A vitória eleitoral de Luis Arce na Bolívia trouxe à tona uma tendência para a esquerda latino-americana. O governo nacionalista de esquerda sem a mesma política de seus antecessores. Enquanto Evo Morales governou apoiado nas massas populares e, apesar da moderação, nacionalizou os hidrocarbonetos e realizou uma Assembleia Constituinte, seu dito pupilo já revelou que não repetirá os “erros” do passado e fará um governo de intensa colaboração com a burguesia.
Arce segue o mesmo roteiro de López Obrador no México e Alberto Fernández na Argentina. Todos eles têm um elevado compromisso com a direita e mesmo com o imperialismo. Ao contrário dos governantes da década anterior na América Latina, que tinham um discurso mais radicalizado e tomaram algumas medidas progressistas, a nova geração de presidentes de esquerda adota uma política neoliberal em essência, pautada em retóricas direitistas como a luta contra a corrupção e sem nenhum incentivo à mobilização popular.
Tais governos têm seus precedentes em dois casos que se destacaram na “onda progressista” no início do século por seu caráter direitista: os governos de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet pelo Partido Socialista no Chile e de Tabaré Vázquez e José Mujica pela Frente Ampla no Uruguai. Foram os dois casos mais conciliadores e burgueses até então. Mas provavelmente serão até mesmo ultrapassados em seu direitismo pela nova geração de governos de esquerda formada pela tríade México-Argentina-Bolívia.
Entretanto, essa tendência ultraconciliadora não se expressa somente nos países onde a esquerda voltou ao poder. Em vários países do continente uma parcela expressiva da esquerda pequeno-burguesa alimenta a crença na política desses governos e tenta repetir sua política internamente.
No Equador, Lênin Moreno foi uma manifestação radical dessa crença na política supostamente esquerdista dos sucessores do nacionalismo dos anos 2000. Após Correa não poder se recandidatar à presidência, o indígena cadeirante recebeu um grande apoio dos movimentos sociais para sua candidatura já manifestamente diferente da de Correa. Quando assumiu o governo, tirou a máscara e aplicou uma política neoliberal com sérias características fascistas de repressão e perseguição política. Agora, quando os que se mantiveram minimamente fiéis ao “correísmo” passaram para a oposição, novamente o ex-presidente não pode se candidatar mas seus substitutos nas eleições mostram-se de maneira muito semelhante a Arce: sua campanha e propostas são abertamente conciliadoras, longe de uma perspectiva minimamente reformista como foi o período de Correa.
Os colombianos conhecem bem isso. Por viver sob uma ditadura há muitas décadas, a esquerda colombiana não conseguiu superar suas limitações expressas pelo desespero das FARC e do ELN e jamais apelou para o movimento de massas. É uma esquerda absolutamente domesticada pela burguesia, certamente a mais moderada de toda a América do Sul. As eleições em que Iván Duque foi eleito presidente tiveram uma campanha da esquerda semelhante à brasileira em 2018: um candidato à Haddad, professor universitário, identitário, pequeno-burguês e com uma plataforma baseada mais no ambientalismo do que em qualquer resquício de política operária.
O otimismo inexplicável que toma conta da esquerda brasileira com a Argentina ou a Bolívia, ou mesmo o plebiscito “fake” no Chile, mostra que ela tenta ir pelo mesmo caminho de colaboração com a direita. Tanto é que sua política na etapa atual é a da frente ampla com a direita e a crença totalmente cega nas instituições.
Toda essa esquerda mostra, na verdade, que se adaptou aos regimes golpistas que a derrubou do poder nos últimos anos. Mostra, também, apesar de suas contradições e debilidades, a força dos golpes imperialistas na nossa região. Conseguiram deslocar o regime político de todos esses países para a direita e, em certos casos, até mesmo para beirar a extrema-direita.
Devido à crise desses regimes, e suas debilidades, em alguns casos o imperialismo precisa permitir a volta da esquerda ao governo, como no México, Argentina e Bolívia. Mas sabe que não pode ser a mesma esquerda que governou anteriormente, com base na mobilização das massas. Precisa ser uma esquerda inofensiva, apenas para estancar a sangria da crise. Esse é o papel da nova esquerda que chega ao poder na América Latina.
A Europa já conhece muito bem essa esquerda. Se aqui é uma esquerda colaboracionista com o imperialismo, lá é uma esquerda propriamente imperialista. Tais são os casos, por exemplo, do Partido Socialista em Portugal e do Partido Socialista na Espanha, ambos no governo atualmente. Praticamente não se vê diferença entre seus governos e os da direita tradicional. São partidos que perderam seu caráter de massas que já tiveram em tempos longínquos e que hoje não passam de ferramentas do imperialismo para garantir a mínima estabilidade do regime para a exploração das amplas massas.
A estratégia que tem funcionado na Europa é a mesma que o imperialismo tenta emplacar por aqui. Se for necessário substituir os governos da direita tradicional, que seja por uma esquerda que se prostitua. E ela está decidida a se prostituir.