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Escravidão no Brasil

Abolição, revolução frustrada

Artigo de Rui Costa Pimenta

Ainda por conta do aniversário da assinatura da Lei Áurea (13/05), reproduzimos abaixo um artigo histórico do companheiro Rui Costa Pimenta, presidente nacional do PCO, publicado em 2007. O texto é um documento fundamental que coloca às claras cada aspecto que envolveu a luta dos negros do Brasil para o fim, ao menos oficial, da escravidão.

 

Por Rui Costa Pimenta

A versão consagrada de 1888, tanto pela historiografia tradicionalista ou de direita, como, também, por várias tendências de pensamento da esquerda e dos próprios movimentos negros, procuram apresentar a abolição como uma dádiva do regime monárquico e, inclusive, das pressões do imperialismo britânico. Ou seja, que teria um significado contra revolucionário. Uns para retirar ao acontecimento toda característica de reivindicação e mobilização popular, outros com o objetivo de denunciar as limitações do ato da princesa regente. Esta última interpretação, inclusive, foi predominante a dos movimentos negros que, na década de 70 adquiriram, pela primeira vez, uma significativa expressão política.

Estas avaliações unilaterais, no entanto, servem apenas para dificultar e ocultar uma real compreensão do processo político e das suas verdadeiras consequências. A abolição, ao contrário de ambas as versões oficiais, foi a culminação – e a frustração – de uma das mais amplas mobilizações populares e revolucionárias já ocorridas no pais. O fim da escravidão, nos moldes existentes até o século passado, foi o resultado contraditório da mobilização revolucionária realizada pelos negros e demais setores oprimidos contra o regime do chamado Segundo Império e a classe social que lhes servia de base, os latifundiários do açúcar e do café. A operação ideológica que procurou dar à abolição uma aparência de iniciativa do poder estatal foi um processo posterior aos fatos, baseado em iniciativas frustradas do próprio poder imperial. A princesa Isabel foi a primeira a tentar manipular os fatos, apresentando-se como a redentora dos escravos, para buscar uma base mais ampla para o regime imperial em desagregação e para a sua própria candidatura como governante.

A Exploração colonial

A origem da escravidão, de modo geral, está vinculada à revolução ocorrida na agricultura no período neolítico, ao surgimento da propriedade privada e remonta a mais de mil anos. Esta caracterização, contudo, não basta para explicar sua predominância na economia colonial –  uma economia vinculada ao nascente mercado mundial capitalista – a partir do século XV, bem como o seu ressurgimento nos dias de hoje em inúmeros países do globo. Menos ainda é correto afirmar, como o faz a maioria dos historiadores e outros responsáveis pelas versões oficiais sobre a história que a escravidão na era moderna é tão somente um resquício dos modos de produção anteriores ao capitalismo.

Em primeiro lugar, porque a escravidão colonial moderna está muito longe de ser um resquício, caracterizando-se como uma indústria de proporções gigantescas para a época. Sua ocorrência nos períodos anteriores à revolução industrial, ou seja, ao estabelecimento do sistema capitalista enquanto tal, baseado na grande indústria, e, portanto, antes da vitória da revolução burguesa em escala europeia, cumpriu um papel fundamental para a formação e consolidação do sistema econômico e social em países determinados da Europa e que impôs ao conjunto do planeta, o capitalismo.

O capitalismo assenta-se na separação dos meios de produção do produtor e na transformação de tudo o que se produz em mercadoria, destinada não à satisfação das necessidades humanas, mas à acumulação de capital. Neste moderno modo de produção das necessidades humanas, pela primeira vez, tudo é transformado em mercadoria, incluindo a força de trabalho do homem. No berço do capitalismo, a Europa, como de resto em todo o planeta, o processo de estabelecimento do capitalismo não ocorreu de forma natural, também como tentam fazer crer as lendas sobre a formação da civilizada sociedade atual, mas, pelo contrário, através da violenta expropriação dos pequenos produtores e de sua transformação em proletários sem qualquer propriedade, o que tornava compulsória a venda da sua foça de trabalho no mercado.

