Na última quarta-feira (27) participei da plenária nacional das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, que contou com a presença de mais de 200 companheiros de todo o País. Em que pese a profunda limitação com que as direções da frente procuraram colocar a questão da campanha pelo Fora Bolsonaro – todos as organizações presentes ou assinaram o pedido de impeachment ou defendem a palavra de ordem “fora Bolsonaro” – uma resolução importante, embora tímida, foi a definição do dia 13 de junho como um dia nacional de luta pelo “fora Bolsonaro”, com a realização de um ato virtual e de atos presenciais nos estados e no DF. Em todo caso, esta minha coluna de hoje não pretende tratar da plenária em si, mas da colocação do ex-candidato à presidência da República, militante do Psol, Guilherme Boulos que, junto com João Pedro Stédile do MST, apresentaram um balanço da situação política no início da plenária.
Também não pretendo me ater à colocação de conjunto feito por Boulos, mas a um aspecto central que, no meu entender, define a política de um amplo setor da esquerda em torno da defesa da constituição de uma frente ampla nacional, supostamente para lutar pelo fim do governo Bolsonaro.
Muito já temos escrito nas páginas do DCO e falado em nossos programas da COTV sobre o significado nefasto da tentativa de atrelar a esquerda, os setores que lutam contra o golpe, as massas, a um movimento de unidade com a direita, com os mesmos políticos golpistas que derrubaram Dilma, perseguiram e prenderam Lula e apoiaram a fraude eleitoral para permitir a vitória do fascista Bolsonaro.
O que Boulos inovou, pelo menos ainda não tinha lido nada a respeito, foi que no afã de defender a unidade com a burguesia, usou como exemplo de sucesso de uma “frente ampla” o movimento das “diretas já” ocorrido em 1983/1984.
Trata-se de um exemplo no mínimo muito infeliz transformar em “sucesso” uma operação que sequestrou das massas mobilizadas a luta contra a ditadura, contra o arrocho salarial, por liberdades democráticas, a começar pelo direito de eleger o presidente da República.
A esquerda da época, setores do PT, principalmente intelectuais, PCdoB, PCB, entre outros grupos, em nome da ampliação das “forças” – o movimento inicial por “diretas já” foi impulsionado em 1983 pelo PT e pela CUT (fundada naquele ano) – entra em acordo com a “esquerda” da oposição consentida da ditadura militar, o MDB, naquele momento já PMDB.
O PMDB, já então o partido preferencial de um amplo setor da burguesia (papel que havia assumido diante do desmoronamento do regime militar) controlava os principais Estados da Federação e aderiu ao movimento para manobrá-lo. O marco da campanha passa a girar em torno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 1983/05 ou Emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida, por ter sido apresentada pelo então deputado federal pelo PMDB do Mato Grosso, Dante de Oliveira, e que previa eleições diretas para a sucessão de João Batista Figueiredo.
As massivas mobilizações populares que explodiram pelo País, já no início de 1984, tiveram seu ocaso consumado no dia 25 de abril de 1984, com a derrota da Emenda no eterno túmulo das reivindicações populares, o Congresso Nacional.
Concretizava-se, assim, a manobra da burguesia dita “democrática”, ou seja, canalizar o movimento popular para as instituições. Com a desmoralização do movimento, que havia sido capitaneado para pressionar o Congresso, foi uma questão de tempo para a burguesia se rearticular em torno do Colégio Eleitoral, que se daria no ano seguinte. Com a divisão do partido governista, a ARENA, então já PDS, consumada com a vitória de Paulo Maluf, indicado pela convenção do partido, uma espécie de Bolsonaro da época, as “raposas” da ARENA que haviam sido a base governista durante toda a ditadura militar vão criar a Frente Liberal, que posteriormente se aliará ao PMDB na chamada Aliança Democrática.
Finalmente, em janeiro de 1985, todos os “democratas”, depois de um acordo com a ditadura, derrotam o fantoche Paulo Maluf de uma forma acachapante no Colégio Eleitoral e decretam o fim dos governos militares elegendo como presidente um representante da ala direita do MDB, Tancredo Neves, e como vice, ninguém menos que o senador José Sarney, até pouco tempo antes, líder do governo do ditador general Figueiredo, não sem antes promover todo tipo de acordo para salvaguardar as instituições da ditadura. Por ironia, Tancredo morreu sem assumir e numa manobra golpista foi dado posse ao seu vice, uma personagem central da ditadura.
Para finalizar, quero sublinhar que as grandiosas mobilizações populares forçaram a ditadura e seus dois partidos da ordem a um grande jogo de encenação, a manobrar e buscar uma roupagem democrática mantendo tudo praticamente como estava antes. Isso vai desembocar inclusive no processo Constituinte, com a promulgação de uma Carta que deixou intactos os alicerces fundamentais da ditadura militar. Muitas leis, como a de greve, que haviam sido destruídas na prática, foram resgatadas pela “Constituição Cidadã” e já, não de hoje, voltaram a ser aplicadas contra os trabalhadores e suas organizações.
Se o resultado da obra da frente ampla das “diretas já”, que culminou na “Nova República”, foi uma grande tragédia, pelo menos para todo um povo mobilizado contra o tacão de 20 anos de ditadura, o que dizer da atual frente ampla, recheada com as mesmas personagens ou quando muito com a inclusão no sobrenome de “Filho” ou “Neto”? E ainda com “mobilizações” pelas “lives”? É uma caricatura, portanto uma farsa.