da amostra do ano 2003. Não parece haver lógica nisso, certo? Quem vai gastar muito dinheiro enquanto introduz o que é pior e não funciona como deveria?

Nada poderia se aproximar mais da realidade brasileira. Aqui tivemos um programa semelhante ao russo em 2002, este programa impulsionou a disseminação de software livre em setores do governo, ensejou a criação da ePing3 e legislação favorável ao desenvolvimento tecnológico brasileiro, entretanto o golpe de 2016 rapidamente fez refluir tudo isso e hoje empresas como Microsoft, Google e Amazon estão entrando onde há pouco tempo seria impensável e ao custo de uma sangria desnecessária aos cofres públicos.

A lógica é simples, na Rússia é que às vezes se chama de Sistema Neocolonial Moderno4 (acho que esse termo será o mais claro possível para você). A essência é simples: para uma empresa entrar em um IPO5 , você precisa que ela seja auditada, mas não por uma empresa aleatória, apenas pelos chamados quatro grandes6. Para passar na auditoria, o auditor pergunta a você qual é o seu sistema ERP. O porquê de utilizar algum SAP russo e não Alemão etc. E o auditor colocará no relatório que você é uma empresa com riscos. Como resultado, a empresa tem que implementar um SAP pior, e a auditoria é realizada na Grã-Bretanha. Até mesmo empresas de defesa com um alto nível de sigilo estavam envolvidas nisso, o que sempre pareceu um absurdo completo.

Qual o maior desafio russo na busca por autonomia?

A única dificuldade real é a produção de processadores. A Rússia tem seus próprios processadores, não apenas ARM7 licenciados, mas produtos com arquitetura completamente própria. E eles foram feitos em Taiwan. Agora, estão descontinuados. O que vai acontecer não está claro para ninguém. Em geral, temos uma fábrica (estrangeira, comprada) que pode produzir processadores de acordo com os padrões de 90 nm (e até 60 nm é possível no mesmo equipamento, se desejado). Mas isso é adequado apenas para o exército, para a tecnologia moderna já está atrasado. Agora, o governo ordenou a invenção e produção de suas próprias litografias/steppers8 100% russas, de acordo com os padrões de 130-65 nm. Eles estarão prontos apenas em 2026. Isso é suficiente para eletrodomésticos, mas não para processadores modernos. Portanto, provavelmente haverá um atraso até 2030-35. Enquanto isso, nossos processadores serão produzidos na amigável China. Então, a esse respeito, parece haver um problema, mas parece que não. A transferência da produção para outra fábrica levará cerca de 2 anos, ou seja, essa é a única dificuldade. Mas dizem que há estoques de processadores, então haverá o suficiente para os próximos anos. E processadores estrangeiros como a Intel não podem ser bloqueados assim, tudo se compra facilmente. Mas com o tempo, vamos deixá-los. A China neste ano começou a se afastar dos processadores dos EUA.

No Brasil há uma forte presença da Microsoft e da Apple entre os usuários domésticos, isso dificulta qualquer política estatal que priorize software nacional ou livre, isso ocorre na Rússia? Como superaram isso?

Bem, na Rússia da mesma forma. A classe média adora a Apple (a propósito, sou programador e escrevo programas para Mac há 10 anos), mas a maioria das pessoas usa o Windows [em casa]. Mas há uma razão banal para isso, o Windows é praticamente um console para jogos, não há como fugir disso.

O que está acontecendo agora? Sim, todo o país está feliz. Agora [com o bloqueio] você não precisa passar por uma auditoria nos quatro grandes. Não há necessidade de sofrer com SAP e muitos outros softwares estrangeiros. O ponto principal é que este é um sistema [neocolonial] e enquanto você estiver incorporado nele, não importa o quão bom e livre você escreva [software], ninguém precisará dele e não será usado. É assim que tudo funciona. Outro exemplo, você chega a uma grande loja russa (rede) e há um sistema de incêndio britânico. Os padrões são diferentes, os britânicos são mais caros e ainda piores que os análogos russos. E a essência é a seguinte: essa rede é negociada na bolsa de valores, para obter um seguro barato; após uma auditoria positiva, a empresa deve implementar o sistema de incêndio Britânico. Pois qualquer outro significa que o auditor britânico escreverá sobre riscos e o seguro aumentará várias vezes.

E agora a Rússia está deixando esse sistema [neocolonial], basicamente não há problemas com isso, temos tudo nosso. Agora, é apenas mais amplamente utilizado. Certamente há problemas, mas nada fundamentalmente complicado. Há muita gente [na Rússia] (148 milhões de cidadãos + 27 milhões de trabalhadores migrantes, estes últimos geralmente não são registrados nas estatísticas, mas vivem e trabalham no país há anos, e essa é a classe mais produtiva, jovens de 20 a 40 anos). As universidades, no ano passado, aumentaram o recrutamento de programadores para formar 100 mil profissionais todos os anos. É muito, na verdade.

No início de março, foi amplamente discutido no país que software pirata deveria ser permitido, dizem eles, em resposta a sanções. Mas o Ministério do Desenvolvimento Digital rejeitou tal proposta, dizendo que seria melhor introduzir software livre (leia), o que está certo, caso contrário, a pirataria prejudicaria a adoção de software livre.

A implementação está progredindo lenta mas seguramente. Em indústrias críticas, como sistemas de processamento de passaportes, tudo já é russo, não apenas software, mas até processadores. Existem regiões do país, por assim dizer experimentais, onde, por exemplo, todas as escolas já têm apenas Linux. Existem escolas onde até os processadores são apenas russos. O ponto principal é que, sim, é um grande programa governamental e não está abandonado. O principal objetivo é a transição para o software russo e livre.

Nesse ponto, como desenvolvedor brasileiro, sente muita inveja (no bom sentido) de meu colega russo. Aqui, temos além do golpe de Estado, uma classe média colonizada, sobretudo no serviço público e inclusive na esquerda, absurdamente resistente a tecnologia nacional ou livre. A luta contra a dominação imperialista jamais será efetiva sem passar por esta etapa de conquista da autonomia tecnológica.

  1. ERP: É um conjunto de aplicativos ou módulos integrados para gestão dos principais processos de negócios de uma empresa, incluindo finanças e contabilidade, cadeia de suprimentos, recursos humanos, procedimentos, vendas, gestão de estoques e muito mais.
  2. Lukoil: Segunda maior empresa de petróleo da Rússia.
  3. Eping: Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrónico – define um conjunto mínimo de premissas, políticas e especificações técnicas que regulamentam a utilização da Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) na interoperabilidade de serviços de Governo Eletrónico.
  4. Sistema Neocolonial Moderno: Se refere a relação com países imperialistas, onde o país colonizado além de depender tecnologicamente ao imperialismo, também submete às regras impostas por este.
  5. IPO: Distribuição inicial de ações em uma bolsa de valores.
  6. Os quatro grandes: São os quatro maiores países imperialistas europeus após a segunda guerra mundial:
  7. Alemanha, França, Itália e Reino Unido.
  8. ARM: Originalmente Acorn RISC Machine, e depois Advanced RISC Machine, é uma família de arquiteturas RISC desenvolvida pela empresa britânica ARM Holdings.
  9. litografias/steppers: São equipamentos usados na técnica homóloga de confecção de circuitos integrados

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