Acumulação primitiva

Nas terras americanas, a maioria das quais de clima e solo de fertilidade excepcionais em comparação com os europeus, no entanto, a existência de enormes extensões de terras selvagens oferecia a qualquer um a possibilidade de ampliar ou adquirir propriedades, acumulando em seu próprio proveito, sem a necessidade de se sujeitar a nenhum regime de exploração do trabalho. Esta característica generosa do Novo Mundo apresentava para a burguesia comercial ligada às colônias e aos regimes metropolitanos um problema peculiar que não pôde ser resolvido apenas através do esforço para a monopolização das terras à qual se deu a forma da doação das capitanias hereditárias no Brasil, uma vez que o cercamento jurídico da terra não significava automaticamente o seu cercamento efetivo como havia ocorrido no período de acumulação capitalista na Inglaterra e, menos ainda, por outro lado, a expulsão da terra de uma ampla população camponesa, como ocorreu na Inglaterra dos séculos XV e XVI.

Deste modo, a burguesia comercial europeia, teve de encontrar fora do território que pretendia utilizar para a sua indústria, uma população para subjugar e submeter às condições de trabalho que se apresentavam naquele momento. Para realizar esta façanha, a burguesia nascente teve de impor por uma violência ainda mais selvagem do que utilizou contra os seus próprios povos, em seus países natais, a sujeição do produtor imediato ao proprietário dos meios de produção. Este processo foi realizado através da feroz intervenção política do Estado, da intervenção ideológica da Igreja em defesa desta acumulação de poucos e expropriação de muitos. É da combinação destas circunstâncias que a escravidão ressurgirá nos últimos séculos no Brasil e em todas as colônias americanas, independente da cultura da religião dos colonizadores e grau ou modo de desenvolvimento do sistema social sobre o qual se apoiavam.

Nestas condições também o tráfico negreiro – que no Brasil chegou a movimentar cerca de 20% dos recursos gerados pela principal fonte de divisas dos séculos XVIII e XIX, a cultura da cana-de-açúcar, será um dos pilares do processo de acumulação primitiva do capital nas metrópoles que a monopolizam. Esse comércio não só movimentou vultuosos negócios da aristocracia e nascente burguesia mercantil dos países em vias de desenvolvimento capitalista, operando uma enorme transferência de recursos das colônias para metrópoles: “os tesouros roubados fora da Europa pela pilhagem descarada, pela escravidão e pelo assassínio eram reivindicados para o país de origem, onde se transformavam em capital”, explicou Marx.

Tais fatos evidenciam que a escravidão nessas regiões foi um aspecto indissociável do processo de surgimento e estabelecimento do capitalismo na Europa e como fenômeno dominante no mundo.

A ideologia da burguesia, classe dominante, procura ocultar este verdadeiro pecado original do capitalismo para apresenta-lo como sendo o sistema social de redenção e emancipação dos negros e de todos os povos oprimidos pelos regimes anteriores.

Óleo, Antônio Parreiras

Questão étnica

Outra lenda muito comum e que se arraigou, inclusive, entre os ativistas e organizações do movimento negro, é o de associar a escravidão a um grupo étnico determinado, os negros, como uma relação orgânica e, ainda mais, de atribuir tal fato a determinados preconceitos ou condições culturais e até mesmo, máximo dos absurdos, biológicas, que seriam característicos desses povos.

Na antiguidade, a escravidão, pelos e mais diversos motivos, era generalizada entre todos os povos, independentemente de qualquer relação racial. Ainda durante o medievo, a Península Ibérica conhecera a escravidão dos eslavos; no séc. XIII, os genoveses exploravam, em diversas colônias, o trabalho de escravos raptados na Grécia continental, nos Bálcãs etc.; na América espanhola, a escravidão indígena foi predominante até pelo menos o séc. XVII.

Na verdade, o uso de escravos, vindos do continente africano resultou de uma série de fatores específicos e históricos, os quais é preciso analisar para compreender a situação posterior e colocar por terra banis pseudo teorias racistas tais como as de que “o negro estaria adaptado a este tipo de trabalho”.

No Brasil a escravidão indígena predominou até 1570, quando epidemias trazidas pelos invasores, a resistência indígena e o consequente massacre de povos inteiros, juntamente com uma certa ampliação da exploração do solo tornaram escassas e pouco rentável a mão-de-obra indígena, tornando necessário- do ponto de vista do mecanismo do sistema capitalista –  a importação de escravos.

