Neste momento, Curitiba (PR) passa por uma inversão expressiva e sintomática do que a abertura do isolamento social pode resultar neste momento em diversos outros estados e cidades que já caminham no mesmo sentido. De cidade cujo controle da pandemia foi tido como exemplar até meados de maio, registrando 600 casos de COVID-19 e apresentando apenas 50% de ocupação dos leitos de UTI disponíveis, Curitiba passou ao colapso total do sistema de saúde e quintuplicou o seu número de casos de reabertura em 20 de maio até esta data, tornando-se um expoente extremamente preocupante de contágio no Brasil. Trata-se de um triste e concreto exemplo do que significa a política de reabertura comercial a todo custo, defendida pelos estados e pelo governo federal. Se em Curitiba, que apresentava tais dados, os resultados foram catastróficos, podemos prever o que viria a significar a medida de reabertura em regiões mais afetadas e nas quais o sistema de saúde já colapsou.
No SUS, que dispõe de 223 leitos para tratamento exclusivo do COVID-19, o percentual de ocupação já saltou de 80% a 85% apenas na última semana. Alguns hospitais, como Evangélico e Hospital do Trabalhador já registravam 100% de ocupação nesta segunda-feira (22). Mas não apenas a capital do Paraná sofre com a explosão de contágio e o colapso do sistema de saúde, como também aponta dados de Cascavel (95% de ocupação dos leitos no Hospital Universitário) e Francisco Beltrão (100% de ocupação dos leitos no Hospital Regional do Sudoeste). Um fenômeno parecido também é observável já no estado de São Paulo, visto que os números de contágio passaram a crescer mais aceleradamente nas cidades do interior do que na capital, concomitante aos movimentos de reabertura dos negócios.
O professor e infectologista da Escola de Medicina da PUC-PR deixa claro que trata-se de uma “consequência direta do relaxamento das medidas de distanciamento social”, e segue: “se continuarmos circulando normalmente, teremos várias oportunidades ao longo dos dias de transmitir ou contrair o vírus.” Também Rogerio Luz Coelho Neto, médico coordenador das recomendações COVID-19 da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, conta que houve uma explosão de atendimentos na Unidade de Saúde Osternack, uma das regiões de maior vulnerabilidade social de Curitiba. Em entrevista, ele diz: “a gente vinha atendendo de 6 a 7 pessoas por dia. Na semana passada, 27 pessoas, às vezes 30. E aconteceu bem 15 dias depois do relaxamento. Isso preocupou a gente.” Ainda esta segunda-feira foi registrada primeira morte de um médico no Paraná pelo coronavírus, Caio Martins Guedes, de 33 anos.
A pressão pela abertura vem, obviamente, dos negócios e da luta pela hegemonia política entre a direita conservadora e o bolsonarismo. No caso de Curitiba, é notável como o ramo “fitness”, por exemplo, faz forte pressão pela reabertura. Num cenário em que se deseja manter o apelo às classes proprietárias (desde o pequeno empresário até médios e grandes) para disputar o “púlpito” do projeto neoliberal em ambos os planos, as táticas empregadas pelos governadores de um lado e pelo núcleo federal de outro ficam evidentes. Os governadores como João Doria, Witzel e Ratinho Jr. acreditam que não podem se dar ao luxo de irritar as classes dos pequenos comerciantes e da média burguesia, que vêm migrando do campo bolsonarista – por conta do enfraquecimento da economia para os setores de consumo (tanto por conta do alastramento da pandemia quanto de outros fatores) e pela recusa de crédito (programática de Guedes e Bolsonaro) para reerguer ou impedir a bancarrota dos empreendimentos menores -, chance esta de enfrentamento político que a direita conservadora não deseja perder para enfrentar o apelo que o projeto bolsonarista faz à alta burguesia (latifúndio e setores imperialistas – a burguesia “de dentro, mas de fora”) e tentar disputar um espaço negociado com o bolsonarismo.
