Os acontecimentos da manifestação do dia 24 de julho reacenderam o debate sobre a derrubada de estátuas. A discussão em torno da queima da estátua do bandeirante Borba Gato ressaltou uma contradição nas atuais posições da esquerda e esconde um objetivo nada favorável para a luta da população.
Não foi a primeira vez que um grupo, no meio de uma onda de manifestações, decidiu derrubar uma estátua. A prática começou de fato nos Estados Unidos, enfatizando que a ação foi, na verdade, importada do país imperialista. Mas não só isso — a derrubada de estátuas remete sobretudo a grupos identitários, universitários que criam toda uma enciclopédia para justificar a ação e colocá-la como um grande ato revolucionário que partiu das massas, afirmação que evidentemente não corresponde à realidade.
Mas a questão não para por aí. Uma das provas principais das afirmações feitas acima é que a derrubada de figuras históricas como Borba Gato (morto há 300 anos), Cristóvão Colombo (morto há 500 anos) e Edward Colston (morto há 300 anos) não incomodou de fato a burguesia local. Não houve, por exemplo, grandes e intensos ataques da imprensa burguesa à derrubada de estátuas quanto houve a quebra de vidraças do Itaú no Brasil, a queima de uma delegacia de polícia nos EUA. — ainda foi presenciada a fala de um ou outro direitista demagógico apoiando a derrubada e sugerindo sua substituição.
A prova da demagogia fica mais clara quando museus, governos e organizações começam, por conta própria, a retirar possíveis estátuas-alvos da “fúria universitária”. Na Nova Zelândia, por exemplo, a prefeitura da cidade de Hamilton retirou a estátua de John Fane Charles Hamilton (morto há 150 anos), do qual o nome da cidade foi originado, por fazer parte de um esforço para eliminar os monumentos “considerados representativos de desarmonia e opressão cultural”.
Mas como se tudo isso não bastasse como um aviso para a esquerda — alguns setores inclusive pensam que isso é um avanço na “consciência” do governo e de seus integrantes, ligados a burguesia e ao imperialismo —, a derrubada de estátuas coincidiu com um fator extremamente negativo para o movimento popular: o esfriamento das manifestações.
Estados Unidos
Após o assassinato de George Floyd nos EUA pela polícia, em maio de 2020, teve início uma onda de mobilizações no país, chacoalhando o povo e a esquerda após alguns meses de inércia por conta da pandemia. Houve queima de prédios públicos, de uma delegacia, ataques a casa do policial em questão, etc. As manifestações estavam radicalizadas e foi inclusive registrado a organização de grupos armados para autoproteção, sobretudo por parte de comunidades negras — um bairro inteiro chegou a ser tomado pelos manifestantes em Seattle, após a polícia abandonar o local, o qual foi denominado como a “Zona Autônoma de Capitol Hill”.
Tudo parecia ir bem até que alguém decide ter a brilhante ideia de, em vez de atacar os problemas reais da população, como a polícia ou o governo, atacar os “símbolos da opressão” — mas não os símbolos atuais, e sim os símbolos de séculos atrás. A manifestação assistiu então à derrubada de Cristóvão Colombo que, sob acusações de genocida e escravista, teve algumas estátuas suas depredadas ou efetivamente derrubadas. Como num passe de mágica, o problema não era mais a polícia, é sim alguém morto há 500 anos.
A mobilização murchou. Um “símbolo” foi derrubado aqui, outro foi depredado acolá e, quando a esquerda se deu conta, prefeituras, museus e outras organizações estavam entrando na mesma onda, e a mobilização perdeu seu significado.
Inglaterra
Em apoio aos protestos nos EUA, diversos países também organizaram suas mobilizações. Entretanto, do mesmo jeito que a esquerda seguiu a tendência à radicalização, acabou seguindo a manipulação imperialista, e importando a política de derrubada de estátuas.
Pouco depois da situação com Cristóvão Colombo, os britânicos derrubaram num rio a estátua de Edward Colston, antigo traficante de escravos britânico, morto há 300 anos. Seguindo a tendência dos Estados Unidos, as manifestações inglesas também foram morrendo aos pouquinhos.
A partir desta onda (Portugal e Bélgica tiveram situações parecidas), o debate em torno da “derrubada de símbolos” foi aceso no coração da esquerda pequeno-burguesa, que pegou a pauta imperialista com todo gosto e colocou-a como questão central do momento — esquecendo completamente de George Floyd, da polícia e dos atuais governos da extrema-direita.
Colômbia
A américa latina também não ficou fora da “tendência”. Já no ano de 2021, após uma pequena pausa tanto nas manifestações quanto na pauta identitária, o continente começa a se radicalizar, protestando contra seus respectivos governos de direita que “misteriosamente”, mesmo após a derrubada de estátuas pelo mundo (!), não parou de oprimir o povo.
A Colômbia foi um dos países que mais avançou neste sentido. A população se radicalizou a tal ponto que as mobilizações, mesmo reprimidas e sem uma direção formal, continuaram a todo vapor. O povo chegou inclusive a se organizar em milícias de autodefesa, acumulando meses de atos e confrontos com a polícia contra o governo de Iván Duque.
Mais uma vez, o imperialismo toma a frente da situação e solta a “ideia da estátua”. No meio da população radicalizada que lutava contra a repressão da polícia de Duque surge então um grupo que derruba a estátua de Cristóvão Colombo. A esquerda pequeno-burguesa toma a frente e começam os discursos, as enciclopédias e todas as discussões em torno da figura-morta-há-500-anos, rumo a mais um esvaziamento da manifestação.
O caso, entretanto, foi um pouco diferente. Após estes acontecimentos, os sindicatos que participavam do movimento que organizava as mobilizações pelo país anunciaram sua saída. Frente a isso, a população decidiu continuar, formando assembleias e grupos de autoproteção, dando continuidade às manifestações e aos enfrentamentos com a polícia — sem nenhuma estátua.
Após algumas análises, é possível identificar, no mínimo, algum tipo de tendência. É fato que Cristóvão Colombo é o menor dos problemas da população pobre atualmente. Entretanto, figuras como essa são colocados como grandes inimigos de um movimento e, como visto, suas reivindicações passam de acabar com a polícia para derrubar uma estátua.
É fato que uma política dessas é importada do imperialismo. É, entretanto, apenas mais uma forma de frear as manifestações, esvaziando suas pautas e desviando a atenção do que realmente importa.