Para assegurar o suprimento do mercado, as empresas mercantis voltadas para os empreendimentos coloniais lançaram mão de um mercado regular já em pleno funcionamento que, pela subjugação militar (principalmente) e econômica dos povos africanos pelos europeus o sequestro de negros em terras africanas, vinha sendo praticado desde os últimos séculos da Idade Média (Em 1151, a população muçulmana negra de Lisboa alcançava o percentual de 10% do total). Tratava-se de um mercado já organizado como uma grande indústria regular. Interesses nos quais irão se associar o Estado e o capital britânico (então maior potência capitalista do planeta) para quem o tráfico negreiro representava negócios altamente lucrativos. Os capitalistas ingleses somente trataram de atacar o tráfico negreiro quando os seus principais concorrentes, já no século XVII, os franceses, haviam transformado o Haiti na maior fonte de riquezas advinda deste comércio, com enorme prejuízo para os interesses britânicos. Será através do Haiti que o liberalismo econômico britânico, acidentalmente descobrirá as virtudes econômicas da liberdade de mão-de-obra para a criação de mercados coloniais de exportação para os produtos de sua florescente indústria manufatureira e, em seguida, da grande indústria (ver a este respeito o extraordinário livro de C.L.R James, os Jacobinos Negros, sobre a revolução negra no Haiti.

Estes dados servem para desnudar que o posterior “liberalismo humanista” dos ingleses, por muitos apontado como o principal responsável pelo fim do tráfico e da própria escravidão em terras brasileiras não é mais do que uma fantasia. E que legislações restritivas do império londrino, como a Bill Alberdeen (que auto atribuía aos ingleses o poder de impedir o tráfico negreiro em qualquer parte do planeta) e as legislações semelhantes inscritas por imposição ao Brasil e outros países, cumpria a missão, entre outros países, cumpria a missão, entre outras, de garantir o direito da burguesia colonialista de viola a soberania nacional dos países escravistas. Estas “restrições” foi uma demonstração adicional da relação concreta entre a escravidão como sistema econômico e empresa comercial, com os diversos estágios do desenvolvimento do capitalismo mundial.

A escravidão não é o resultado da diferenciação “racial”, mas tomou como diferenciação étnica como ponto de apoio. A escravidão, fenômeno dominante nas colônias americanas nos séculos XVI, XVII e XVIII é o resultado da evolução social e política dos povos africanos e da sua relação com o capitalismo europeu em fase de formação.

Sociedade escravagista

A estrutura de classe desde os primeiros séculos da história do Brasil este marcada, nas palavras de Mário Pedrosa, por “um rígido esquematismo de classe”. Uma sociedade marcada pela polarização entre uma ínfima minoria de senhores e uma esmagadora maioria de escravos, com inexpressivas formações sociais intermediárias. A terra, monopolizada juridicamente pela Coroa, e distribuída na forma de latifúndios entre fidalgos e serviçais, estava de fato monopolizada pela extraordinária lucrativa indústria da monocultura da cana-de-açúcar para exportação e constitui-se em uma enorme barreira ao surgimento de uma classe de pequenos proprietários, os camponeses independentes e a burguesia industrial e comercial urbana que resultaria da sua acumulação, como ocorreu nas colônias britânicas no norte dos atuais Estados Unidos. É a incompreensão deste fenômeno central – a indústria açucareira que levou vários teóricos da formação social brasileira a caracterizar a sua origem como sendo a da “transplantação” do feudalismo português para o Brasil (como, por exemplo, em Nelson Werneck Sodré).

Por um longo período, em consequência são desprezíveis também a pequena burguesia urbana e a camada dos trabalhadores livres, pelo seu insignificante papel na produção nacional e peso numérico.

A predominante força de trabalho escrava é um aspecto central desta formação social original, ainda que transitória, completamente subordinada à evolução do capitalismo europeu.

A concentração numerosa massa de escravos – sujeita a uma violência literalmente sem qualquer limite – representava um perigo permanente de rebelião que levaria ao aniquilamento do regime político e da ordem social dominante (tal como ocorrera no Haiti, onde no final do século XVIII a insurreição dos negros contra a escravidão levou à destruição do regime existente e à implantação de uma república negra).