Bolsonaro não se importa de, neste momento, desgastar uma parcela de temerosos médios e pequenos proprietários – definitivamente não todos, já que muitos seguem apoiando seu projeto, mesmo frente sua própria possível ruína -, que passaram a compreender seu projeto de abertura total e desenfreada como “ideológico demais” e favorecedor apenas dos grandes bancos, do latifúndio e multinacionais (o que explica o recurso destas classes a passar a apoiar os governadores golpistas). Bolsonaro deseja, obviamente, a hegemonia total de seu projeto, dispensando os golpistas que o levaram ao mais alto cargo executivo. Há certo ressentimento, atualmente, dentre as mencionadas camadas proprietárias, que Bolsonaro “talvez” não tenha contido concretamente a pandemia (um tanto tarde…), que tenha “sacrificado a economia por propósitos ideológicos”, e que, agora, os negócios menores corram tamanho risco e sem ajuda do governo federal – todos ouviram o recado do Ministro da Economia na notória reunião ministerial: os pequenos serão abandonados, apenas os grandes serão salvos. Em certa medida, nos faz lembrar aqueles pequenos e médios proprietários e industriais que em 64 compuseram fileiras na Marcha da Família com Deus pela Liberdade e, em 69, desesperavam-se com a bancarrota e recorriam ao emedebismo. Ao buscar a “brecha” neste terreno, governadores como Ratinho Jr. empregam medidas que, por mais que pareçam estar em contradição com os ímpetos federais, vão justamente no sentido que, em última análise, seria o próprio polo extremo de Bolsonaro: a abertura aos negócios à revelia do colapso da saúde e de milhares de mortes.
Não nos enganemos. Ao observar a “abertura comedida” dos governadores em meio à fase mais aguda da pandemia até o momento, observamos apenas um ato de desespero político e enfrentamento entre duas frentes da direita: a direita conservadora e o bolsonarismo. Uma é o bolsonarismo propriamente dito, que significaria (e já significa) também a rápida proletarização de todas as classes proprietárias de menor expressão – contra a qual a alta burguesia, imperialista em todos os sentidos, de forma alguma se opõe, e que, para tal, precisa se anunciar com sua promessa explícita de autoritarismo; conhecemos este flerte. Neste sentido, a pandemia caiu dos céus no colo de nosso notório fascista. Não precisamos mencionar, neste panorama, o esmagamento total da classe trabalhadora. Assim, a pandemia, a pauperização, a morte e a ameaça de levante popular se apresentariam, no plano bolsonarista, como um cenário fértil e possivelmente desejável de super acumulação e aparato ideologicamente propício; uma oferta não tão certa, mas tentadora para a mais alta camada da sociedade no Brasil, experientes em tal manobra – e também, com apenas alguns rodeios, aos militares.
A outra é a direita conservadora buscando um pacto mais “a longo termo”, propondo uma via conciliatória (e “racional”) temporária entre pequena e grande burguesia no período de pandemia – sem dispensar o esmagamento dos trabalhadores, claro; pelo contrário, através deste – para que, de forma estratégica, empreguem o panorama neoliberal pleno prometido também por este setor. Há, obviamente, o desejo de fazê-lo sem perder as possibilidades de maior poder executivo, de “democracia liberal” – e, como clara consequência, de vitória eleitoral – por isso também suas tentativas “democráticas” de conter qualquer arroubo contra o parlamento ou o judiciário; vide Alexandre de Moraes. Um “bolsonarismo sem os arroubos de Bolsonaro”, oferecendo, contudo, a mesma catástrofe. Duas formas fascistas se degladiam pela administração lucrativa da pandemia e das “futuras oportunidades”, das mortes, das privatizações e da pauperização. Ambas são, juntas, uma única entidade representativa e material: o inimigo do trabalhador agindo com toda força no poder. Apenas os trabalhadores nas ruas podem impedir que qualquer um dos dois projetos sigam adiante.