Essa situação levou à criação de mecanismos efetivos de controle e de manutenção da ordem escravista, assentados principalmente na institucionalização da mais selvagem violência contra os que ousaram desafiar o regime estabelecido.

A cínica mitologia, consagrada pela historiografia oficial, que versa sobre a “a democratização racial brasileira”, sobre o caráter “americano” da escravidão no Brasil, na integração entre senzala e casa grande ou, ainda, na apresentação da prática costumeira de repressão do regime como sendo “excessos” cometidos por uma minoria, foram concebidos para ocultar deliberadamente uma longa, sádica e sistemática operação de aniquilamento de uma gigantesca população de escravos indefesos pelos senhores brancos que se valiam de técnicas de tortura assassínio caracterizados pelos maiores requintes de fria crueldade e que as condições aviltantes a que estava submetida a população escrava  condenavam–na a uma média de vida útil de oito anos em terras brasileiras.

Apesar do Estado não ser necessário nessas questões de interesse “privado”, sua intervenção fez-se presente em todas as oportunidades que escapavam ao controle dos senhores, como no esmagamento dos quilombos e de inúmeras revoltas populares que reivindicavam o fim da escravidão.

Além da violência e das miseráveis condições de vida que condenavam à morte em pouco tempo “de uso” da mão-de-obra escrava, outras formas de dominação completavam o regime escravagista em seu aspecto político e ideológico. Dentre elas destaca-se, amplamente, a opressão religiosa. Papel central neste processo de integração social do negro foi ocupado pela Igreja Católica, a qual ao mesmo tempo em que justificava a escravidão com sandices teológicas de todo tipo, tratava de “catequizar” ou “cristianizar” os escravos e outros setores oprimidos a fim de torna-los dóceis e resignados à sua condição de bestas humanas como propriedades dos senhores católicos e da própria Igreja em razão de que seria esta a “vontade de Deus”.

A luta dos escravos

Já foi assinalado por inúmeros historiadores que a história do negro brasileiro é uma de resistência permanente à escravidão.

Não foram apenas os conhecidos quilombos – que se espalharam aos milhares de norte a sul do país, inclusive durante o século XIX – que expressaram esta resistência individual ou puramente local à brutalidade do regime escravagista, os escravos e os negros libertos adquiriram tal poder de organização e consciência política que foram capazes de realizar uma série de insurreições na Bahia que colocaram em evidência a completa exaustão do regime escravagista. Estamos nos referindo às insurreições dos escravos muçulmanos em meados do século XIX.

Estas insurreições, derrotadas e ferozmente punidas, revelaram, no entanto, a inviabilidade da continuação do regime de escravidão através do fato mais fundamental determinante de toda verdadeira revolução social: a rebelião das forças produtivas contra a camisa-de-força das formas sociais e jurídicas de produção.

As revoltas dos malês e hussás baianos quebrou completamente a autoconfiança dos senhores de escravo, a ponto dos escravos oriundos da Bahia passarem a ser considerados como “imprestáveis” nos estados do Sudeste pela sua rebeldia e insubmissão, consideração que predominou nas duas décadas que restavam para o fim do regime escravo. Os heróis destas lutas como Luisa Mahin, mãe de Luiz Gama, ferozmente vilipendiados na época, foram esquecidos pela história oficial da mesma forma Zumbi dos Palmares e João Cândido.

O esgotamento do regime escravagista

A abolição da escravidão no Brasil não resultou de uma verdadeira revolução democrática, ou seja, que liquidasse com base do regime anterior, fonte de toda a opressão, com o monopólio da terra pelo latifúndio, problema que subsiste até hoje. A abolição foi a expressão de um compromisso entre os liberai e republicanos abolicionistas e os defensores do velho regime que processaram uma transição no regime que processaram uma transição no regime política – do Segundo Império à República Velha – sem revolucionar as suas bases sociais, ou seja, nas condições dadas mantendo praticamente intactos os interesses fundamentais que dominavam o Estado no período anterior, que serão a classe social dominante da chamada República Velha.

O esgotamento do regime foi um lento processo político e econômico. A ordem escravocrata era extremamente dependente da importação de braços escravos, pois a mortalidade superava a natalidade. Daí a importância do tráfico negreiro, o que explica a resistência à sua extinção, reivindicada pela Inglaterra desde pelo menos a independência do Brasil de Portugal (1822). Assim, quando é finalmente proibido (1850), a escravidão já estava condenada como relação social dominante, o que não impediu que continuasse ainda durante quatro décadas, o que demonstra a função decisiva da luta entre as classes sociais na evolução dos processos econômicos. Medidas provisórias ainda foram tomadas (tráfico interno, contrabando etc.), mas elas não puderam ser senão paliativos. Isso se expressa pelo aumento do preço de escravos, que, de 1850 a 1870, foi aproximadamente 400%.

A saída econômica para esse problema seria a introdução da mão-de-obra dos imigrantes. A partir dos anos 60, o Estado começo a financiar a imigração, favorecendo a entrada de amplos continentes de trabalhadores vindos das mais diversas regiões. Assim, a população escrava, em 1822, constituía às vésperas da abolição apenas 5% (sic). E mais, somente nos anos 1888-1900, São Paulo recebeu 800.000 imigrantes, número superior à população escrava em todo país, em 1887.

Paralelamente a esse processo, no final do século XIX, a economia brasileira passa por um processo de transformações, fruto da penetração inglesa principalmente (estradas de ferro, bancos, indústrias, etc.). Nos engenhos de açúcar e nas fazendas de café, os fazendeiros procuraram aperfeiçoar o sistema de produção, aumentando a produtividade e permitindo a maior liberação de mão-de-obra. Frente à situação, diante das maiores possibilidades de investimento, a adoção do trabalho assalariado implicaria vantagem suplementar, na medida em que não exigia a imobilização de capitais que acarretava a compra de escravos.

 Resistência do latifúndio

Apesar da evidente decadência do sistema de mão-de-obra escrava, os latifundiários da região economicamente mais importante do país, o Sudeste, em particular o Estado de São Paulo, não abriram mão da sua propriedade sobre os escravos senão após uma gigantesca mobilização popular que levou o país à beira da insurreição e da guerra civil.

A abolição foi um resultado de uma revolução democrática abortada: a massa dos libertos permaneceu marginalizada, enquanto não houve uma simples mudança de forma; não foram tocadas as bases do latifúndio (revolução agrária), persistia a dominação estrangeira.

Na presença do monopólio da terra, preservado totalmente pela abolição e posteriormente pela proclamação da República, a libertação dos escravos não significou senão uma mudança de forma na exploração. Os escravos libertos não tinham as condições de se transformar em pequenos proprietários de terra e, portanto, viram-se forçados a vender sua força de trabalho cujo valor necessariamente tinha que estar pré-determinado pelo nível de vida anterior predominantemente no sistema escravista. Apesar da enorme variedade de situações existentes no país (florescimento da agricultura do café no Sul, decadência da cultura de açúcar no Nordeste etc.), o que criava possibilidades diferenciadas para a “integração” dos ex-escravos, o fundamental é que a grande massa de escravos se manteve como mantém-se até hoje o proletariado urbano e rural de vida, em um baixíssimo níveo de vida, em uma situação de superexploração que é uma das características fundamentais da acumulação do capitalismo atrasado brasileiro e que nunca se modificou em função das várias reviravoltas políticas e econômicas, proclamação da República, Revolução de 30, etc., pois estas passaram ao largo das questões fundamentais que caracterizam o país atrasado: a questão da terra, do desenvolvimento nacional e da democracia política. Na realidade, boa parte do contingente negro não foi assimilada pela indústria nascente senão a partir da década de 40, refletindo o esforço da classe dominante para deliberadamente marginalizar os ex-escravos lançando-os no nível mais baixo da estrutura social.

A campanha abolicionista

A luta pela abolição da escravidão terá sido, provavelmente, o acontecimento mais mal interpretado da história do país, uma história generalizadamente mal interpretada. Oficialmente, teria sido a demonstração do caráter “cordial” do brasileiro e da bondade do regime imperial, onde o imperador, guardião dos interesses da elite escravocrata por cinquenta anos, passou à história como um inimigo da escravidão. Para muitos setores da esquerda, não passou de uma farsa do mesmo modo que o seriam, também, muitos outros acontecimentos da história nacional cujo caráter contraditório não conseguiram penetrar. Para outros, foi uma campanha humanitária dirigida pelos representantes intelectuais da burguesia como Joaquim Nabuco ou Jose do Patrocínio. O defeito comum e decisivo às diversas interpretações está em confundir a política tanto do regime imperial como as direções mais moderadas do movimento abolicionista e que – por este mesmo motivo – ganharam maior destaque no relatar dos fatos, com o conjunto do fenômeno social e político que representou a luta abolicionista.

Na realidade, a história da abolição segue mesmo roteiro de inúmeros outros acontecimentos históricos deste país, onde as classes dominantes, explorando o precário nível de consciência e organização das massas populares espalhadas por um pais de dimensão continental e profunda debilidade de todos e qualquer movimento democrático foi capaz de colocar-se à cabeça para poder finalmente desviar as tendências revolucionárias das massas populares, das quais a história nacional está repleta, e distorcer estas mobilizações em função de uma política própria. É a expressão nacional da chamada “via prussiana”, onde as classes dominantes tomam em suas mãos o destino das reivindicações populares e chegam a um compromisso contrarrevolucionário com elas sobre a base da derrota das tendências revolucionárias da população.

Um primeiro equivoco está já no estabelecimento da origem do movimento, iniciado em São Paulo por um negro tornado escravo pelo próprio pai ao ser vendido e contrabandeado da Bahia para São Paulo, Luiz Gama.

Filho da mulher que foi uma das principais lideranças de todas as lutas populares da Bahia, inclusive a revolta dos malês, Luísa Mahin, Luiz Gama, que depois de vendido nunca mais viu a mãe, foi autodidata, tornou-se advogado praticamente sem diploma e foi um dos mais importantes poetas do romantismo brasileiro, um dos grandes poetas satíricos do país esquecido em notas marginais nas histórias da literatura e nas antologias poéticas.

Luiz Gama começou uma luta solitária em São Paulo pela libertação dos escravos na década de 50 e morreu antes da abolição, deixando, no entanto, uma herança revolucionária de gigantesca importância. Fundou a primeira Sociedade Abolicionista e tornou-se célebre por defender um escravo que havia matado seu dono, justificando que o assassinato de um escravagista não era crime, e isto dito, em plena escravidão por um negro forro diante dos tribunais escravagistas. Rapidamente tornou-se o líder da juventude republicana que estudava no largo São Francisco e que incluía nomes tão extraordinários como os de Raul Pompéia, que idolatrava o ex-escravo, e Raimundo Correia entre muitos outros.

Após sua morte, um dos seus seguidores Antônio Bento criou, sobre a base a luta política do poeta um movimento militante de grande significado na fase final de campanha abolicionista, conhecido como os caifazes. Esta organização sequestrava os escravos nas fazendas, os escondia no famoso Quilombo do Jabaquara com vistas a descerem a Serra da Mantiqueira e serem transferidos para um dos estados onde já não houvesse mais a escravidão.

Este movimento foi responsável por inúmeros enfrentamentos com os negociantes de escravos nas fazendas, conhecido como A Marcha, o qual fez eclodir um princípio de amotinamento do exército cujos oficiais subalternos recusaram-se a reprimir o levante dos escravos.

Ao mesmo tempo em que os abolicionistas oficiais faziam discursos conciliatórios que terminariam com José do Patrocínio beijando os pés da princesa em agradecimento pelo decreto da Leia Áurea, a esquerda abolicionista republicana dirigida pelos irmãos Lacerda em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, impulsiona um verdadeiro levante dos escravos que colocava em xeque o próprio regime político.

A campanha abolicionista, longe de se constituir em uma sequência de atos parlamentares dirigidos por figuras do partido liberal como Nabuco teve como eixo as tendências revolucionárias presentes na situação que se combinavam para reivindicar a República e o fim da escravidão e que uniam a pequena burguesia republicana e as classes populares na cidade aos negros nas fazendas.

A chamada Leia Áurea, emperrada, sob outras formas, por décadas, no reacionaríssimo parlamento imperial, foi aprovada em regime de urgência diante do desenvolvimento revolucionário da situação e das suas repercussões no interior das forças armadas e acabou sendo tomada como uma solução de compromisso entre a direita do movimento abolicionista e o regime imperial, frustrando desta forma a revolução em marcha que carecia de uma liderança organizada e consciente com um programa republicano efetivo o qual não poderia prescindir da luta pela liquidação do latifúndio. A aliança estabelecida no interior do Partido Republicano entre a esquerda, o centro burguês e os latifundiários que abandonavam o segundo império é a demonstração das profundas debilidades da burguesia, democrática para levar a cabo uma verdadeira revolução democrática no país.

Questão racial e pais atrasado

A questão chamada “racial” confunde-se ao longo de toda a história do país com a luta entre as classes sócias, da qual é uma das suas expressões subjetivas. A opressão do negro e do mestiço se materializa na opressão do imperialismo e do capitalismo atrasado sobre a maioria da população do país na cidade e no campo. O ex-escravo é – em sua maioria – o operário semi qualificado ou, mais comumente, sem qualquer qualificação, que recebe salários baixíssimos ou o trabalhador sem-terra ou com pouca terra em desesperada luta contra o latifúndio e o grande capital agrário.

A tentativa de encarar o problema da discriminação racial desvinculado desta consideração evidente e fundamental só pode cumprir um papel reacionário, ou seja, de propor a integração do negro à sociedade burguesa branca no quadro do capitalismo atrasado, ou seja, sem a emancipação nacional ou social do negro como povo e como classe social. A luta contra a opressão racial é luta contra os seus fundamentos e só encontra uma perspectiva na liquidação do imperialismo e do latifúndio e que somente poderá ser feito no Brasil, como parte da revolução do dirigida pelo proletariado e, portanto, como um aspecto da revolução socialista.

A discriminação racial é, em grande medida, a expressão de classe e da expropriação econômica e se manteve porque as mudanças formais que ocorreram no país não resolveram os fundamentos desta opressão e desta exploração. Como em toda expressão ideológica não há um determinismo direto entre a opressão de classe e suas expressões subjetivas, o que quer dizer que uma pode continuar existindo como hábito, costume ou “cultura” depois que as suas bases se foram, o que impõe a necessidade de uma revolução cultural, a qual, no entanto, é pura utopia sob o capitalismo e o domínio do imperialismo.

A questão nacional

A completa incapacidade do capitalismo brasileiro, atrasado, de concretizar a emancipação negra e o peso desta população no quadro geral da população brasileira colocam objetivamente o problema do negro no Brasil como um dos problemas chave da organização do estado nacional.

A população negra é proletária, mas as restrições à sai ascensão social no quadro da sociedade branca é incomparavelmente maior do que as à ascensão da população proletária branca, inclusive formada regionalmente, o que tem uma importância chave em um país de extraordinária diversidade regional e de peculiaríssima história de unificação nacional. A população branca nordestina, para tomar um exemplo, inclusive a população proletária e camponesa, tem acesso ao ensino superior dentro de limites conhecidos. A população negra, no entanto, está praticamente excluída do acesso ao ensino superior. Na mais importante universidade do pais, uma instituição pública e gratuita, a Universidade de São Paulo, apenas 4% do total de alunos matriculados é negra.

Esta situação somada às diferenciações salariais e todo o conjunto de mecanismos de ascensão social colocam claramente a existência de uma mal disfarçada condição de segregação de uma população que nada tem de acidental, mas são a expressão de um sistema que impede o desenvolvimento desta população no quadro geral da sociedade, colocando como divisor de águas a cor da pele.

Esta situação – com intensidade extraordinariamente menor –  gerou nos EUA, país semelhante ao Brasil neste aspecto, a transformação do problema negro em uma questão nacional, à África de Marcus Garvey, até o nacionalismo radical de Malcom X e da Nação do Islã, passando pelas diversas propostas de emancipação do black belt nas primeiras décadas do século, o cinturão negro formado pelos estados sulistas de maioria negra naquele momento e, como consequência contrarrevolucionaria, as famigeradas lei de Jim Crow nos Estados do Sul dos Estados Unidos até a década de 60.

A questão negra tem estado ausente na história do Brasil como formulação programática, mas emergiu inúmeras vezes de forma objetiva nas “nações negras” que foram os quilombos na época da escravidão, nas revoltas dos escravos muçulmanos no século passado na Bahia e de uma maneira geral – cuja perspectiva consciente era estabelecimento de um estado negro ao modelo do Haiti no coração do Brasil. Executando-se o ponto de vista cultural, nenhum dos movimentos negros organizados colocou o problema de um ponto de vista do nacionalismo negro, nem mesmo em estados de maioria negra como a mesma Bahia.

De um ponto de vista negativo, no entanto, a questão da nacionalidade negra, curiosamente, esteve presente como preocupação da burguesia na historiografia que mantém, de Nina Rodrigues a Gilberto Freyre e o modernismo cultural a partir de 1922, uma coerente oposição à ideia de que o Brasil poderia se transformar em um Haiti com o predomínio da população negra sobre a população branca e que, portanto, levanta às alturas a ideologia da miscigenação das raças e da “morenidade” como sendo o caráter distintivo da cultura nacional. Está claro que independentemente da maior ou menor consciência dos seus formuladores o objetivo da política de “morenização” não é outro que a da “europeização” do país, ou em outros termos, o seu “embranquecimento”, somente que apresentado de um ponto de vista “democrático” e “cordial”.

Questão Nacional e crise capitalista

A política de segregação e embranquecimento tem constituído um “pacto racional” no país através da cooptação de uma ínfima minoria de elementos da população negra que formam uma exceção notável no quadro de espantosa opressão e exploração da quase totalidade da população negra no pais. Cooptação estaque tem como base fundamental a extraordinária rigidez da situação social do negro brasileiro o que a torna ideologicamente a única alternativa para o negro sem consciência nacional ou de classe, ou seja, sem consciência nacional ou de classe, ou seja, sem consciência revolucionária, em geral o negro que, a duras, penas galgou a escada social para alcançar o patamar da classe média urbana.

Este pacto, assim como as demais características do status quo historicamente estabelecido no país – unidade entre Brasil desenvolvido e o Brasil atrasado, entre burguesia nacional e o imperialismo, entre a classe operária e o Estado burguês, entre latifúndio e o restante do país – estão se transformando em cacos diante da pressão gigantesca que exerce sobre o conjunto do país a crise capitalista mundial e o imperialismo. A questão negra tende a sofrer uma completa subversão com a liquidação da questão nacional da população negra.

Os sintomas desta situação já se fazem senti tanto na crise da maioria das organizações negras tradicionais e em diversas manifestações, tanto no interior das próprias populações negras, como nas demais organizações do país, inclusive nas instituições do Estado. Fica como sintoma a transformação no ano passado do dia 20 de novembro em data oficial e o ingresso de Zumbi no panteão (duvidosa honra) dos “heróis” nacionais ao lado dos bandeirantes que o massacraram e do Duque de Caxias que chefiou o exército “negreiro” da guerra do Paraguai.

Por um programa para a questão negra

A tendência mais geral da crise capitalista – que se caracteriza como uma crise histórica – é a de recolocar sobre uma base revolucionaria todos os problemas da constituição histórica do Estado nacional brasileiro, entre eles e com uma importância de primeiro plano a questão do destino da população negra.

Esta situação coloca de forma cortante a necessidade de que a classe operária tenha programa para a questão negra no Brasil e internacionalmente, uma vez, que o problema da população negra brasileira deverá necessária ligar-se ao problema da população negra dos EUA, do Caribe e da África em uma luta única contra o imperialismo como um aspecto da luta anticolonial e da revolução socialista mundial.

Nos EUA o problema do negro tem se colocado de forma cada vez mais clara como o problema da organização dos negros como uma força decisiva na situação política daquele país, o que representa um estágio na questão da emancipação do conjunto da população negra.

No Brasil, as reivindicações dos negros devem ser compreendidas através da perspectiva, em última instância, da defesa do direito à autodeterminação das populações negras e da sua autonomia no quadro de uma federação verdadeiramente democrática dos estados brasileiros. Esta é uma questão chave a ser desenvolvida em um programa revolucionário para a questão negra no Brasil, que assume importância decisiva juntos a toda a plataforma de reivindicações conta a exploração negra brasileira.

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